Na bibliografia de Nabuco, esse livro não se situa no mesmo plano de "Minha Formação", um dos pontos altos da narrativa autobiográfica brasileira, de "Um Estadista do Império", que oferece o melhor acesso ao entendimento das instituições políticas do Brasil de dom Pedro II, ou de "O Abolicionismo", que faz do autor, ao examinar o legado da escravidão, um dos grandes pensadores do Brasil.
Mas "Balmaceda" é uma relevante obra de análise política na avaliação de autores como Evaldo Cabral de Mello e Francisco Iglesias. Em momentos de crise política aguda em países da América do Sul, ler "Balmaceda", que mereceu em 2008 apurada reedição com a chancela da Editora Cosac Naify, traz ensinamentos úteis.
São múltiplos os ângulos a partir dos quais sua relevância e seu significado podem ser examinados. Trata-se de obra que transcende as circunstâncias e os embates da época da sua elaboração e publicação, ligados à crítica política dos primeiros anos da República e aos desmandos autoritários da Presidência Floriano Peixoto.
Quero chamar a atenção para dois pontos relevantes: a importância atribuída por Nabuco à América Latina para a política externa brasileira, como um dos desdobramentos da implantação da República, e a sua aguda análise dos desafios da governabilidade em nossa região.
Na maior parte do século 19, desde a independência, o Brasil foi o diferente nas Américas: um Império em meio a Repúblicas; uma grande massa territorial de fala portuguesa, que permaneceu unida num mundo hispânico que se fragmentava, tendo no Hemisfério Norte os Estados Unidos expandindo-se territorialmente. Foi a República que sublinhou a relevância da inserção do Brasil nas Américas.
Dizia nesse sentido o Manifesto Republicano de 1870: “Somos da América e queremos ser americanos”. Essa é uma das razões por que o advento da República trouxe uma “americanização” da política externa brasileira.
Daí a importância do conhecimento da América Latina para o Brasil, indicada com clareza e precisão nas páginas finais de Balmaceda: “O interesse que antes já me inspiravam as coisas sul-americanas aumentou naturalmente depois da Revolução de 15 de Novembro. Desde então começamos a fazer parte de um sistema político mais vasto... Desse modo o observador brasileiro, para ter ideia exata da direção que levamos, é obrigado a estudar a marcha do Continente, a auscultar o murmúrio, a pulsação continental”.
A República, no âmbito da “pulsação continental”, ao trazer a negação dos critérios de organização do espaço público do Império, inaugurou um período de dilatada incerteza política, que explica a entropia de seus anos iniciais, caracterizados pelo desafio da governabilidade.
Quando Nabuco escreveu "Balmaceda", o caminho para lidar com a governabilidade, apontado pelos adeptos do positivismo de Augusto Comte, era a ideia de “ditadura republicana” advogada por Júlio de Castilhos, tendo como lastro um demiúrgico cientificismo político. Esse é o pano de fundo brasileiro do capítulo IV do livro, intitulado Ensaio Geral da Ditadura, que examina por que Balmaceda em 1890 “propunha praticamente a onipotência do Poder Executivo e a degradação do Congresso”.
Nabuco discute, nessa conjuntura, o espírito de reforma, que combina conservação e aperfeiçoamento, contrastando-o com o radicalismo dos que buscavam impor a realidade, em nome da “ciência”, o caminho único de uma chave teórica. O ímpeto do “metodismo científico” foi uma inspiração propulsora da ação de Balmaceda. Levou-o a “introduzir insidiosamente no esplêndido organismo chileno o gérmen do militarismo político” e dele fez “um caráter imperioso em que o mando absoluto embotara todas as outras faculdades”, inclusive o discernimento do bom juízo político. Dele fez um integrante da família política dos que “lavram suas utopias na sociedade a tiro de canhão quando é preciso”.
“Os despotismos”, aponta Nabuco com precisão, “não se defendem contando tudo ao país e contando com ele, defendem-se nas trevas com o dinheiro, com o terror e com o silêncio.” Nesse contexto, antecipa o tema contemporâneo da cláusula democrática na nossa região. Afirma, em observação que transcende o que se está passando na Venezuela: “Os chefes de Estado têm o direito de defender a sua autoridade legal – não era o caso de Balmaceda –, mas esse direito não vai ao ponto de acumular por toda parte ruínas sobre ruínas, de arrasar a sociedade, de proscrever a opinião oposta, de privar a nação do direito de se inclinar para o lado contrário e dos meios de gritar pela paz”.
As citações acima retêm plena atualidade política. São as de um pensador que prenuncia o que veio a ser no âmbito da esquerda o debate político reforma x revolução. Para esse debate, a História do século 20, como uma “era de extremos”, deu as duríssimas respostas dos desastres humanos inspirados pelos demiurgos e profetas do caminho único da mudança por métodos revolucionários. Antecipa, igualmente, os riscos na nossa região da tendência à “tábula rasa” dos fundacionismos qualificados como “bolivarianos”.
Esclarece como reformista o desafio da governabilidade democrática em nossa região. Este é o do fazer, e não o do azabumbar do marketing político do falar. E o de levar adiante políticas públicas consistentes, que permitam democraticamente avaliar os governantes pelo resultado da sua administração, vale dizer pelo inventário de que encontraram ao assumirem as responsabilidades do poder e o que deixaram para seus sucessores.
Celso Lafer
“Os despotismos”, aponta Nabuco com precisão, “não se defendem contando tudo ao país e contando com ele, defendem-se nas trevas com o dinheiro, com o terror e com o silêncio.” Nesse contexto, antecipa o tema contemporâneo da cláusula democrática na nossa região. Afirma, em observação que transcende o que se está passando na Venezuela: “Os chefes de Estado têm o direito de defender a sua autoridade legal – não era o caso de Balmaceda –, mas esse direito não vai ao ponto de acumular por toda parte ruínas sobre ruínas, de arrasar a sociedade, de proscrever a opinião oposta, de privar a nação do direito de se inclinar para o lado contrário e dos meios de gritar pela paz”.
As citações acima retêm plena atualidade política. São as de um pensador que prenuncia o que veio a ser no âmbito da esquerda o debate político reforma x revolução. Para esse debate, a História do século 20, como uma “era de extremos”, deu as duríssimas respostas dos desastres humanos inspirados pelos demiurgos e profetas do caminho único da mudança por métodos revolucionários. Antecipa, igualmente, os riscos na nossa região da tendência à “tábula rasa” dos fundacionismos qualificados como “bolivarianos”.
Esclarece como reformista o desafio da governabilidade democrática em nossa região. Este é o do fazer, e não o do azabumbar do marketing político do falar. E o de levar adiante políticas públicas consistentes, que permitam democraticamente avaliar os governantes pelo resultado da sua administração, vale dizer pelo inventário de que encontraram ao assumirem as responsabilidades do poder e o que deixaram para seus sucessores.
Celso Lafer
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