No século IV a. C. começou oficialmente a filosofia, para o pensamento e para a vida. Nos seus últimos cursos no Collège de France, Foucault formulou a hipótese de que o grande mandamento socrático fundador não tenha sido o famoso “conhece-te a ti mesmo”, mas um menos festejado “cuida de ti’’. Pois só quem cuida de si pode vir a se conhecer. E quem não cuida de si, como haverá de cuidar da cidade? — Uma pergunta a um só tempo ética, psicológica e política. Assim, colada na vida, longe dos sistemas fechados, autossuficientes, teria nascido a filosofia.
Depois bifurcou. A questão do conhecimento predominou sobre a do cuidado, e a filosofia foi se tornando um sistema de conhecimento da verdade. O sujeito tem direito natural à verdade. Ela se esconde. A filosofia a procura. Às vezes a encontra. Esse é o feito dos grandes sistemas, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant. Essa filosofia veio a predominar sobre aquela outra, mais modesta, do cuidado de si. Para marcar a diferença, Foucault reservou o nome “filosofia” para a vontade de sistema. E (espantosamente para quem o vinha lendo até seus prodigiosos três últimos anos de vida e pensamento) deu à outra o nome de “espiritualidade”. — Olhando o nosso tempo devagar, com olho crítico mas amoroso, parece que é da espiritualidade que andamos supernecessitados. De voltarmos a perguntar a nós mesmos, e uns aos outros: “Estamos cuidando de nós?”. Porque parece que não.
O cultivo do cuidado, do trabalho de si sobre si, como desde cedo o chamaram, ficou nas mãos das “escolas menores”. Aquelas que um dia, aqui, selecionei para o meu segundo time. Agora penso se esse não foi um erro estratégico. Talvez andemos mais precisados dos estoicos, epicuristas, cínicos e céticos do que dos grandes formuladores de sistemas. Os sistemas talvez nos roubem hoje o ar, que ficou pouco e sujo. Quem sabe esse sufocamento seja o sentido do ‘fim da filosofia’ que os pós-modernos gostam de proclamar. Não sei. Se for, erraram o alvo de novo. Porque lá do passado os filósofos ‘menores’ não deixaram de olhar para nós. Tornaram-se atuais. E precisamos deles.
Em comum, essas escolas tiveram um axioma não explicitado, mas poderoso a mais não poder: o sujeito não tem direito à verdade; ela resulta de um trabalho de si sobre si; nesse trabalho o sujeito se transforma, faz-se diferente do que era — e a verdade vem ao seu encontro. A lida com o verdadeiro não se passa diretamente na relação da alma com as coisas do mundo, mas na da alma consigo mesma. — Essa é uma ideia cuja beleza deixamos depois escapar. Encantamo-nos com a potência das lógicas e dialéticas e descuidamos de nós mesmos, da nossa substância ética. Santo Agostinho entreviu essa dimensão da filosofia. Pascal, de um modo torturado. Nietzsche. Poucos. Mas a ideia continua aí. Podemos ainda pegá-la com nossas mãos tornadas inábeis para ela. E apressadas pelo nosso tempo hiperacelerado. Ela pede calma, serenidade e vagar. Digo que podemos reaprender essas virtudes inúteis.
O esforço fundamental dessas antigas escolas consistia em pôr-se alguém diante de si mesmo e perguntar: “Em que sou menos do que podia ser? Como posso cuidar de mim para merecer a verdade — e ser feliz?’’ Essa é, já se vê, uma questão de ordem prática. Ética. Política. Não constrói estritamente sistemas de conhecimento. Constrói vidas.
O trabalho de si sobre si tinha suas etapas e técnicas. Exigia esforço e vontade. Começava com esse exame de si, que mais tarde os cristãos chamaram “exame de consciência”. Um exame de vida. Passava por práticas de abstenção, de ascese daquilo que nos afastava de nós. Em seguida, um esforço para elevarmo-nos acima de nós mesmos. Um trabalho de transcendência. Nele, se bem executado, é que, de repente, a verdade, a que o sujeito não tinha direito originário, saltava do seu escondimento e vinha, ela, ao seu encontro. A verdade de si e do mundo. Coisa pequena, nenhuma epifania. Mas esse era o momento da felicidade.
Como a felicidade é coisa para ser dividida, esses filósofos conversavam com quem desejasse encontrar seu próprio caminho. Não doutrinavam. Escreviam cartas. Reuniam-se para trocar ideias no jardim. Cícero e Sêneca, estoicos, escreveram cartas. Marco Aurélio, imperador e filósofo, escreveu um diário. Epicuro abriu um jardim para a conversação de homens e mulheres em busca da felicidade. Lucrécio, epicurista, compôs um belíssimo poema. Por ali o pensamento corria, leve, levando em consideração as pessoas e seu esforço de viver.
Reaprenderemos, nós, os do ocaso do Ocidente, viciados em sistemas fechados e contas grandes, a escrever cartas de sabedoria, a registrar em diários nosso trabalho sobre nós mesmos? A criar poemas? A passear pelos jardins? — Não sei. Mas devíamos tentar. Antes que a noite caia. Antes que o amor acabe
Marcio Tavares D’amaral
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