quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Da coalizão ao desgoverno

Como muita gente, estou perplexo diante da crise econômica e política, que segue acelerada. Como economista, defendo um ajuste fiscal de profundidade, com foco concentrado nas despesas exceto investimentos, incluídas as voltadas para os “direitos tortos”, como as aposentadorias precoces. E um ajuste também patrimonial, via concessões e outras formas de privatização.

Mais impostos? Ora, a carga tributária já foi bem além do razoável e prejudica a atividade econômica. E falei de investimentos porque o governo precisa também focar no crescimento da economia. Liberar a Petrobrás de participar obrigatoriamente de todos os projetos do pré-sal seria um bom começo, ao lado de pôr em dia todas as obras federais atrasadas. E tudo em regime de urgência, pois a queda do PIB deve alcançar 3% em 2015 e já se prevê outra de 2% em 2016. Do ponto de vista social, essa tendência também manterá crescente o desemprego, com todos os males que o acompanham.

A situação fiscal federal é tão séria que, entre outros desdobramentos, tem efeitos deletérios sobre as taxas de câmbio e de juros. Em face disso, os economistas falam de “dominância fiscal”, ou seja, o fator fundamental estaria do lado fiscal. Mas com o desgoverno que impera no Executivo e no Legislativo os ajustes necessários não andam, além de os cogitados não terem a profundidade necessária. Nessa óptica, o que há é dominância política, pois os líderes da área não cumprem seu papel de propor soluções e dar-lhes sustentação.

É clara a degeneração do sistema presidencialista brasileiro. Conhecido como de coalização, designação dada pelo cientista político Sérgio Abranches, nasceu com um quê de imperial, com forte ênfase e poder na figura do presidente da República. Passou por várias crises antes de chegar à atual.

A coalizão dava-lhe sustentação, acomodando-o com o multipartidarismo e com o sistema eleitoral adotado para o Legislativo, mediante apoio de coligações político-partidárias, inclusive nos seus importantes desdobramentos regionais. Essa base de apoio vinha em três etapas: a aliança para fins eleitorais, com um programa mínimo consensual; a formação do governo, com cargos para os aliados e compromissos com esse programa; e a transformação da aliança em governo efetivo. O Executivo também administrava a agenda legislativa em razão do apoio recebido no Congresso Nacional.

Esse presidencialismo degenerou no de cooptação, conforme conceituação recente de Fernando Henrique Cardoso. A transformação começou no governo Lula, mas acentuou-se no governo Dilma I e domina o Dilma II. A cooptação envolve grandes e pequenos partidos ideologicamente díspares que, em troca de posições na máquina governamental, e na administração de seus contratos, passam a integrar a base parlamentar do governo. O único programa que interessa aos políticos passa a ser o controle de nacos do Orçamento. Com Dilma perdendo credibilidade e popularidade, sua liderança política se foi e vários que ainda navegam politicamente no seu barco já vestiram coletes salva-vidas e acenam a outros barcos sua disposição de eventualmente passarem a eles. Nesse caos, a base parlamentar está mais para lamentar. Do apoio passou até à aprovação de itens de uma pauta-bomba orçamentária que a presidente ainda não conseguiu reverter integralmente. E os presidentes da Câmara e do Senado comandam uma pauta legislativa a seu critério.


E o presidencialismo de corrupção? Ela se acentua com a cooptação, mas pelo menos em parte veio à tona. É consequência porque a cooptação não se pauta por critérios de competência, político-ideológicos ou de governança efetiva. Quem assume cargos quer sua capitania de porteira fechada. Por exemplo, os jornais noticiaram que o novo ministro da Saúde, do PMDB, defenestrou ocupantes de cargos de confiança nomeados pelo ministro anterior, do PT. Na pasta dos Portos, de novo entregue ao PMDB, também foi fechada a porteira, pondo-se para fora até mesmo o secretário responsável por organizar leilões de concessão de portos, que tinham data já marcada.

Tudo isso é conhecido. O que ainda não se vislumbra é nenhuma perspectiva de solução para o nó político que mantém o desgoverno. A situação poderia ser acomodada num sistema parlamentarista, mediante constituição de maioria partidária capaz de exercer o poder, se necessário recorrendo a sucessivas eleições parlamentares, até que essa maioria se consolidasse. E o exercício do poder acabaria por conduzir o Parlamento a uma administração responsável e mais focada nos problemas que o Brasil enfrenta, já que o abacaxi estaria todo em suas mãos.

Outra saída seria um presidencialismo sem a degeneração de que padece, a qual também corrompeu o princípio da separação dos Poderes Executivo e Legislativo, com a cooptação exacerbando o envolvimento promíscuo deste naquele, mas sem assumir as respectivas responsabilidades. Estava a refletir sobre o assunto quando um colega economista, Jorge Vianna Monteiro, ex-professor da PUC-Rio, me chamou a atenção para o fato de que nos EUA, onde o presidencialismo é tido como eficaz, a Constituição, no seu artigo 1.º, Seção 6, Parte 2, proíbe que membros do Legislativo exerçam cargos no Executivo, o que pode ser constatado em www.law.cornell.edu/constitution/articlei#section6. Além dessa proibição, no Brasil caberia também reduzir drasticamente o número de cargos governamentais preenchidos por indicação política, que com ou sem cooptação igualmente traz incompetência e outros males.

Em síntese, há dois caminhos. Ou se adota o parlamentarismo para que o protagonismo do Legislativo implique a assunção ampla e explícita de responsabilidades executivas, ou se reforma o presidencialismo extirpando males que o levaram à cooptação, à corrupção e ao desgoverno.

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