quinta-feira, 5 de novembro de 2015

As instituições e o diabo

Associações ou clubes também ocorrem em sociedades tribais, tidas como primitivas, conforme mostrou o antropologista Robert H. Lowie

Quando Alexis Charles-Henri-Maurice Clérel de Tocqueville visitou a América em 1831, ele não ficou intrigado com as casas e famílias americanas, mas com as suas associações. Os seus grupos voluntários, que não existiam no lugar de onde vinha, onde as posições eram herdadas e não escolhidas. Conforme ele remarca no clássico “A democracia na América”, publicado em 1835, tais organizações estavam em toda parte e se formavam reunindo indivíduos com interesses comuns.

Associações ou clubes também ocorrem em sociedades tribais, tidas como primitivas, conforme mostrou o antropologista Robert H. Lowie. Nesses sistemas, as associações contrabalançam elos imperativos da família e do parentesco.

Na América vista por um aristocrata como Tocqueville, elas chamavam a atenção por sua surpreendente igualdade e um extraordinário individualismo. As “casas” nobres que, conforme reitera Tocqueville, reproduzem a sociedade como um todo, sendo suas miniaturas, cedem lugar a um sistema fragmentado, ordenado por grupos de interesse que protegem um conjunto de indivíduos despossuídos de títulos e relações, mas dialeticamente fortalecidos por seus partidos, clubes e igrejas. A concentração personalista típica das aristocracias, obviamente não acaba, mas é deslocada.


Estaria aí a raiz de um estilo de vida que cada vez mais demanda mais oferta de oportunidades, ao mesmo tempo em que luta por mais direitos e menos preconceito? Haveria uma relação forte entre escolha individual e uma vida pública mais dinâmica, onde vencedores e perdedores fazem parte de um mesmo jogo e trocam de lugar; ao passo que, em sistemas onde tal transição para o individualismo igualitário não tem a mesma força, essa consciência de “classe para si” (como Marx veio a conceituar), ficaria enredada no que nós chamamos de corporativismo ou patrimonialismo?
Em 1884 (ano bissexto), num Rio de Janeiro monárquico, mas com um Partido Republicano, Machado de Assis escreveu um conto chamado “A igreja do diabo”. Nele, conta-se como o diabo resolveu fundar uma igreja e assim criar sua instituição de forma manifesta porque havia descoberto que, sem uma dimensão institucional — “Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico (...)” —, ele seria sempre um perdedor.

Machado descreve com notável apuro sociológico a passagem de um modo de dominação carismático e personalista para um modo institucionalizado e burocratizado quando o demo decide arrojar-se política, simbólica e ideologicamente na vida pública e, assim, proclama e legitima seus interesses e projetos, os quais demandam, além de líderes, normas e rituais.

Como primeiro passo para legitimar sua igreja, o diabo expõe seus planos e Deus, que tudo sabe, não vive no tempo e é um democrata convicto, não esboça resistência ao projeto. Ele sabe como as instituições dominam seus fundadores.

A Igreja do Diabo tem um enorme sucesso pregando a fraude, a venalidade e a inveja até o momento em que se descobre que, sorrateiramente, seus seguidores praticavam pecados, no caso, virtudes. Uma vez formada, a instituição ganha um enorme poder coercitivo. Se o erro é a norma, não errar é virtude. Assim, o diabo tem o desprazer de testemunhar glutões jejuando, avarentos tornando-se generosos e ladrões convertidos à honestidade. O conto revela como a prática aberta do pecado conduz à santidade como tentação. Ele demonstra como, uma vez que uma ética esteja instalada, ela aprisiona todos os seus seguidores, sobretudo os seus superiores ou governantes. Decepcionado, o fundador dessa igreja ouve do Criador:

— Que queres tu, meu pobre diabo. É a eterna contradição humana.

Dir-se-ia que a contradição é maior e conduz ao conflito quando não existem instituições. Quando o clube não zela pelo comportamento dos seus membros, o resultado é a desmoralização. Numa associação, há um elo entre suas normas e seus membros. Sem ele, o partido, o clube ou uma esfera de poder perde o seu propósito porque nele vamos encontrar atores cumprindo seus papeis, enquanto outros simplesmente sabotam a peça.

Se o demo foi capaz de enxergar o elo entre práticas e valores, decepcionando-se quando elas não se encaixavam, por que — com todos os diabos — continuamos indiferentes quando a nossa vida pública é hoje marcada pela incoerência, esse oceano mais do que apropriado a ter os tubarões das utopias e dos messianismos populistas?

Roberto DaMatta 

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