Quando Alexis Charles-Henri-Maurice Clérel de Tocqueville visitou a América em 1831, ele não ficou intrigado com as casas e famílias americanas, mas com as suas associações. Os seus grupos voluntários, que não existiam no lugar de onde vinha, onde as posições eram herdadas e não escolhidas. Conforme ele remarca no clássico “A democracia na América”, publicado em 1835, tais organizações estavam em toda parte e se formavam reunindo indivíduos com interesses comuns.
Associações ou clubes também ocorrem em sociedades tribais, tidas como primitivas, conforme mostrou o antropologista Robert H. Lowie. Nesses sistemas, as associações contrabalançam elos imperativos da família e do parentesco.
Na América vista por um aristocrata como Tocqueville, elas chamavam a atenção por sua surpreendente igualdade e um extraordinário individualismo. As “casas” nobres que, conforme reitera Tocqueville, reproduzem a sociedade como um todo, sendo suas miniaturas, cedem lugar a um sistema fragmentado, ordenado por grupos de interesse que protegem um conjunto de indivíduos despossuídos de títulos e relações, mas dialeticamente fortalecidos por seus partidos, clubes e igrejas. A concentração personalista típica das aristocracias, obviamente não acaba, mas é deslocada.
Em 1884 (ano bissexto), num Rio de Janeiro monárquico, mas com um Partido Republicano, Machado de Assis escreveu um conto chamado “A igreja do diabo”. Nele, conta-se como o diabo resolveu fundar uma igreja e assim criar sua instituição de forma manifesta porque havia descoberto que, sem uma dimensão institucional — “Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico (...)” —, ele seria sempre um perdedor.
Machado descreve com notável apuro sociológico a passagem de um modo de dominação carismático e personalista para um modo institucionalizado e burocratizado quando o demo decide arrojar-se política, simbólica e ideologicamente na vida pública e, assim, proclama e legitima seus interesses e projetos, os quais demandam, além de líderes, normas e rituais.
Como primeiro passo para legitimar sua igreja, o diabo expõe seus planos e Deus, que tudo sabe, não vive no tempo e é um democrata convicto, não esboça resistência ao projeto. Ele sabe como as instituições dominam seus fundadores.
A Igreja do Diabo tem um enorme sucesso pregando a fraude, a venalidade e a inveja até o momento em que se descobre que, sorrateiramente, seus seguidores praticavam pecados, no caso, virtudes. Uma vez formada, a instituição ganha um enorme poder coercitivo. Se o erro é a norma, não errar é virtude. Assim, o diabo tem o desprazer de testemunhar glutões jejuando, avarentos tornando-se generosos e ladrões convertidos à honestidade. O conto revela como a prática aberta do pecado conduz à santidade como tentação. Ele demonstra como, uma vez que uma ética esteja instalada, ela aprisiona todos os seus seguidores, sobretudo os seus superiores ou governantes. Decepcionado, o fundador dessa igreja ouve do Criador:
— Que queres tu, meu pobre diabo. É a eterna contradição humana.
Dir-se-ia que a contradição é maior e conduz ao conflito quando não existem instituições. Quando o clube não zela pelo comportamento dos seus membros, o resultado é a desmoralização. Numa associação, há um elo entre suas normas e seus membros. Sem ele, o partido, o clube ou uma esfera de poder perde o seu propósito porque nele vamos encontrar atores cumprindo seus papeis, enquanto outros simplesmente sabotam a peça.
Se o demo foi capaz de enxergar o elo entre práticas e valores, decepcionando-se quando elas não se encaixavam, por que — com todos os diabos — continuamos indiferentes quando a nossa vida pública é hoje marcada pela incoerência, esse oceano mais do que apropriado a ter os tubarões das utopias e dos messianismos populistas?
Roberto DaMatta
Machado descreve com notável apuro sociológico a passagem de um modo de dominação carismático e personalista para um modo institucionalizado e burocratizado quando o demo decide arrojar-se política, simbólica e ideologicamente na vida pública e, assim, proclama e legitima seus interesses e projetos, os quais demandam, além de líderes, normas e rituais.
Como primeiro passo para legitimar sua igreja, o diabo expõe seus planos e Deus, que tudo sabe, não vive no tempo e é um democrata convicto, não esboça resistência ao projeto. Ele sabe como as instituições dominam seus fundadores.
A Igreja do Diabo tem um enorme sucesso pregando a fraude, a venalidade e a inveja até o momento em que se descobre que, sorrateiramente, seus seguidores praticavam pecados, no caso, virtudes. Uma vez formada, a instituição ganha um enorme poder coercitivo. Se o erro é a norma, não errar é virtude. Assim, o diabo tem o desprazer de testemunhar glutões jejuando, avarentos tornando-se generosos e ladrões convertidos à honestidade. O conto revela como a prática aberta do pecado conduz à santidade como tentação. Ele demonstra como, uma vez que uma ética esteja instalada, ela aprisiona todos os seus seguidores, sobretudo os seus superiores ou governantes. Decepcionado, o fundador dessa igreja ouve do Criador:
— Que queres tu, meu pobre diabo. É a eterna contradição humana.
Dir-se-ia que a contradição é maior e conduz ao conflito quando não existem instituições. Quando o clube não zela pelo comportamento dos seus membros, o resultado é a desmoralização. Numa associação, há um elo entre suas normas e seus membros. Sem ele, o partido, o clube ou uma esfera de poder perde o seu propósito porque nele vamos encontrar atores cumprindo seus papeis, enquanto outros simplesmente sabotam a peça.
Se o demo foi capaz de enxergar o elo entre práticas e valores, decepcionando-se quando elas não se encaixavam, por que — com todos os diabos — continuamos indiferentes quando a nossa vida pública é hoje marcada pela incoerência, esse oceano mais do que apropriado a ter os tubarões das utopias e dos messianismos populistas?
Roberto DaMatta
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