quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Série inédita brasileira mostra salto da desigualdade

É preciso crescer o bolo para depois distribuí-lo. O debate sobre a frase clássica da ditadura brasileira para explicar o salto da desigualdade na década de 1960 acaba de ganhar um novo capítulo. Série histórica inédita sobre a concentração de renda nas mãos do 1% mais rico da população do Brasil, de 1927 a 2013, mostra que a acumulação de renda no topo da pirâmide deu um salto nos primeiros anos de regime militar. Os novos números identificam um aumento do fosso entre os mais ricos e os mais pobres antes domilagre econômico. Ou seja, não foi apenas em decorrência do crescimento acelerado da economia iniciado em 1968 —e da demanda insatisfeita por trabalhadores mais qualificados provocado por ele— que a alta da desigualdade se deu. As medidas dos anos de recessão e o ajuste do começo do período, que incluíram isenções fiscais, arrocho salarial e repressão a sindicatos, foram determinantes para a reversão rápida, entre 1964 e 1968, de uma trajetória de queda da disparidade.

O 1% mais rico na França tem 10% da renda, nos EUA a taxa é de 20%. No Brasil, 25%, a mais concentrada e desigual entre as grandes economias
Em 1965, a fração recebida pelo 1% mais rico, considerando apenas os rendimentos tributáveis brutos (só o passível de pagar tributo), era cerca de 10% do bolo total. Apenas três anos depois, a cifra vai a 16%. Em outras palavras, se em 1965 o 1% mais rico ganhava cerca de 10 vezes a renda média do país, em 1968 esse número subiu para 16 vezes. É a partir desse patamar, já alto, que durante o milagre, a disparidade segue aumentando.

As conclusões acima fazem parte dos resultados preliminares do estudo feito por Pedro Ferreira de Souza, pesquisador do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e da UnB. Souza integra um núcleo pioneiro do estudo da desigualdade no Brasil, que vem usando, pela primeira vez sistematicamente, informações das declarações do Imposto de Renda de quase um século de registros tributários brasileiros. Ao lado de Fabio Castro e do orientador Marcelo Medeiros (UnB e IPEA), utiliza a mesma metodologia do francês Thomas Piketty, que deu novo impulso ao debate global sobre as consequências econômicas e sociais da desigualdade com seu livro O Capital do Século 21 (2014).

Piketty não tratou de Brasil em seu livro — há dados apenas de Argentina e algo da Colômbia — e a maior parte da reflexão do francês está voltada às economias desenvolvidas. Por isso, os dados de Souza também ajudam a inserir a economia brasileira e da América Latina nos novos estudos sobre a desigualdade e a trajetória dela no tempo. O pulo do gato desta linha de pesquisa está em, ao usar dados do imposto de renda, corrigir distorções na medição de desigualdade que aparecem quando se utilizam pesquisas de amostragem como a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE. No Brasil e no resto do mundo, esse tipo de pesquisa acaba subestimando a renda dos ricos: quer porque eles são menos acessíveis, quer porque têm menos habilidade ou intenção de falar de maneira precisa sobre seus ganhos.

"A emergente literatura sobre 'top incomes' (a concentração de renda no topo) conseguiu operar uma mudança nas interpretações da desigualdade nos países desenvolvidos. A ambição da análise dos meus dados é contribuir para isso no Brasil. Mudar o ponto de vista ajuda tanto a iluminar novas dimensões de antigos fenômenos quanto a revelar mudanças e características até então pouco visíveis”, escreve Souza.

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