O Congresso em questão se parece com um balcão de venda de votos, onde todos têm um preço para mudar suas convicções, e depois voltar atrás, se necessário, não importando programas, filiação partidária, plataformas ou o interesse público: só o interesse pessoal, ou, eventualmente, o de um cônjuge ambicioso e ávido por ascensão.
No país onde ocorrem esses fatos, o capital privado é capaz de dar as cartas no Executivo e no Legislativo, dominar bancadas, constranger secretariados, através de doações tanto legítimas quanto oriundas de lavagem de dinheiro, e ainda receber, em troca, favorecimentos regulatórios e contratos em solo pátrio e no exterior.
Ah, só pode ser o Brasil!
Não, não é o Brasil. Os parágrafos acima são um resumo livre das duas primeiras temporadas da série americana “House of cards”, consumidas pelo cronista com a voracidade de 26 episódios em quatro dias. A série é ótima, Kevin Spacey dá o show de sempre, embora não alcance o grau de excelência de texto, arte e fotografia, nem de sofisticação dramática, de um “Mad men” ou um “Breaking bad”. O motivo da recaída no vício após um ano sem mergulhar numa caixa de séries (no caso, uma caixa virtual) foi, sem dúvida, a mórbida semelhança com o que se passa aqui.
Não tanto no que toca à história. Apesar das coincidências situacionais, as circunstâncias são bem diferentes, o país é outro, e há várias subtramas que têm muito mais a ver com a cultura local do que com a nossa. O que pega fundo, mesmo, são os valores envolvidos. Em “House of cards”, trava-se uma discussão de conceitos que estão no centro de nosso dia a dia, na política e na maneira com que esta se reflete na vida de quem está a léguas de distância do andar de cima: a sociedade civil.
O foco dessa discussão está no binômio poder/dinheiro, como proposto pelo protagonista, o deputado Frank Underwood, que, entre uma sequência e outra, dirige-se em segunda pessoa ao público para debater seus dilemas. A tese de Frank: o poder, para quem sabe das coisas e está com a faca e o queijo na mão, vale muito mais que o dinheiro. O dinheiro, uma vez adquirido, é intangível, fugaz, frívolo. Já o poder, se adequadamente cultivado, é como uma madeira nobre, que resiste ao tempo.
Daí uma questão resultante, mas fundamental: para que serve o poder? Se falamos de política, é uma capacidade que deveria estar a serviço da construção de um futuro melhor, tendo-se em vista o interesse coletivo e o bem comum. A outra opção: o poder exclusivamente a serviço do interesse individual. O interesse do outro só entra no jogo de forma submissa e passível de imediata aniquilação em caso de interferência. Se o animal no topo da cadeia se vê ameaçado, o outro tem que sucumbir, ainda que se sujem as mãos de sangue.
Em “House of cards”, há dois universos: uma sociedade vigilante e construtiva, formada pela Justiça e pelos meios de comunicação; e uma esfera que une a política ao capital privado numa dinâmica perversa de interdependência. Neste segundo grupo, prevalece, contudo, o gosto pela “madeira nobre”. São personagens para os quais só o dinheiro é um meio de exercitar a sensualidade do controle manipulativo, de mover o vapor inebriante da autossatisfação.
Para isso, não há limites, não há risco que não valha a pena correr. Submeter o outro, impor-se, mover-se verticalmente, destruir o oponente, num jogo em que as ideias são moldadas pela de sede de poder, e não o contrário (o poder a serviço das ideias). A tese seria a de que, quando dinheiro e política se encontram, por mais que se defendam interesses desta ou daquela corporação, o alvo é o acúmulo de força, e não aquilo que se embolsa.
O quão distorcida é esta visão, ou o quanto ela é específica daqueles personagens, instrumentalizados num microcosmo, é assunto para um estudo mais “macro” ou uma análise de roteiro. Instigante é pensar em como, no Brasil, a lógica parece radicalmente inversa: aqui é o poder que está a serviço do dinheiro, num cenário em que a política perdeu até a aparência, se não o caráter, de uma atividade em si. No Brasil, o poder, mesmo em sua conformação mais egoísta, virou um valor subalterno. Não há “madeira nobre” que resista ao incêndio que lambeu as ideias, o pensamento e a própria noção de civilidade. Numa sinopse radicalmente resumida, ficaria assim: “A política morreu, e o capital assumiu o poder”.
Arnaldo Bloch
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