quarta-feira, 31 de julho de 2024

Filhos de Chávez

A esquerda na região está dividida, não sabe o que fazer com esta criatura indecifrável que é o chavismo.

Existe uma esquerda nostálgica que acredita que a Venezuela dá continuidade à etapa de Hugo Chávez e que age como isso fosse acertado. Essa é uma esquerda mais emocional, que poderia ser descrita como irreflexiva 
José Natanson, cientista político argentino, autor de "Venezuela. Ensayo sobre la descomposición"

Para Maduro, Lula relativiza defesa da democracia

Parecia que Lula adotaria uma postura ligeiramente mais prudente em relação às eleições eivadas de evidências de fraude na Venezuela, mas o temor de que, uma vez encorajado a falar, o presidente brasileiro não conseguiria esconder o viés pró-Maduro se confirmou com as declarações dadas por ele em entrevista ontem.

Seria cômico, se não fosse lamentável e gravíssimo, que Lula decida culpar a imprensa brasileira (!) por, segundo ele, transformar na “Segunda Guerra Mundial” o que seria um processo “normal”.

Fica explícito que, quando não está em ambiente controlado, o presidente não tem nenhuma divergência em relação a seu partido, o PT, que prontamente reconheceu a vitória autoproclamada de Maduro, sem a apresentação dos boletins de urna ou de qualquer comprovação de que os números anunciados pelo cooptado Conselho Nacional Eleitoral (CNE) correspondem à realidade da população que compareceu em massa para votar.


Depois de sua vitória suada contra Jair Bolsonaro, e de denunciar, acertadamente, o 8 de Janeiro como uma tentativa de golpe no Brasil, Lula volta todas as casas no tabuleiro ao demonstrar absoluta falta de compromisso real com a defesa da democracia. Em outras palavras, essa pregação só vale quando o autoritário da vez é identificado pelo presidente e por seu partido com a direita ou a extrema direita, como é o caso de Bolsonaro ou de Donald Trump.

Ao derrapar feio mesmo no script de cautela ensaiada e tardia que o governo montou diante da pantomima chavista, Lula atrela seu mandato e, pior, o Brasil a uma ditadura sanguinária que deixa um rastro de mortes, violações de direitos e miséria na sua luta desesperada por manter o poder pelo poder, sem nenhum projeto visível para resgatar a Venezuela da crise em que ele próprio a mergulhou na sua escalada de terror.

O alinhamento incondicional a um regime que deixou de ter sequer uma plataforma social típica de governos socialistas, como Hugo Chávez e Maduro definem seu bolivarianismo militaresco, mostra quanto a ideologia turva a capacidade de discernimento de Lula e do PT, que preferem colher imenso desgaste doméstico e no front internacional a se dissociar de um tirano.

Assim, por obra e graça apenas do presidente e de sua sigla, sem que a oposição bolsonarista tenha precisado mover uma palha, Lula internaliza uma crise que de forma alguma deveria ser sua, menos ainda do Brasil diante de suas muitas carências urgentes nos campos social, econômico e ambiental.

Faz isso no momento em que sua popularidade vinha melhorando, o que mostra que mesmo o louvado tirocínio político de Lula, que o fez sobreviver a crises políticas e econômicas nos seus mandatos anteriores e, inclusive, renascer nas urnas depois de preso em 2018, está comprometido por uma certa teimosia em reafirmar posições antigas que não encontram mais qualquer respaldo na realidade.

Lula deu a declaração de que está tudo ormal na Venezuela mesmo depois da notícia de que há pelo menos 11 mortos em protestos no país, além da denúncia de perseguição a opositores e a ameaça explícita de Maduro de aprovar novas leis de exceções para se juntar ao seu extenso corolário de medidas ditatoriais.

Foi de improviso? Estava desinformado? Mas não enviou Celso Amorim ao cenário já conflagrado, mesmo com insistentes alertas de que isso seria uma fria? São perguntas simples, que deveriam ser triviais para fazer a um chefe de Estado diante de um cenário tão crítico.

Mas o Itamaraty virou um mero reprodutor de notas burocráticas, o chanceler Mauro Vieira é uma testemunha silente do que Amorim diz a um Lula bastante disposto a ouvir só que foi tudo bem, e o companheiro Maduro está reeleito. Com essa arquitetura, qualquer discurso empolado do brasileiro daqui para a frente louvando a democracia e cobrando déspotas já nasce sem credibilidade.

Lula, o da democracia relativa, passa a mão na cabeça de Maduro

Há pouco mais de um ano, em entrevista à Rádio Gaúcha, ao ser perguntado sobre o motivo de setores da esquerda defenderem o regime de Nicolás Maduro, Lula respondeu que o conceito de democracia “é relativo”. E se explicou:

“A Venezuela tem mais eleições do que o Brasil. O conceito de democracia é relativo para você e para mim. Eu gosto de democracia, porque foi a democracia que me fez chegar à Presidência da República pela terceira vez”.

Ontem, em entrevista à TV Centro América, afiliada da TV Globo no Mato Grosso, Lula comentou pela primeira vez a eleição presidencial da Venezuela realizada no último domingo:

“É normal que tenha uma briga. Como resolvê-la? Apresenta a ata. Se a ata tiver dúvida entre a oposição e a situação, a oposição entra com um recurso e vai esperar na Justiça o processo. E vai ter uma decisão, que a gente tem que acatar. Eu estou convencido que é um processo normal, tranquilo”.



Atas são boletins que registram os votos depositados em cada urna. O governo da Venezuela ainda não as apresentou, alegando ter havido uma falha no sistema. A oposição diz que as atas que acessou provam que Maduro foi derrotado.


Com 80% das urnas apuradas, o Comitê Nacional Eleitoral da Venezuela, sob o comando de um aliado de Maduro, anunciou que ele venceu com 51,2% dos votos contra 44% do candidato da oposição, o diplomata Edmundo Gonzalez.

“Na hora que tiver apresentado as atas, e for consagrado que a ata é verdadeira, todos nós temos a obrigação de reconhecer o resultado eleitoral da Venezuela”, acrescentou Lula. Em nota, o PT adiantou-se e já reconheceu a suposta vitória de Maduro.

Lula ainda não o fez, mas defendeu a nota do PT. De domingo para cá, a polícia de Maduro matou 11 pessoas e prendeu mais de 700 que saíram às ruas de Caracas para denunciar fraudes na eleição. Um líder da oposição foi preso na sua casa.

Em uma democracia, a última palavra é da Justiça. Acontece que na Venezuela a Justiça, as Forças Armadas, a mídia e o Congresso, que por lá atende pelo nome de Assembleia Nacional, obedecem às ordens de Maduro. Lula sabe disso.

Então, como sugerir à oposição venezuelana que entre com um recurso na Justiça para anular a decisão do Comitê Nacional Eleitoral que deu a vitória a Maduro? Talvez porque, para Lula, democracia é de fato uma coisa relativa.

Se é, o Estado de Direito também seria. E com base em tal raciocínio, os golpistas do 8 de janeiro de 2023 no Brasil poderiam justificar o que fizeram para derrubar o governo recém-instalado de Lula. Democracia não é uma coisa relativa.

A Venezuela não é uma democracia porque promove “mais eleições do que o Brasil”. Fatos e conceitos não são meras opiniões. Numa democracia, os Poderes são autônomos, as eleições são livres e fiscalizadas e há liberdade de expressão.

Na ausência de tais condições e de outras mais, o que há é um regime autoritário como o de Maduro, e como foi aqui, durante 21 anos, a Revolução de 1964, uma reles ditadura igual a tantas que existiram e ainda existem.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Pensamento do Dia

 


O labirinto da propaganda

Nos períodos de grande polarização social e política, as designações, os conceitos, as ideologias são sujeitos a grande turbulência semântica. A confusão criada é intencional, e é um dos instrumentos privilegiados da guerra de propaganda para manipular a opinião pública. Dilucidar o que o labirinto da propaganda pretende esconder nas bombásticas revelações que faz incessantemente não é tarefa fácil. A dificuldade é tanto maior quanto as mentiras são frequentemente misturadas com meias verdades. Vejamos alguns exemplos.

Extremismos. Faz parte da guerra de propaganda transformar o adversário que se quer alvejar em extremista. O extremismo surge frequentemente associado a fundamentalismo, dogmatismo, etc. O extremista é sempre o outro. Assim, o terrorismo é considerado extremismo, mas o terrorismo de Estado é considerado segurança nacional. Ao extremismo contrapõe-se a moderação e o centrismo. Nos países de democracia liberal manipulam-se dois extremismos contrapostos, a extrema-esquerda e a extrema-direita. Entre elas, está a moderação e o centrismo. Existem, sem dúvida, forças convencionalmente designadas de extrema-esquerda e de extrema-direita, as primeiras estando hoje em vias de extinção e as segundas, em vias de ascensão. Mas em termos de influência política nos nossos dias, o maior extremismo é o centrismo, o extremo-centrismo. A (des)ordem económica imposta pelo neoliberalismo global é constituída por uma ortodoxia económica tão dogmática e fundamentalista que impede aos Estados periféricos ou semi-periféricos qualquer margem de autonomia. Qualquer movimento no sentido de uma maior justiça social é radicalmente punido pelos bancos centrais ou pelas agências internacionais. Aliás, aqui reside outra das manipulações da linguagem: os bancos centrais são “independentes” para poderem estar na estrita dependência do neoliberalismo global. A polarização é assim entre três extremismos, e não entre dois, e aqui reside boa parte da confusão nas opções dos cidadãos. Por outras palavras, a moderação desapareceu da cena política mundial no momento em que é entronizada como virtude política pela propaganda do conformismo.

Esquerda e direita
. A polarização entre esquerda e direita é a grande marcadora das divisões ideológicas desde a Revolução Francesa e permanece vigente na Europa e nas zonas de influência político-cultural da Europa, na América latina, na Índia (em parte) e nas ex-colónias de total supremacia branca: EUA, Canada, Nova Zelândia e Austrália. Em África, é muito menos vigente, e está praticamente ausente em muitas regiões da Ásia. Nestas regiões, as polarizações políticas existem, mas são designadas doutra forma. A guerra de propaganda assume neste domínio duas versões: ou não há distinção entre esquerda e direita, ou troca os significados aos significantes e considera de esquerda o que sempre foi considerado de direita, e de direita o que sempre foi considerado de esquerda. Este é o domínio das meias verdades. De facto, as diferenças entre esquerda e direita têm-se vindo a atenuar. É essa uma das razões porque a extrema-direita assume hoje bandeiras que eram tradicionalmente da esquerda sem que ninguém se sobressalte. O caso extremo é o das recentes eleições no Reino Unido. O partido trabalhista ganhou as eleições por esmagadora maioria. No entanto, ao contrário do que seria de esperar, as diferenças entre os dois partidos não são muito grandes sobretudo no plano internacional. Por exemplo, ambos são fervorosos seguidores do neoliberalismo, ambos são adeptos da continuação da guerra da Ucrânia e ambos continuam a fornecer armas a Israel. Este é apenas um caso extremo de algo que está a acontecer noutros países. Nestas condições, os eleitores estão condenados a votar em eleições (enquanto acreditarem nelas) como voto de protesto. Votando de protesto em protesto, de frustração em frustração. Até quanto a aguentará democracia ser apenas um instrumento de protesto. Sempre que há diferença entre a esquerda e a direita no plano das opções políticas é hoje preciso muito mais cuidado analítico que antes. Por exemplo, na Europa, a grande maioria do que se convenciona ser esquerda está a favor da continuação da guerra da Ucrânia, apoia o militarismo, não se mobiliza para a luta pela paz, deixou de falar de capitalismo e aposta num neoliberalismo de rosto humano (algo impossível de imaginar). Onde as diferenças existem e são importantes são as seguintes: imigração, luta ecológica, defesa da população LGBTQI+, direitos reprodutivos das mulheres, concepções de família. São temas importantíssimos e exigiram muitas lutas para serem conseguidos. Mas não são tudo. Não investem na luta anti-capitalista nem na luta anti-colonialista, que foram das lutas fundadoras da esquerda. Sem estas, nenhuma das outras terá êxito sustentável. Basta ver o que está a acontecer com o direito ao aborto nos EUA. Em conclusão, a confusão entre esquerda e direita é em parte culpa das organizações que se reclamam dessas designações.

Libertação e dependência. Este binarismo teve uma evolução semântica desde meados do século XIX. Aplicou-se inicialmente no período do colonialismo histórico e na resistência contra ele. O oposto de libertação começou por ser colonialismo, mas à medida que as colónias se foram tornando politicamente independentes a aspiração da independência reduziu-se aos termos da dependência a que a ex-colónias foram sujeitas. Estes termos (contratos desiguais, monopólios de empresas do país colonizador, dependência financeira, continuação da exploração dos recursos naturais) constituíram o que se chamou neocolonialismo (Kwame Nkrumah, 1965) ou colonialismo sem adjetivos, para o distinguir do colonialismo histórico (ocupação territorial por uma potência estrangeira). Hoje, o binarismo libertação /dependência assume vários significados, mas todos disfarçam a ausência de libertação e a substituição de uma dependência por outra. Assim, a guerra da propaganda diz-nos que a Europa se libertou da dependência da Rússia no que respeita ao fornecimento do gás natural e do petróleo para esconder o facto de que a Europa se tornou dependente dos EUA, pagando por aqueles produtos um preço quatro ou cinco vezes mais alto do que o que pagava à Rússia, o que está na origem do actual declínio económico da Europa. A organização dos BRICS+ tende a ser uma tentativa de fuga a esta alternância, mas nada garante que a dependência da China não esteja no horizonte

A paz e a guerra. É hoje consensual entre os historiadores norte-americanos que o país esteve quase sempre em guerra desde a sua fundação. Isto não impede a propaganda de converter os EUA no grande arauto da paz, garante da paz mundial, cujas intervenções bélicas no mundo foram sempre para garantir a paz. A mentira é evidente, mas ela só é desacreditada se a guerra de propaganda tiver êxito em identificar quem são os inimigos da paz que ameaçam o mundo com a guerra total. Esses países são, antes de mais, a Rússia, que, segundo a guerra de propaganda, invadiu a Ucrânia como primeiro passo para invadir e conquistar toda a Europa. O facto de a Rússia nunca ter invadido a Europa e ter sido invadida duas vezes, uma por Napoleão e outra por Hitler, não interessa a esta narrativa. Mas o país mais ameaçador é de longe a China, como ficou consagrado na última cimeira da NATO – uma ameaça global à paz. O facto de todos os produtos que os convidados estavam a utilizar durante a cimeira, de canetas e lenços de papel até microfones, instalações sonoras, pratos e talheres terem sido fabricados na China não teve qualquer relevância. Tão pouco tem relevância que nenhum país do Sul global acredite nesta narrativa e pense que a Rússia ou a China estão sedentos de guerra. Sabem bem que o contrário é verdade. Sedento de guerra está o deep state dos EUA e o complexo-militar industrial que hoje o sustenta. Esta manipulação é tão radical que aqueles que no Norte global defendem a paz são suspeitos, considerados “terroristas da paz”, passe a contradição nos termos.

Desta inversão propagandística emergem outras para lhe dar credibilidade. Assim, a NATO é considerada uma aliança defensiva, quando todos sabemos que só o foi durante a Guerra Fria e que, a partir da queda do Muro de Berlim, se transformou numa aliança ofensiva com um sinistro historial, da Jugoslávia à Líbia e à Síria, e que agora, desmentindo o seu próprio nome (aliança do Atlântico Norte), se está expandindo para a África, a Austrália e o Mar da China.

A outra inversão paralela é a substituição do conceito de desenvolvimento pelo conceito de segurança nacional. As missões norte-americanas em África visam predominantemente a segurança nacional (curiosamente, se é nacional, por que razão são estrangeiros a exigirem que os países “ajudados” garantam a sua segurança?). Por sua vez, a palavra “ajuda ao desenvolvimento” quase desapareceu do vocabulário internacional. A própria questão das migrações é tratada como uma questão de segurança (certamente para os países para onde se tenta imigrar, não para os países donde se emigra)

Sionismo e anti-semitismo. Uma das áreas centrais da guerra de propaganda ocidental fazer equivaler a crítica do sionismo ao anti-semitismo. Como o antissemitismo é hoje considerado crime em alguns países, criticar o sionismo equivale a cometar um crime. Não interessa à guerra de propaganda que os dois termos signifiquem coisas muito diferentes, que muitos judeus sejam anti-sionistas. O importante é defender Israel faça o que fizer, seja ou não um Estado pária, esteja ou não a cometer o mais selvagem e bárbaro genocídio depois do que foi cometido conta os judeus sob o comando de Hitler. E aqui surgem outras manipulações da propaganda. Para esta, é impossível comparar o Holocausto com o genocídio de Gaza, porque Holocausto há só um e não pode haver mais nenhum. Na mentira que a guerra de propaganda quer inculcar escondem-se duas realidades, uma velha outra tragicamente nova. A primeira é que Israel está ao serviço do imperialismo norte-americano no Medio Oriente, ou melhor, na Ásia ocidental. É uma peça fundamental para uma eventual guerra com a única potência que lhes pode fazer frente na região, o Irão. Aliás, o papel que os neoconservadores norte-americanos quiseram reservar para a Ucrânia foi o de ser o Israel da Europa, um país capaz de acabar com a pretensão de relativa autonomia que a Europa pretendeu ter depois de 1945. A segunda é que o Holocausto deixou de ter o monopólio dos piores crimes dos últimos cem anos cometidos pelos Europeus. Daqui em diante haverá dois holocaustos, mesmo que a um deles chamemos genocídio. Ambos resultam do mesmo crime europeu, ainda que no segundo a Europa tenha sido entusiasticamente secundada pelos EUA.

A vitória dos néscios

Não nos deve surpreender que, a maior parte das vezes, os imbecis triunfem mais no mundo do que os grandes talentos. Enquanto estes têm por vezes de lutar contra si próprios e, como se isso não bastasse, contra todos os medíocres que detestam toda e qualquer forma de superioridade, o imbecil, onde quer que vá, encontra-se entre os seus pares, entre companheiros e irmãos e é, por espírito de corpo instintivo, ajudado e protegido. O estúpido só profere pensamentos vulgares de forma comum, pelo que é imediatamente entendido e aprovado por todos, ao passo que o gênio tem o vício terrível de se contrapor às opiniões dominantes e querer subverter, juntamente com o pensamento, a vida da maioria dos outros.

Isto explica por que as obras escritas e realizadas pelos imbecis são tão abundante e solicitamente louvadas - os juízes são, quase na totalidade, do mesmo nível e dos mesmos gostos, pelo que aprovam com entusiasmo as ideias e paixões medíocres, expressas por alguém um pouco menos medíocre do que eles.

Este favor quase universal que acolhe os frutos da imbecilidade instruída e temerária aumenta a sua já copiosa felicidade. A obra do grande, ao invés, só pode ser entendida e admirada pelos seus pares, que são, em todas as gerações, muito poucos, e apenas com o tempo esses poucos conseguem impô-la à apreciação idiota e ovina da maioria. A maior vitória dos néscios consiste em obrigar, com certa frequência, os sábios a atuar e falar deles, quer para levar uma vida mais calma, quer para a salvar nos dias da epidemia aguda da loucura universal.

Giovanni Papini, "Relatório sobre os homens"

Brasil é impotente perante a fraude de Maduro, mas pode aprender a lição

A esperança é mesmo um veneno. Poucas horas depois de Nicolás Maduro se declarar vencedor de uma eleição roubada do início ao fim, sem nem se dar ao trabalho de publicar as atas eleitorais, já me pego torcendo para que os protestos contra seu regime que pipocam por todo o país cresçam e finalmente o destronem.

Levantes populares massivos podem forçar a renúncia do ditador? Podem. Mas, como ele tem o apoio das Forças Armadas, conta com milícias armadas paramilitares e já mostrou no passado que não tem o menor problema em matar centenas de manifestantes, não parece um desfecho provável. É apenas a esperança completamente irracional que insiste em manter viva sua pequena chama.


O Brasil bem que tentou ajudar na transição para a democracia. Fomos testemunha do Acordo de Barbados, em que Maduro e opositores se comprometeram a ter eleições presidenciais limpas, transparentes e justas em 2024. Esse acordo foi rasgado e jogado no lixo pelo ditador. De nossa parte, a participação cobra um preço: o governo brasileiro tem o dever de se pronunciar.

A urna venezuelana, assim como a nossa, imprime boletins de urna. Esses estão sendo sonegados pelo governo. Quanto mais tempo passa, maior a chance de surgirem boletins falsificados. Além dos boletins, as urnas venezuelanas também imprimem votos. Sua recontagem pública deve ser exigida pela oposição. Cabe ao Brasil se juntar a esse coro.

Nossa diplomacia pode e deve ser cautelosa e cobrar as atas eleitorais e demais provas antes de emitir seu veredito. Mas quando elas finalmente chegarem —ou, o que é mais provável, quando ficar claro que elas não chegarão—, será preciso fazer uma escolha: respaldar a farsa que vimos se desenrolar na Venezuela ou apontá-la com clareza.

O que não significa que o Acordo de Barbados tenha sido um erro. Era um possível caminho para a redemocratização. No passado, tentamos a estratégia oposta: o endurecimento e corte nas relações. O governo Bolsonaro chegou a reconhecer Juan Guaidó como presidente legítimo. Lá atrás, não havia como saber se daria certo. Foi um fracasso. Assim como foi um fracasso a tentativa de influenciar o regime por meio da diplomacia amigável.

Neste momento, mesmo os governos de esquerda não ditatoriais da América cobram transparência da Venezuela: Brasil, México, Chile; todos na mesma toada. Realisticamente, não deve importar muito. Maduro já se prontificou e expulsou os diplomatas de sete países que teceram críticas ao pleito.

A moral da história é que temos muito pouca influência sobre a política de nosso vizinho. Não resta muito a fazer. Sanções já se revelaram um erro. As sanções econômicas impostas pelos EUA aprofundaram a crise social e em nada enfraqueceram o regime. Pelo contrário, seu controle sobre a sociedade se fortaleceu. A sanção cai como uma luva no discurso populista, segundo o qual todos que se opõem ao governo são traidores da nação; e passam a ser lacaios dos inimigos externos.

É do nosso interesse manter comunicação aberta com o regime Maduro tendo em vista diversos objetivos: compra de energia, recebimento de dívidas antigas, questões da fronteira etc. Fora disso, qualquer ambição de ajudar na mudança de um regime que já prendeu centenas, matou milhares e presidiu sobre uma brutal catástrofe humanitária só nos desmoraliza. No momento, podemos apenas torcer pelos manifestantes —sabendo perfeitamente que Maduro não estava brincando quando falou em "banho de sangue". Mantenho viva a tola esperança de que a democracia ainda pode triunfar, bem como a convicção de que todos os que apoiam esse regime ou buscam emular seus atos deveriam ser banidos da vida pública brasileira.

A poeira que cobre o PT ameaça cobrir Lula se ele não abrir os olhos

O PT envelheceu – até aí, nenhuma novidade, é fato. Os partidos envelhecem e são poucos os que se renovam. E muitos dos novos partidos nascem velhos. Estamos repleto deles, alguns já mortos, apenas à espera de baixar à sepultura.

Resta saber se o fundador do PT, Luiz Inácio, que no passado detestava usar macacão de operário e não escondia seu amor pelas gravatas de marca; resta saber se ele envelheceu tanto ou mais do que o PT. Não parece, mas, em todo caso…

Apressado come cru. A Executiva Nacional do PT disse que o processo eleitoral na Venezuela foi uma jornada “pacífica, democrática e soberana”. E que o importante é que Nicolás Maduro, reeleito, “continue o diálogo com a oposição”.

Como foi uma jornada “pacífica e democrática?” Na Venezuela, a justiça é livre ou é controlada do alto por Maduro e os militares? A imprensa é livre? Qualquer cidadão pode manifestar-se livremente sem o risco de ser preso?

País algum é um paraíso. No mais rico do planeta, os Estados Unidos, quase 40 milhões de pessoas, ou 10% dos americanos, vivem em um estado de pobreza excessiva; é um percentual maior da população que o do Canadá e Coreia do Sul.


Mas a Venezuela, desde que Maduro assumiu o poder há 11 anos, já perdeu um quarto dos seus habitantes, pessoas que fugiram da falta de trabalho, de remédios e de condições de levar uma vida decente. Sem falar da falta de liberdade

A maior ameaça à reeleição de Maduro era a candidatura de Maria Corina Machado, professora, deputada da Assembleia Nacional da Venezuela entre 2011 e 2014, quando teve seu mandato cassado depois de liderar protestos contra o regime.

Em junho de 20223, ao sair na frente nas primárias da oposição para a eleição presidencial, Maria Corina foi proibida por 15 anos de ocupar cargos públicos pela Controladoria-Geral da Venezuela. Edmundo González a substituiu.

Menos de 24 horas após o Conselho Nacional Eleitoral anunciar a vitória de Maduro, Maria Corina afirmou que a oposição tem como provar que González foi o vencedor da eleição; é, portanto, o novo presidente da Venezuela.

Segundo ela, a oposição conseguiu reunir mais de 70% das atas de votação de cada zona eleitoral do país: “Acho relevante dizer que essas atas registram 2.759.256 milhões de votos para Maduro, e para Edmundo González, 6.275.130”.

Os dados da oposição mostram números diferentes do órgão eleitoral dirigido por um aliado de Maduro, que proclamou a vitória do ditador por 5.150.092 votos contra 4.445.978 de González, uma vez apuradas 80% das urnas.

Os críticos de Lula começaram a dizer que ele se meteu numa tremenda saia justa ao despachar para a Venezuela seu assessor especial, o ex-ministro Celso Amorim, com a missão de verificar se a eleição de domingo foi limpa ou suja.

Não, Lula fez certo. Meter-se-á, porém, numa tremenda saia justa se avalizar o resultado da eleição sem provas definitivas, e que convençam o mundo, de que não houve fraude. Então, sim, Lula terá envelhecido tanto ou mais rápido do que o PT.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Pensamento do Dia

 


A ilusão brasileia

O país onde se nasce enseja uma visão utópica. Não há isenção na hora de defini-lo. Abordo o Brasil com cuidados. Acerto e me equivoco. Mas pouco importa. Quem acertaria lidando com um país que ostenta tal magnitude, com um território que ao sobrevoá-lo corre-se o risco de se pensar no Caribe, mas ainda se está dentro de suas fronteiras. E que a despeito desta desmedida, não sofre turbulências linguísticas. Com o privilégio de ser mestiço. No corpo e na memória sincrética. Uma mestiçagem que vai além dos corpos, pois tingiu a alma e devora as entranhas da sua cultura, que é insidiosa e esplêndida, como deve ser.

O Brasil é um amálgama de todos seres e saberes. Entre tantas etnias, somos fundamentalmente ibéricos, filhos da imaginação portuguesa e espanhola. Herdeiros de um universo impregnado de ficção, do faz-de-conta, de peculiar noção de realidade. De uma realidade que, concebida como uma invenção pessoal, cada qual narra segundo seus desígnios. Propensos nós, por conta de uma vocação individualista, a opor-se aos projetos coletivos, às organizações sociais programadas para durar. Com exceção talvez da construção acelerada da capital Brasília, que corresponde às pirâmides do Egito.

O realismo átrio é pautado em geral por forte dose de fantasia. Assim, inventar como fantasiar fazem parte da índole social. Daí agradar-nos aparentar o que não somos, exibir o que nos falta, simular a posse de bens que não temos; pedimos emprestados ao vizinho. Como consequência, proclamamos, eufóricos, que somos amigos do rei, do presidente, comensal do prefeito da cidade. E para ostentar um valor que não temos, tiramos com facilidade do bolso do colete um nome famoso, insinuando intimidade com ele.

Esta dança de aparência e exibição há muito instalou-se entre nós. Somos cortesãos com gosto. O poder é o mel das nossas vidas. Originou-se de variadas etnias, mas especialmente da península ibérica, e prosperou na alma brasileira antes de existirmos como nação. Um comportamento social que nos leva a inquirir sobre a nossa gênese.

Até mesmo os intérpretes brasileiros, que se aventuraram a definir nossa índole brasileira, que tão bem espelha a nossa conduta pública e privada, não puderam assegurar-nos de que linhagem originamo-nos, e o que nos une e nos separa. Ou excursionar com as mãos apalpando o horizonte o que é puramente do âmbito do mistério. Ou mesmo dizerem com exatidão onde se resguarda a matriz do nosso ser. Dizerem por meio das vozes canônicas e populares o que significava ser brasileiro ao longo do século XIX ou não se reconhecer brasileiro nas turbulências do século XXI.

Acaso ser brasileiro, um desígnio que cobre o território nacional, do norte ao sul, portanto oito milhões de quilômetros quadrados, é simplesmente nascer dentro deste território, ou mesmo a beira do oceano Atlântico, já que somos donos das duzentas milhas marítimas? É nascer em um lugar molhado ou seco, que não se vê no mapa nem com lupa? Uma aldeia à margem da civilização, que a mãe, após parir o filho, inventou para assegurar-lhe que embora tivesse vindo ao mundo em um grotão era um brasileiro? Enquanto enchia-lhe a cabeça com devaneios, lendas, narrativas, afim de garantir-lhe certidão de nascimento e humanidade.

Ser brasileiro então é termos epiderme e alma mestiças, resultantes das andanças humanas pelo mundo? Apresentar-se às autoridades municiado do documentos onde está consignada a filiação? Como nome dos pais, data de nascimento, dados enfim que se incorporam a estatística e controlam a cidadania? De que etnia procede seu cabelo, se é fino, encrespado, enquanto o nariz tem narinas dilatadas, de origem bantu, e outros o apêndice curvado para indicar procedência semítica. Etnias que de nada servem aos brasileiros, vale mesmo é ser parte de todas as tribos, proclamar-se filho das andanças humanas pelo mundo.

Acaso ser brasileiro é ter idiossincrasias similares, paixões que se igualam, temperamentos que acenam com a mesma bandeira nacional onde está inscrito o dístico Ordem e Progresso? Nordestinos que padecem da sede e sulistas que se perdem nos pampas, tomando chimarrão como se fossem argentinos?
É-se brasileiro pela língua que se fala no lar, na cama, na via pública? Independente do sotaque que cada região ostenta. Um anasalado, outro mais gutural, outro mais afunilado. Mas cada sotaque soando como música aos ouvidos de quem se emociona com a fragmentação das características. Uma língua vinda de Portugal há mais de quinhentos anos. E que se tornou a língua dos quebrantos, dos desejos eróticos, da eloquência parlamentar, dos sentimentos recônditos. A língua dos amantes e da poesia. Mas também dos guerreiros, dos corruptos que hoje são tantos no território nacional, sobretudo na capital do país, dos ditadores que foram expulsos a partir da implantação democrática em 1988, dos vândalos, dos supliciados de outrora e dos que ainda padecem nas mãos dos que têm poder. Também dos astuciosos, mentirosos, dos falsos donos das palavras, dos doutrinários inescrupulosos que nos tempos atuais, da tribuna da capital, nos ludibriam a pretexto de nos servir. A língua dos vencedores, dos pecadores. Dos que pedem perdão sabendo que incorrerão de novo na mesma culpa.

Há tantas maneiras de ser brasileiro. É rir confrontado com o ridículo que atribuímos ao vizinho como causador da situação constrangedora. Rir para que apreciem o nosso humor. É chorar quando a dor é pública e o nosso pranto prova a excelência do nosso caráter, como somos sensíveis diante da dor alheia. É abraçar quem sofre como se a manifestação de pesar assegurasse ao outro que seríamos eternamente solidários.

Ser brasileiro é dilacerar as cordas vocais na hora do gol, como modo de levarmos a ilusão para casa e com ela enfrentar a semana entrante a despeito do transporte, das dívidas que se acumulam, da educação precária dos filhos, da moradia que um temporal derruba matando dois ou três familiares. É beber a cerveja que o vulgo e a emoção chamam de loura gelada, como se estivessem se referindo quem sabe à loira Marilyn Monroe, criando com a garrafa um vínculo erótico. De forma que busquemos similitudes em torno da mesa e transfiramos para mais tarde as divergências que nos apartem. Já que convém esquecer que são escassos os recursos que nos une. É dizer piadas que atraiam a plateia de vizinhos, tendo como sujeito da nossa crueldade alguém que era necessário castigar. Um gay, por exemplo, um travesti, uma prostituta. Não há piedade em qualquer nação.

Aparentamos, então, ser cervantinos, somos brasileiros como quando abraçamos quem está próximo, o vizinho na hora do gol que decide a partida, fortalecidos pela esperança de vencer os embates da semana entrante. Como quando, emotivos e vulgares, sorvemos a cerveja que cristaliza similitudes em torno da mesa e transfere para o futuro as divergências que ora nos apartam.

Ser brasileiro é aceitar o mistério, convencido de que sendo Deus brasileiro, cabe-lhe solucionar os nossos conflitos. É saber que o Brasil é nossa morada e alojamento dos nossos mortos, e que nada nos faltará. Nem teto, nem a sopa fumegante. A vida supre-nos com sol, sal, alegria e a esperança dos dias vindouros.

Afinal, nos trópicos brasileiros as colheitas se multiplicam como nas bodas de Canaã. É a terra que Pero Vaz de Caminha, em 1500, assegurou ao rei Dom Manuel, em Lisboa, que aqui o que se plantasse, vingaria. Assim nasceram as bananas da infância junto com o fausto do verbo da língua lusa portuguesa. Para nós, cidadãos, é uma espécie de paraíso que bonifica a memória tanto com lembranças como com o esquecimento. Pois temos a propriedade de esquecer o que convém apagar. Também a transcendência, a despeito dos cultos sincréticos, e Deus estar em todos os lugares, não prospera e o enigma não é respeitado. Não há, pois, vocação filosófica, como os alemães. E por conta da força da intriga e da iminência da metáfora, somos voltados para a ficção e para a poesia.

A memória, contudo, que os brasileiros cultivam, corresponde à matéria que guardamos do mundo. Como consequência, para sermos brasileiro, somos gregos, romanos, árabes, hebreus, africanos, orientais. Somos parte essencial das civilizações que aportaram nesta terra onde afloram a abundância, a alegria, a traição, a ingenuidade, o triunfo do bem e do mal, a ilusão, a melancolia. Atributos todos nutridos pelo feijão preto bem temperado, o arroz soltinho, o bolo de fubá, o bife acebolado, e os anjos feitos de açúcar e gema de ovo que enfeitam a paisagem atlântica e sertaneja.

No Brasil, ao longo dos séculos, surgiram narrativas astutas e mentirosas que pautam a nossa história. Heróis e malfeitores, de estirpes emaranhadas. Outrora abominados, hoje reverenciados. Quem se interessa pelo julgamento da história? Mas personagens afinados com as torpezas e as inquietudes do seu tempo. Acomodados à sombra da mangueira que resiste aos anos, enquanto dedilhavam as cordas do violão e do coração.

Berço de heróis e marinheiros, neste litoral os saveiros da imaginação cruzaram os mares, instalaram culturas feitas das sobras alheias. Quem aqui nasceu, ou aqui aportou, fincou no peito brasileiro bandeiras, hábitos, linguagem, loucas demências.

É necessário, portanto, que ao viajar para o Brasil, o estrangeiro se apresse em dominar sua história, suas leis que, conquanto promulgadas, dão margem a interpretações múltiplas, coteje se o tema do seu interesse se harmoniza entre os diversos poderes públicos de Brasília. Se de verdade é o paraíso fiscal em que sonhou investir seu capital volátil, uma pretensão que contraria nossos interesses associados ao real desenvolvimento econômico do país. Sobretudo convém auscultar os sentimentos do brasileiro, sua simpatia, sua astúcia, a vocação com que altera as regras da vida e do mercado econômico. De como no meio de qualquer processo altera leis e diretrizes. De como ganha um tempo que, para o investidor, constitui um prejuízo, mesmo que as autoridades não saibam o que fazer com o tempo que guardou. Convém, sim, sondar o coração do brasileiro, que se reparte entre a família e os amores clandestinos, através da leitura dos intérpretes da pátria, dos ficcionistas, dos poetas. Deles emana a leitura que lhes dará o detalhe, a medida, as substâncias do ser brasileiro. A exegeses que vai fundo a genealogia dos afetos. Que tentou chegar perto deste coração brasileiro. Talvez se deslumbre com este povo singular, que trata o cotidiano com admirável leveza. E que a despeito de carnavalizar a realidade, também ostenta sintomas de melancolia.

É necessário saber e levar em conta, diariamente, de que nasceu no Rio de Janeiro em 1828, durante o Segundo Reinado, o escritor Machado de Assis, com nome de batismo Joaquim, cujo determinismo falhou ao não prever a própria grandeza. E de cuja obra surge o verbo que nos define e concede à nação um destino solar e a alvorada de cada dia.

Amigos, sejam todos bem-vindos a esta terra amada.
Nélida Piñon

‘Pós-judeus’, identidade e trauma

Em novo livro, intelectuais judeus buscam resgatar um sentido emancipatório da judaicidade, cada vez mais silenciado por um Estado israelense militarizado que se coloca como guardião de uma história secular de perseguição. A partir desse caso dramático, "O Judeu Pós-judeu" reflete sobre os limites e os riscos de perspectivas que recorrem às noções de identidade e trauma social para lidar politicamente com legados de opressão

"Em certos momentos, face a acontecimentos públicos, sabemos que devemos recusar [...]. Há uma razão que não aceitamos, há uma aparência de razoabilidade que nos causa horror, há uma oferta de acordo e de conciliação que não mais escutaremos."

Essa é uma afirmação de Maurice Blanchot que abre "O Judeu Pós-judeu: Judaicidade e Etnocracia" (n-1 edições), de Bentzi Laor e Peter Pál Pelbart. Ela expressa nitidamente a natureza desse livro recém-lançado, tão singular quanto necessário.

A escrita da obra nasce de uma recusa. Dois intelectuais judeus, um morando no Brasil —conhecido como um dos grandes nomes da filosofia nacional, leitor rigoroso de Deleuze, Foucault, Nietzsche, editor com intervenções políticas maiores nesses últimos anos— e outro morando em Israel —dividindo seu tempo como engenheiro com atuação no setor de alta tecnologia e ativista ligado a ONGs de defesa de palestinos.

Dois intelectuais que decidem usar sua capacidade analítica e sua memória histórica para recusar o horror de ver o nome de seu pertencimento comunitário usado para nomear a indiferença à violência do massacre.


O livro, nesse sentido, não é apenas fruto de um gesto de recusa. Ele também nasce de um desejo de resgatar um sentido emancipatório da experiência da judaicidade, presente nessa impressionante tradição messiânica herética que vai de Franz Rosenzweig a Walter Benjamin e Jacques Derrida, entre outros, mas que aparece atualmente cada vez mais distante e silenciada. Tema esse também presente em trabalhos maiores de outro intelectual vinculado a tal messianismo herético: Michael Löwy.

Daí o par presente no subtítulo do livro, "judaicidade e etnocracia". Ele expressa o desejo de se compreender como legatário de uma história de "sofrimento, perseguição, exílio, fuga, sobrevivência" sem que tal legado se consolide na defesa de uma etnocracia que usará a experiência do trauma social para justificar a militarização da sociedade e práticas de apartheid, além da violência contra palestinos e palestinas descrita, perante a Corte Internacional de Justiça, como genocidária.

Há semanas, vimos países como a França escaparem por pouco de serem, neste exato momento, governados por um partido de extrema direita com vínculos orgânicos com o colaboracionismo da República de Vichy, com o colonialismo e com discursos e práticas abertamente racistas, xenófobas e supremacistas.

Não será um sintoma menor ver esse mesmo partido mobilizar o discurso do antissemitismo contra seus adversários de esquerda, em larga medida simplesmente comprometidos com a causa palestina, e receber apoio aberto de setores expressivos da comunidade judaica de seu país. Como se, para esses setores, estivéssemos diante de um "mal menor".

Haverá, contudo, quem se pergunte como foi possível essa inversão que faz da extrema direita mundial aliada objetiva das políticas hegemônicas na sociedade israelense contemporânea, seja ela figurada em Marine Le Pen, Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Aqueles que lerem o livro de Laor e Pelbart, em vez de seguir esse caminho macabro que vemos em analistas políticos brasileiros que procuram normalizar a extrema direita, podem encontrar uma importante reflexão a esse respeito.

A tese dos autores é que o risco desse alinhamento com a extrema direita era uma possibilidade sempre presente no projeto de constituição do Estado de Israel e sua permeabilidade a acordos com forças teológico-políticas que visavam consolidar um horizonte de etnocracia por meio daquilo que o livro chama de "combinação explosiva entre halachá (a lei religiosa) e o Estado".

Forças essas que voltam hoje como operadores centrais do jogo político, o que coloca questões importantes sobre a permeabilidade de nossas "democracias ocidentais" ao horizonte teológico-político.

No entanto, longe de apenas servir para a descrição de um caso específico e dramático, o livro aponta para um problema ainda mais estrutural que diz respeito aos riscos e limites dos usos de noções como identidade e trauma social no campo da política contemporânea, principalmente quando esses usos são mobilizados para a justificação da existência de um Estado.

Por isso, o livro de Laor e Pelbart é um documento fundamental para refletirmos sobre outras perspectivas políticas que, a partir da experiência concreta da opressão, creem encontrar refúgio e horizonte de luta mobilizando continuamente a identidade e a fidelidade ao trauma irreparável.

De fato, a afirmação da identidade pode inicialmente aparecer como modo de defesa contra experiências de violência e vulnerabilidade. Ela permite a consolidação da partilha da memória dos traumas sofridos, a construção de espaços de identificação e de luto.

A identidade, porém tem dois tempos. Há sempre o risco de ela paulatinamente se tornar um dispositivo de imunização, principalmente quando gerida pela figura de um Estado que se coloca como guardião do trauma coletivo. Pois, nesse caso, tudo se passa como se o Estado começasse a dizer: "Fomos violentados uma vez, ninguém velou por nós, temos pois todo o direito de utilizar o que for necessário para garantir nossa inviolabilidade e segurança contra todos os que apareçam colocando novamente em risco nossa integridade".

Pode-se dizer que essa é uma premissa que constitui o direito de defesa próprio a todo e qualquer Estado no mundo, mas seria o caso de lembrar, no caso da história recente israelense, que nenhum direito de defesa significa direito de massacre, que há um elemento importante a ser levado em conta quando a experiência do massacre sistemático do outro produz em mim apenas a pura indiferença e insensibilidade, além do desejo de definir quem irá ocupar minhas fronteiras.

Seria também o caso de se perguntar se o argumento do direito de defesa continua a valer quando recebo reações vindas de um território que ocupei ilegalmente durante mais de 50 anos, ignorando de forma soberana toda e qualquer lei internacional que me obriga à desocupação imediata.

Daí uma colocação tão central como esta que encontramos no livro: "Coabitar não é uma escolha, mas sim uma condição da vida política. Os eventos posteriores a 7 de outubro indicam que Israel quer decidir qual população não deve lhe fazer fronteira, e já está em curso um movimento que reivindica a remoção da população de Gaza [...]. Isso nada tem a ver com defesa, mas com despossessão".

Ou seja, a transformação do Estado em guardião do trauma social impede a consolidação de uma disposição genérica que aponte para uma solidariedade indiscriminada com toda situação de violência semelhante àquela sofrida, independentemente de quem seja agora o oprimido. Ela impede a compreensão de que o sujeito capaz de guardar o trauma social não é o Estado, mas algo como uma comunidade por vir, cujos limites ignoram as fronteiras e permitem um verdadeiro internacionalismo monádico capaz de se implicar de forma real com a alteridade e com a multiplicidade das vozes de suas dores.

Nesse sentido, o que "O Judeu Pós-judeu" mostra é como situações históricas concretas fornecem a oportunidade para a realização de horizontes de criação política. Criação daquilo que não estamos dispostos a abandonar, mesmo que apareça no presente como mera utopia.

A condição diaspórica e nômade da judaicidade, sua errância e desterritorialização históricas são transformadas pelos autores, seguindo reflexões de Hannah Arendt e Judith Butler, em armas contra a consolidação de uma identidade guerreira e militarizada, cada vez mais forte entre nós.

Elas são a potência a ser recuperada para a consolidação de uma política pós-identitária que ansiamos, que sentimos como uma latência dramática, continuamente silenciada por aqueles que aprenderam a mobilizar os medos sociais no interior de uma sociedade capitalista em crise profunda e que tenta sobreviver alimentando a ideia de que devemos aceitar que não há lugar para todos, que melhor vale lutar para ser o grupo restrito que irá atravessar o dilúvio.

A noção de um judeu pós-judeu mostra como a reflexão, vivenciada dramaticamente pela subjetividade, sobre o desconforto diante das desventuras da identidade, mas também sobre a fidelidade ao pertencimento a uma história soterrada pelo presente é uma força de abertura de futuros.

A mesma força que já levou um dia Isaac Deutscher a afirmar: "Religião? Sou ateu. Nacionalismo judaico? Sou um internacionalista. Em nenhum sentido, portanto, sou judeu. Contudo, sou judeu pela força de minha solidariedade incondicional com os perseguidos e exterminados. Sou judeu porque sinto a tragédia judaica como minha tragédia; porque sinto o pulso da história judaica".

Como lembram os autores, essa é uma força utópica que extrapola o destino singular de um povo.

Certidão de nascimento da Democracia


A maioria dos que até este momento pronunciaram discursos neste lugar fez o elogio deste costume antigo de honrar, ante o povo, aqueles soldados que morreram na guerra, mas a mim parece-me que as solenes exéquias que publicamente celebramos hoje são o maior elogio daqueles que, pelo seu heroísmo, as mereceram.

E também me parece que não se deva deixar à palavra de um só homem falar das virtudes e do heroísmo de tão bons soldados, nem tampouco acreditar no que se diga, quer seja um bom ou mau orador, pois é difícil expressar-se com justiça e moderar os elogios ao referir coisas das quais se pode ter apenas uma ligeira sombra da verdade.

Porque, se o que ouve foi testemunha dos acontecimentos e quer bem àquele de quem se fala, sempre acredita que o elogio é insuficiente em razão do que ele deseja e do que sabe, ao contrário, ao que o desconhece, impulsionado pela inveja, parece que há exagero no que supera a sua própria natureza.

Os elogios pronunciados em favor de outro podem ser suportados somente na medida em que se crê a si mesmo capaz de realizar das mesmas ações. O que nos supera excita a inveja e, além disso, a desconfiança.

Entretanto, já que os nossos antepassados admitiram e aprovaram este costume, eu devo também submeter-me a ele e tratar de satisfazer da melhor maneira possível os desejos e sentimentos de cada um de vós.

Começarei, pois, a elogiar os nossos antepassados. Pois é justo e equitativo render homenagem à recordação.

Esta região, habitada sem interrupção por gente da mesma raça, passou de mão em mão até hoje, guardando sempre a sua liberdade, graças ao seu esforço. E se aqueles antepassados merecem o nosso elogio, muito mais o merecem os nossos pais. À herança que receberam juntaram, ao preço do seu trabalho e dos seus desvelos, o poder que possuímos, que nos legaram. Nós o aumentamos. E no vigor da idade ainda alargamos esse domínio, abastecendo a cidade de todas as coisas necessárias, tanto na paz como na guerra.

Nada direi das proezas e façanhas guerreiras que nos permitiram alcançar a situação presente, nem da valentia que nós e os nossos antepassados demonstramos defendendo-nos dos ataques dos bárbaros ou dos gregos. Todos as conheceis e por isso não vos vou falar delas. Mas a prudência e arte que nos possibilitaram chegar a esse resultado, a natureza das instituições políticas e os costumes que nos trouxeram este prestígio, é necessário que sejam ressalvados antes de tudo. Depois, continuarei com o elogio aos nossos mortos.

Porque me parece que nas atuais circunstâncias é oportuno trazer â memória estas coisas e que será proveitoso que as ouçam tanto os cidadãos como os forasteiros que se reuniram, hoje, aqui.

A nossa constituição política não segue as leis de outras cidades, antes lhes serve de exemplo. O nosso governo chama-se democracia, porque a administração serve aos interesses da maioria e não de uma minoria.

De acordo com as nossas leis, somos todos iguais no que se refere aos negócios privados. Quanto à participação na sua vida pública, porém, cada qual obtém a consideração de acordo com os seus méritos e mais importante é o valor pessoal que a classe a que se pertence; isto quer dizer que ninguém sente o obstáculo da sua pobreza ou da condição social inferior, quando o seu valor o capacite a prestar serviços à cidade.

No que corresponde à República, pois, governamos livremente e, ainda, nas relações que mantemos diariamente com os nossos aliados e vizinhos, não nos irritamos porque ajam à sua maneira, nem consideramos como uma humilhação os seus prazeres e alegrias que, apesar de não nos produzir danos materiais, nos causam pesar e tristeza, ainda que sempre tratemos de dissimulá-los.

Ao mesmo tempo em que não temos receio nas nossas relações particulares, domina-nos o temor de infringir as leis da República; obedecemos aos magistrados e às regras que defendem os oprimidos e mesmo que não estejam editadas, a todas aquelas que atraem sobre quem as viola o desprezo de todos.

Para amenizar o trabalho, procuramos muitos recreios para a alma; instituímos jogos e festas que se sucedem a cada ano; e diversões que diariamente nos proporcionam deleite e diminuem a tristeza. A grandeza e a importância da nossa cidade atraem os tesouros de outras terras, de modo que não só desfrutamos dos nossos produtos como daqueles do universo inteiro.

No que se refere à guerra, somos muito diferentes dos nossos inimigos porque permitimos que a nossa cidade esteja aberta a todas as gentes e nações, sem vedar nem proibir a qualquer pessoa que adquira informes e conhecimentos, ainda que a sua revelação possa ser proveitosa aos nossos adversários; pois confiamos tanto em preparativos e estratégias como no nosso ânimo e vigor na ação.

Outros, no que se refere à educação, acostumam, mediante um treino fatigante desde criança, a sua potência viril; nós, apesar da nossa forma de viver, não somos menos ousados e valentes para afrontar o perigo quando a necessidade o exige. Boa prova disso é que os lacedemónios [espartanos] jamais se atreveram a entrar na nossa terra sem que estejam acompanhados de todos os aliados; enquanto nós, sem ajuda nenhuma, fizemos incursões no território dos nossos vizinhos e muitas vezes, sem grandes dificuldades, derrotamos em país estrangeiro adversários que defendiam os seus próprios lares.

Nenhum dos nossos inimigos se atreveu a atacar-nos quando reunimos todas as nossas forças, tanto por causa da nossa experiência nas coisas do mar, como pelos muitos destacamentos que temos em diversos lugares do nosso território.

Se por acaso os nossos inimigos derrotam alguma vez um destacamento dos nossos, se jactam de nos haver vencido a todos e se, pelo contrário, os derrota uma parte das nossas tropas, dizem que foram atacados por todo o nosso exército.

E efetivamente preferimos o repouso e o sossego quando não estamos obrigados, por necessidade, ao exercício de trabalhos penosos e, também, ao exercício dos bons costumes, a viver sempre com o temor das leis; de forma que não nos expomos ao perigo quando podemos viver tranquilos e seguros, preferindo a força da lei ao ardor da valentia.

Temos a vantagem de não nos preocupar com as contrariedades futuras. Quando chegam estas, enfrentamo-las com boa têmpera, como os que sempre estiveram acostumados com elas.

Por estas razões e muitas mais ainda, a nossa cidade é digna de admiração. Ao mesmo tempo em que amamos simplesmente a beleza, temos uma forte predileção pelo estudo. Usamos a riqueza para a acção, mais que como motivo de orgulho, e não nos importa confessar a pobreza, somente considerando vergonhoso não tratar de evitá-la.

Por outro lado, todos nos preocupamos de igual modo com os assuntos privados e públicos da pátria, que se referem ao bem comum ou privado, e gentes de diferentes ofícios se preocupam também com as coisas públicas.

Nós consideramos o cidadão que se mostra estranho ou indiferente à política como um inútil à sociedade e à República.

Decidimos por nós mesmos todos os assuntos sobre os quais fazemos, antes, um estudo exato: não acreditamos que o discurso entrave a acção; o que nos parece prejudicial é que as questões não se esclareçam, antecipadamente, pela discussão.

Por isto nos distinguimos, porque sabemos empreender as coisas juntando a audácia à reflexão, mais que qualquer outro povo.

Os demais, algumas vezes por ignorância, são mais ousados do que o que requer a razão, e alguns, por querer fundamentar tudo em raciocínios, são lentos na execução.

Seria justo ter por valorosos aqueles que, ainda conhecendo exactamente as dificuldades e vantagens da vida, não recusam o perigo.

No que se refere à generosidade, também somos diferentes dos demais, porque procuramos fazer amigos, dispensando-lhes benefícios ao invés de recebê-los, pois o que faz um favor a outro está em melhor condição do que quem o recebe para conservar a sua amizade e benevolência, enquanto o favorecido sabe que há-de devolver o favor, não como se fizesse um benefício mas como se pagasse uma dívida. Também somos os únicos em usar a magnificência e liberalidade com os nossos amigos e não tanto por cálculo da conveniência como pela confiança que a liberdade dá.

Numa palavra, afirmo que a nossa cidade é, em conjunto, a escola da Grécia, e creio que os cidadãos são capazes de conseguir uma completa personalidade para administrar e dirigir perfeitamente outras gentes, em qualquer aspecto.

E tudo isto não é um exagero retórico, ditado pelas circunstâncias, mas a verdade mesma; o poderio que conquistamos com estas qualidades o demonstra.

Atenas possui mais fama que as demais. É a única cidade que não dá motivos de rancor aos seus inimigos pelos danos que lhes inflige, nem desprezo aos seus súbditos pela indignidade dos seus governantes. Esta grandeza é demonstrada por importantes testemunhos é de uma maneira definitiva para nós e para os nossos descendentes. Eles terão uma grande admiração por nós sem que tenhamos necessidade dos elogios de um Homero, nem de qualquer outro, para adornar os nossos feitos com elogios poéticos, capazes de seduzir mas cuja ficção contradiz a realidade das coisas.

É sabido que, graças ao nosso esforço e ousadia, conseguimos que aterra e o mar por inteiro fossem acessíveis à nossa audácia, deixando em toda a parte monumentos eternos das derrotas infligidas aos nossos inimigos e das nossas vitórias.

Esta é a cidade, pois, que com razão estes homens não quiseram deixar que fosse manchada e pela qual morreram valorosamente no combate; os nossos descendentes estão dispostos a sofrer tudo para assegurar a sua defesa.

Por estas razões me estendi a falar da nossa cidade já que queria demonstrar-lhes que não lutamos pelo mesmo que os outros, mas por algo tão grande que nada o iguala, e também para que o elogio dos homens objecto do nosso discurso fosse claro e veraz. Terminei, já, com a parte principal. A glória da República deve-se ao valor desses soldados e de outros homens semelhantes. Os seus actos estão à altura da sua reputação e existem poucos gregos dos quais se possa dizer o mesmo.

No meu entender, nada demonstra melhor o valor de um homem que este final, que entre os jovens é um indício e uma confirmação entre os velhos.

Com efeito, aqueles que não podem prestar outro serviço à República é justo que se mostrem valorosos na guerra, pois apagaram o mal com o bem e os seus serviços públicos compensaram de sobra os equívocos da sua vida privada. Nenhum deles se deixou seduzir pelas riquezas ao ponto de preferir os defeitos ao seu dever, nem tão-pouco nenhum deixou de se expor ao perigo com a esperança de escapar da pobreza e fazer-se rico, convencidos de que era preciso o castigo do inimigo ao gozo destes bens, e visando este risco como o mais admirável, quiseram afrontá-lo para castigar o inimigo e fazer-se dignos destas honras.

Tiveram confiança neles mesmos no momento da batalha e ao encontrar-se ante o perigo, sustentados pela esperança ante a incerteza do êxito. Preferiram buscar a sua salvação na destruição do inimigo, e antes na morte que no covarde abandono; assim escaparam à desonra e perderam a vida.

No azar de um instante nos deixaram, alcançando o mais alto cume da glória e não a baixa recordação do seu medo.

Dessa forma é que se mostraram filhos dignos da cidade. Os sobreviventes devem fazer todo o possível para conseguir uma melhor sorte, mas devem-se mostrar ao mesmo tempo intrépidos contra os seus inimigos, considerando que não se podem limitar às palavras de um discurso toda a utilidade e proveito.

Também seria ocioso enumerar diante de gente tão perfeitamente informada, como o sois vós, todos os esforços dirigidos à defesa do país. Quanto maior lhes pareça o poder da cidade, mais deveis pensar que existiram homens valorosos, que souberam praticar a audácia como sentimento de um dever e se conduzir com honra durante toda a vida.

E se bem que o sucesso nem sempre tenha correspondido aos seus esforços, não quiseram privar Atenas do seu valor e sacrificaram a sua virtude como o mais nobre tributo, fazendo o sacrifício da sua vida e adquirindo, cada um por sua parte, uma glória imortal que lhes deu a sepultura com honra.

E esta terra onde agora descansam não é tanto como a recordação imortal sempre renovada e enfocada em discursos e comemorações. Os homens eminentes têm por túmulo a terra inteira.

O que atrai a atenção para eles não são somente as inscrições funerárias gravadas na pedra; quer na sua pátria, quer nos países mais longínquos, a sua memória persiste, apesar dos epitáfios, conservada no pensamento e não nos monumentos.

Invejai, pois, a sua sorte, dizei que a liberdade se confunde com a felicidade e o valor com a liberdade e não olheis com desprezo os perigos da guerra. Não penseis que os maus e os covardes, que não têm esperança de melhor sorte, são mais razoáveis em guardar a sua vida que aqueles cuja existência está exposta ao perigo e que se aventurara? a passar da boa à má fortuna e que, se fracassam, verão a sua sorte completamente transformada. Pois para um homem sábio e prudente é mais doloroso a covardia que uma morte enfrentada com valor e animada pela esperança comum.

Assim, não me compadeço pela sorte dos pais que estão presentes, limitar-me-ei a consolá-los. Eles sabem, eles que cresceram entre as vicissitudes da vida, que a ventura só é para os que obtêm, como seus filhos, ó fim o mais glorioso ou, como eles, o luto o mais honroso e para os quais o termo da vida é a medida da felicidade.

Sei muito bem o quanto é difícil persuadir-vos. Ante a felicidade dos demais, felicidade de que haveis gozado, chegareis em muitos momentos a recordar a memória dos vossos desaparecidos. Sofremos menos quando nos privamos de bens dos quais não aproveitamos do que com a perda daqueles aos quais estamos habituados. É preciso, pois, sofrer pacientemente e se consolar com a esperança de ter outros filhos, vós aos quais a idade ainda o permite. Os novos filhos substituirão na família os que não existem mais; e a cidade ganhará uma vantagem dupla: a sua população não diminuirá e a segurança estará garantida, pois os que entregam seus filhos ao perigo pelo bem da República, como o fizeram os que perderam os seus nesta guerra, inspiram mais confiança que os que não fazem.

Agora, cumpre que cada um se retire, uma vez que chorou na hora dos desaparecidos.

Os que não têm esta esperança, recordem a sorte que tiveram gozando de uma vida que na sua maior parte foi feliz; o resto será curto; que a glória dos vossos console a vossa dor; só o amor da glória não envelhece e, com o passar da idade, o prazer não consiste, como pretendem alguns, em amontoar riquezas, mas em inspirar respeito.

E vós, filhos e irmãos destes mortos, pensai a que vos obriga o seu valor e heroísmo. Não há homem que não elogie a virtude e o esforço dos que morreram. A vós, apesar dos vossos méritos, será muito difícil alcançar o seu mesmo nível, e não digamos superá-lo. Porque entre os vivos, o desejo da emulação provoca sempre a inveja, enquanto todos elogiam e honram os que morrem.

Também farei menção às mulheres que ficaram viúvas, expressando o meu pensamento numa breve exortação: toda a sua glória consiste em não mostrar-se inferiores à sua natureza e que se fale delas o menos possível entre as gentes, tanto no seu bem como no seu mal.

Terminarei. Conforme as leis, as minhas palavras expressaram o que me pareceu útil. Quanto às honras reais, foram elas rendidas em parte aos que aqui jazem, mais honrados pelas suas obras do que pelas minhas frases.

Doravante, os seus filhos, se são menores, serão educados até à adolescência, correndo os gastos a cargo da República. Uma coroa é oferecida pela cidade a fim de homenagear as vítimas destas batalhas e seus sobreviventes, pois os povos que recompensam a virtude com magníficos prémios obtêm também os melhores cidadãos.
Péricles (Atenas, 430 a C.)

Que inveja de Maduro não deve estar sentindo Bolsonaro

À época, deputado federal pela segunda vez, Jair Messias Bolsonaro, afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética, celebrou a eleição para presidente da Venezuela do coronel Hugo Chávez, que governaria o país por 14 anos, de 1999 até sua morte em 2013.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro disse:

“Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil. Acho ele ímpar. Pretendo ir à Venezuela e tentar conhecê-lo. Ele não é anticomunista e eu também não sou. Na verdade, não tem nada mais próximo do comunismo do que o meio militar”.

Também disse que Chávez remetia a Castelo Branco, primeiro presidente do Brasil durante a ditadura militar, entre 1964 e 1967: “Acho que ele vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força. Só espero que a oposição não descambe para a guerrilha, como fez aqui”.


A esta hora, que inveja Bolsonaro não deve estar sentindo de Nicolás Maduro, que sucedeu a Chávez, governa a Venezuela há 11 anos, e que no início da madrugada de hoje, com 80% dos votos apurados por um Conselho Eleitoral sob seu controle, foi declarado reeleito para um novo mandato de seis anos.

Não governa: com o apoio dos militares, Maduro desgoverna a Venezuela que já perdeu 20% de sua população, em fuga por falta de empregos, remédios e de condições mínimas para levar uma vida decente. Bolsonaro bem que tentou, mas não conseguiu se eternizar no poder como Maduro. Daí a inveja.

A levar-se em conta o que apontaram as pesquisas de intenção de voto realizadas até sábado, Maduro seria derrotado com folga pelo candidato da oposição, o diplomata Edmundo González Urrutia. As pesquisas subestimaram a força da máquina do chavismo especializada em repressão e fraudes.

Há duas maneiras de contar votos na Venezuela: uma digital, executada pelo órgão eleitoral do país liderado por um aliado de Maduro; e a outra em papel impresso feita por cada máquina de votação nos locais de votação. A contagem em papel serve para certificar se a contagem digital está correta.

Mas este ano, em zonas eleitorais-chave, seus responsáveis se recusaram a entregar as contagens em papel aos fiscais de partidos. Este foi o caso em uma das maiores estações de votação em Caracas, a escola Rafael Napoleon Baute, e na segunda maior cidade da Venezuela, Maracaibo.

Quando os apoiadores do candidato da oposição no Liceo Andrés Bello, em Caracas, reclamaram de terem sido impedidos de acessar a contagem de votos em papel, uma gangue de pelo menos 150 apoiadores de Maduro, em motocicletas, chegou gritando cânticos pró-governo.

Um repórter do Washington Post viu os homens, encapuzados e vestidos de preto, começarem a socar e chutar aqueles do lado de fora do centro de votação, ferindo várias pessoas. “Viva Nicolás”, eles gritaram. Episódios como esse se repetiram em vários pontos do país e foram relatados por testemunhas.

“O fascismo na Venezuela, terra de Bolívar e Chávez, não passará. Nem hoje nem nunca”, assegurou Maduro no primeiro pronunciamento após o anúncio de sua vitória. Os presidentes de Cuba, Nicarágua, Bolívia e Honduras, ligados ao chavismo, logo se apressaram em parabenizá-lo.

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, não: cobrou a apresentação dos relatórios de contagens dos votos em papel. Até o momento em que escrevo, o governo brasileiro segue calado.

domingo, 28 de julho de 2024

Pensamento do Dia

 


Venezuela, entre a ditadura que segue e a democracia que volta


Haverá um banho de votos na Venezuela se a oposição à ditadura de Nicolás Maduro ganhar hoje a eleição presidencial com uma larga vantagem. Haverá um banho de sangue caso Maduro perca e não reconheça a derrota de imediato.

Maduro voltou, ontem, a falar em banho de sangue, desta vez ao reunir-se em Caracas com embaixadores de outros países, entre eles o do Brasil. Culpou de antemão o “imperialismo americano” por um eventual banho de sangue e disse:

“Não há possibilidade de que eu não vença. Não poderão evitar o que está no ‘pacto secreto dos livros celestiais’, previsto para o futuro do nosso país. Os piores tempos ficaram para trás.”

Está nas mãos dos militares, sócios de Maduro desde a morte do coronel Hugo Chávez há 11 anos, evitar o banho de sangue. Basta que eles declarem que o presidente eleito, seja qual for, tomará posse. A dúvida é se farão isso.

As pesquisas de intenção de voto apontam o favoritismo do candidato da oposição, o diplomata Edmundo González Urrutia, com 20 pontos percentuais à frente de Maduro. Mas pouca gente em Caracas acredita que isso seja possível.


Uma vitória de Urritia deverá ser por uma estreita margem de votos. É verdade que a seu favor, Urritia tem o desejo imenso de mudanças dos venezuelanos e a realidade de um país falido, onde a inflação bate recorde e a miséria campeia.

Contra Urritia, porém, move-se a gigantesca e bem azeitada máquina do chavismo que manda no país há 25 anos em parceria com os militares. Maduro sabe como fraudar uma eleição porque já fraudou mais de uma.

As Forças Armadas venezuelanas contam com cerca de 115 mil militares no serviço ativo e 8 mil na reserva. Dos 34 ministérios do governo Maduro, 12 são dirigidos por militares. Petróleo, mineração e comércio são áreas controladas por eles.

Segundo agências americanas antidrogas, os militares também comandam a narco via de escoamento de cocaína pelo rio Orinoco. Aos olhos do governo dos Estados Unidos, Maduro é suspeito de envolvimento com o tráfico de drogas.

Por fome, falta de empregos e remédios, 8 milhões de venezuelanos fugiram da Venezuela. Dada às restrições criadas pelo governo, menos de 70 mil deles poderão votar no exterior. O próximo presidente só tomará posse em janeiro.

É nesse vácuo de seis meses que poderá acontecer muita coisa se Maduro não renovar seu mandato. A autoridade máxima eleitoral da Venezuela anunciará o nome do vencedor por volta das 7 horas desta segunda-feira, horário de Brasília.

A IA pode nos salvar ou pode construir vírus para nos matar

Aqui está uma pechincha das mais assustadoras: por menos de US$ 100.000, agora pode ser possível usar inteligência artificial para desenvolver um vírus que pode matar milhões de pessoas.

Essa é a conclusão de Jason Matheny, presidente da RAND Corporation, um think tank que estuda questões de segurança e outros assuntos.

“Não custaria mais criar um patógeno capaz de matar centenas de milhões de pessoas do que um patógeno capaz de matar apenas centenas de milhares de pessoas”, Matheny me disse.


Em contraste, ele observou que poderia custar bilhões de dólares para produzir uma nova vacina ou antiviral em resposta.

Contei a Matheny que eu era chefe do escritório do The Times em Tóquio quando um culto religioso chamado Aum Shinrikyo usou armas químicas e biológicas em ataques terroristas, incluindo um em 1995 que matou 13 pessoas no metrô de Tóquio. "Eles seriam capazes de causar ordens de magnitude a mais de dano" hoje, disse Matheny.

Sou membro de longa data do Aspen Strategy Group, uma organização bipartidária que explora questões de segurança global, e nossa reunião anual deste mês focou em inteligência artificial. É por isso que Matheny e outros especialistas se juntaram a nós — e depois nos assustaram.

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No início dos anos 2000, alguns de nós nos preocupamos com a reintrodução da varíola como uma arma biológica se o vírus fosse roubado dos laboratórios em Atlanta e na região de Novosibirsk, na Rússia, que retêm o vírus desde que a doença foi erradicada. Mas com a biologia sintética, agora ele não teria que ser roubado.

Alguns anos atrás, uma equipe de pesquisa criou um primo do vírus da varíola, a varíola equina, em seis meses por US$ 100.000, e com a IA poderia ser mais fácil e barato refinar o vírus.

Uma razão pela qual as armas biológicas não têm sido muito usadas é que elas podem ter um efeito bumerangue. Se a Rússia liberasse um vírus na Ucrânia, ele poderia se espalhar para a Rússia. Mas um general chinês aposentado levantou a possibilidade de uma guerra biológica que tenha como alvo raças ou etnias específicas (provavelmente de forma imperfeita), o que tornaria as armas biológicas muito mais úteis. Alternativamente, pode ser possível desenvolver um vírus que mataria ou incapacitaria uma pessoa específica, como um presidente ou embaixador problemático, se alguém tivesse obtido o DNA dessa pessoa em um jantar ou recepção.

As avaliações de pesquisas sobre alvos étnicos feitas pela China são confidenciais, mas podem ser o motivo pelo qual o Departamento de Defesa dos EUA disse que a ameaça mais importante de longo prazo da guerra biológica vem da China.

A IA também tem um lado mais esperançoso, é claro. Ela traz a promessa de melhorar a educação, reduzir acidentes automobilísticos, curar cânceres e desenvolver novos fármacos milagrosos.

Um dos benefícios mais conhecidos está no dobramento de proteínas , que pode levar a avanços revolucionários no tratamento médico. Os cientistas costumavam passar anos ou décadas descobrindo as formas de proteínas individuais, e então uma iniciativa do Google chamada AlphaFold foi introduzida, que podia prever as formas em minutos. "É o Google Maps para a biologia", Kent Walker, presidente de assuntos globais do Google, me disse.

Desde então, cientistas têm usado versões atualizadas do AlphaFold para trabalhar em produtos farmacêuticos, incluindo uma vacina contra a malária, uma das maiores causas de morte de humanos ao longo da história.

Portanto, não está claro se a IA nos salvará ou nos matará primeiro.

Cientistas há anos exploram como a IA pode dominar a guerra, com drones autônomos ou robôs programados para encontrar e eliminar alvos instantaneamente. A guerra pode vir a envolver robôs lutando contra robôs.

Assassinos robóticos serão impiedosos no sentido literal, mas não necessariamente serão particularmente brutais. Eles não estuprarão e também podem ser menos propensos do que soldados humanos à fúria que leva a massacres e torturas.

Uma grande incerteza é a extensão e o momento das perdas de empregos — para motoristas de caminhão, advogados e talvez até mesmo programadores — que poderiam amplificar a agitação social. Uma geração atrás, as autoridades americanas estavam alheias à maneira como o comércio com a China custaria empregos nas fábricas e aparentemente levaria a uma explosão de mortes por desespero e à ascensão do populismo de direita. Que possamos fazer melhor na gestão da interrupção econômica da IA

Um motivo para minha cautela com a IA é que, embora eu veja a promessa dela, os últimos 20 anos têm sido um lembrete da capacidade da tecnologia de oprimir. Os smartphones eram deslumbrantes — e peço desculpas se você estiver lendo isso no seu telefone — mas há evidências que os vinculam à deterioração da saúde mental dos jovens. Um ensaio clínico randomizado publicado neste mês descobriu que crianças que desistiram de seus smartphones desfrutaram de bem-estar melhorado.

Ditadores se beneficiaram de novas tecnologias. Liu Xiaobo, o dissidente chinês que recebeu o Prêmio Nobel da Paz, pensou que “a internet é um presente de Deus para o povo chinês”. Não foi bem assim: Liu morreu sob custódia chinesa, e a China usou IA para aumentar a vigilância e apertar os parafusos dos cidadãos.

A IA também pode facilitar a manipulação de pessoas, de maneiras que lembram Orwell. Um estudo divulgado este ano descobriu que quando o Chat GPT-4 tinha acesso a informações básicas sobre as pessoas com quem interagia, era cerca de 80% mais provável persuadir alguém do que um humano com os mesmos dados. O Congresso estava certo em se preocupar com a manipulação da opinião pública pelo algoritmo TikTok.

Tudo isso ressalta por que é essencial que os Estados Unidos mantenham sua liderança em inteligência artificial. Por mais que possamos ter receio de pisar fundo no acelerador, esta não é uma competição na qual é OK ser o segundo colocado em relação à China.

O presidente Biden está no topo disso, e os limites que ele colocou no acesso da China aos chips de computador mais avançados ajudarão a preservar nossa liderança. O governo Biden recrutou pessoas de primeira linha do setor privado para pensar nessas questões e emitiu uma importante ordem executiva no ano passado sobre segurança de IA, mas também precisaremos desenvolver novos sistemas nos próximos anos para melhorar a governança.

Eu escrevi sobre imagens e vídeos nus deepfake gerados por IA , e a irresponsabilidade tanto das empresas deepfake quanto dos principais mecanismos de busca que direcionam tráfego para sites deepfake. E empresas de tecnologia têm usado periodicamente imunidades para evitar responsabilização por promover a exploração sexual de crianças. Nada disso inspira confiança nas habilidades dessas empresas de se autogovernarem de forma responsável.

“Nós nunca tivemos uma circunstância em que a tecnologia mais perigosa e mais impactante residisse inteiramente no setor privado”, disse Susan Rice, que foi conselheira de segurança nacional do presidente Barack Obama. “Não pode ser que as empresas de tecnologia no Vale do Silício decidam o destino da nossa segurança nacional e talvez o destino do mundo sem restrições.”

Acho que está certo. Gerenciar a IA sem sufocá-la será um dos nossos grandes desafios, à medida que adotamos talvez a tecnologia mais revolucionária desde que Prometheus nos trouxe o fogo.

O acordão tem DNA

Pesquisa recente, "a cara da democracia", revela uma surpreendente sobreposição de opiniões por parte de eleitores lulistas e bolsonaristas. Mas passa ao largo da máscara elitista dessa face, a pletora dos acordos secretos de poder que põem em segundo plano as leis republicanas. A imprensa tem chamado isso de "acordão": uma miríade de arranjos políticos, judiciários e empresariais para anular condenações, liberar fraudadores do erário, isentar generais do golpismo. São muitas as "sangrias" a se estancar.


Talvez a exposição moral disso tudo ainda surpreenda parte da consciência civil. Mas dificilmente o senso comum. Este já pressentia que a roubalheira seria contornada pela correlação de forças que dirige o sistema. Pressentimento é o que a academia chamaria de episteme do comum, isto é, o saber nascido da experiência dos costumes e do cotidiano nas ruas.

Uma dessas formas epistêmicas provém da comunidade afro-litúrgica, outro tipo de reflexão sobre o mundo. Nesse universo, palavra-chave é "acerto", a negociação inerente aos modos de coexistência entre os entes vivos do planeta. É o conceito de um popular acordo profundo, análogo ao desenvolvido pelo filósofo baiano João Carlos Salles, em torno de uma erudita "gramática dos acordos profundos" (em "Gatos, Peixes & Elefantes"). Tudo se pactua por regras de linguagem. Até mesmo a fé se define como confiança no acerto simbólico entre homens e divindades.

Vem daí o primado das regras, sempre concretas, partilhadas pelo comum. Deveria valer para toda a sociedade. Se leis não são mediadas por regras conhecidas de todos, decai por um lado a legitimidade democrática e cresce por outro o descrédito popular na administração da vida social.

Sem regras públicas, na surdina dos acordos fisiológicos em torno das emendas parlamentares, esquerda burocrático-partidária e direita são rótulos distintos apenas para fins eleitorais. Ambas fecham os olhos ao retorno do "petrolão" e à blindagem da Câmara, hoje sindicato do coronelismo eleitoral, na sua mutação em câmara de horrores.

Quanto ao cardinalato togado, se velou para evitar a erosão da fachada democrática do país pela vertigem fascista, agora, em meio a acordos conciliatórios e à promiscuidade das libações internacionais, zela mais pelo DNA patrimonialista da República do que pela Constituição.

Acordão não tem de fato nada a ver com o acerto simbólico da vida comum, é um tapa-olho na cara da democracia. Nem é sequer coisa nova: à imagem do besouro rola-bosta, que carrega às costas o mesmo velho entulho, é o eterno retorno do pacto extrativista, de que o povo sempre esteve excluído.

Agora vai! Finalmente, temos Kamala Harris

Nos anos 1970, em um restaurante no Rio, Fernanda Montenegro sentou-se casualmente ao lado de uma mesa de americanos. Com ela, seu filho Claudio, ainda garoto. Os americanos falavam alto. Claudio perguntou a Fernanda: "Mamãe, eles são de verdade ou é só no filme?". Claudio tinha razão de duvidar. Com os americanos, nunca podemos ter certeza. A começar pelo cinema que eles faziam nos anos dourados. Nada era o que parecia ser.


Em plena 2ª Guerra, John Wayne e Errol Flynn interpretavam supersoldados dizimando nazistas. Logo eles que, na vida real, não foram à guerra e nunca vestiram uma farda —e, no futuro, o biógrafo Charles Higham acusaria Flynn de ter sido informante para os alemães. Jerry Lewis, um dos cômicos mais amados do mundo, era intragável como pessoa, segundo opinião unânime em Hollywood. Já Boris Karloff, o maior monstro do cinema, era um doce —educado, gentilíssimo, botava presentes de Natal para as crianças na porta de seus vizinhos no Edifício Dakota, onde morava.

Rita Hayworth não tinha testa —ganhou uma à custa de eletrólise. Marlene Dietrich teve os sisos e molares arrancados para ficar com o rosto afilado. Victor Mature, que fez Sansão em "Sansão e Dalila" (1949), morria de medo do leão dopado que tinha de enfrentar em cena. E Humphrey Bogart, Gary Cooper, John Wayne, James Stewart, Fred Astaire e Gene Kelly usavam peruca.

Nos filmes clássicos americanos, as cenas externas noturnas eram filmadas de dia, com a chamada "noite americana". Ninguém fazia a barba até o fim —limpava a espuma com a toalha e já estava impecavelmente barbeado. Ninguém terminava uma refeição —era sempre interrompido e tinha de abandonar a mesa. Nas pancadarias no saloon, com espelhos partidos e socos a granel, ninguém saía de mão ou queixo quebrado.

E que bom que, finalmente, temos Kamala Harris. Ela é de verdade ou os EUA são só no filme?
Ruy Castro