Penso que em parte isso acontece porque priorizamos uma forma de acesso à realidade. E também porque tomamos o que costumamos chamar de realidade objetiva como toda a realidade. E damos à sua “notícia” a representação por excelência. Damos a ela o status de “verdade” – mesmo quando nos debatemos com a “pós-verdade”. Sujeita a interpretações e até a falsificações, mas absoluta. Tomamos por todo o que é apenas parte.
Suspeito que seja necessário voltar a ampliar as formas de acesso à realidade, para retomar a tessitura da linguagem, para que as palavras-cartas voltem a chegar ao seu destino, recuperando a potência de produzir movimento, efeito e transformação. E para que sejamos capazes de romper essa forma de prisão que é a palavra que não diz – e que volta para cada um depois de um percurso vazio, volta para cada um como um bumerangue. Para que sejamos capazes de romper a paralisia provocada pela condenação ao absurdo.
O sonho e a arte são dois caminhos de resgate da palavra. O sonho não só como via de acesso à realidade e como elaboração do real, mas como realidade também. A arte não só como via de acesso à realidade e como elaboração e reinvenção do real, mas como realidade também.
Exposição 'Osso', em cartaz no Instituto Tomie Othake (SP) |
Primeiro, o sonho. Como este, que teve um médico de 45 anos depois de ter vivido um ano sob o regime do Terceiro Reich, na Alemanha. Numa noite de 1934, ele assim sonhou: “Perto das nove da noite, depois de minhas consultas, quando quero me esticar calmamente no sofá, com um livro sobre Matthias Grünewald, minha sala e meu apartamento ficam de repente sem paredes. Olho apavorado ao meu redor e, até onde meus olhos conseguem alcançar, os apartamentos estão todos sem paredes. Ouço gritarem em um megafone: ‘De acordo com o edital sobre a eliminação de paredes, datado do dia 17 deste mês...’”.
Charlotte Beradt coletou os sonhos de alemães vivendo sob o Terceiro Reich de 1933 a 1939. Antes, portanto, do início da Segunda Guerra Mundial. “Sonhos poderiam ajudar a interpretar a estrutura de uma realidade prestes a se tornar um pesadelo”, diz ela. “Meus exemplos mais elucidativos vêm dos primeiros tempos de um regime ainda disfarçado.”
Como também ela estava sob o regime de opressão, teve que camuflar em suas anotações os sonhos obtidos por meio de relatos orais. Em vez de partido, por exemplo, usou “família”. “Tio Hans”, “Gustav” e “Gerhard” para, respectivamente, Hitler, Göring e Goebbels. Prisão era disfarçada como “gripe”. No início, escondeu esses relatos atrás de livros, numa ampla biblioteca. Depois, passou a enviá-los como cartas, a endereços diversos de diferentes países. Só foi voltar a acessá-los quando ela mesma foi obrigada a emigrar da Alemanha.
Christian Dunker chama a atenção no prefácio para algo que me parece fundamental também para pensar sobre o que chamo de crise da palavra: “Os sonhos são parte da realidade factual. Eles não provêm de outra realidade, que seria então qualificada como ficcional ou virtual. Sonhos são uma experiência real em si mesma. (...) O real não é individual ou coletivo, psicológico ou sociológico, científico ou religioso, o real é o que é. Mas estamos acostumados demais a pensar o real apenas como os fatos positivos, presentes e atuais. Contra isso o sonho nos apresenta uma curiosa combinação de fatos futuros e passados imersos em uma situação de perturbação do presente”.
O médico que sonha com a vida sem paredes, imposta por um ato burocrático do Estado totalitário, ao anotar seu sonho noturno encontrou o fato ocorrido na vigília que o teria provocado: “O vigilante nazista dos quarteirões chegou perguntando porque eu não havia içado a bandeira. Tranquilizei-o e lhe servi um aguardente, mas pensei: ‘Nas minhas quatro paredes, nas minhas quatro paredes...’ (...) Apesar de eu não ser uma pessoa política, todos os ingredientes do meu sonho e das minhas fantasias são políticos”.
O sonho torna-se para o médico, como aponta a jornalista, “a única possibilidade de se afastar da vida sem paredes, a única possibilidade real de emigração interior”. O médico ainda diria: “Já que os apartamentos se tornaram públicos, vou viver no fundo do mar para permanecer invisível”. A vastidão do oceano como metáfora para o território do inconsciente onde os sonhos são produzidos a partir dos vestígios do dia, o inconsciente muito mais presente e mobilizador na vida de cada um do que o consciente. Também por isso em algumas culturas os sonhos carregam algum poder premonitório. Mas o que aparece é aquilo que o indivíduo intui ou percebe no seu cotidiano, mas esse saber sobre a realidade ainda não emergiu à consciência.
O horror totalitário irrompe nestes sonhos coletados, como aponta aquela que os recolheu, muito antes de o horror se instalar por completo. “O que hoje são fatos políticos, até mesmo do cotidiano, não eram naquela época nem fatos de romance”. Muito antes da publicação de 1984, a clássica distopia de George Orwell, os alemães no Terceiro Reich sonhavam com aparatos de controle do Estado que sequer existiam. “Eles representavam na escuridão da noite, de maneira distorcida, o que ocorria com eles no mundo sombrio do dia”, escreve a autora. Sabiam – sem saber.
Os sonhos de quem sonhou no Terceiro Reich trazem a singularidade de cada experiência individual, mas compartilham traços comuns. Outra mulher tem o seguinte sonho, em 1933, logo que Adolf Hitler chega ao poder: “Quadros são colocados em cada esquina para substituir as placas de rua, proibidas. Esses quadros anunciam, em letras brancas sobre um fundo negro, vinte palavras que o povo está proibido de pronunciar. A primeira palavra é Lord – por precaução devo ter sonhado em inglês, e não em alemão. As outras esqueci ou provavelmente nem cheguei a sonhar com elas, com exceção da última: Eu”.
Como expressar melhor o esmagamento do indivíduo pelo Estado totalitário? Esse livro que fala sobre sonhos de cidadãos que se sentem impotentes de várias maneiras diante do absurdo que se torna o cotidiano – e do impossível que acontece ao seu redor – tem uma potência enorme para falar da realidade daquele momento histórico e das realidades que transcendem aquele momento histórico. Mesmo para quem se debruça sobre o nazismo e sobre tudo o que o produz e é produzido por ele, há algo que só se ilumina a partir da realidade desta coleção de sonhos de cidadãos comuns.
Isso me faz pensar: o que sonhamos nós neste momento do Brasil? Neste momento em que as palavras não estão proibidas, como no sonho da alemã, mas esvaziadas de substância? Nesta condição, as palavras são como fantasmas que atravessam o corpo do outro sem produzir nenhum efeito. E então voltam para nós, falantes compulsivos, gritadores contumazes, que produzem som, mas não movimento. E esta talvez seja uma versão contemporânea, uma versão dos tempos da Internet, de um outro tipo de censura. E de encarceramento pela linguagem. Palavras-fantasmas, é preciso dizer, não assombram. Desassombram.
Leia mais o artigo de Eliane Brum
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