Dias antes, a assistente social havia sido 1 dos 11 profissionais que resgataram uma criança na zona rural de Breves após denúncia de abuso. Uma menina teria sido violentada pelo próprio avô e mais um familiar, na casa dele. Depois de viajar horas pelo rio em uma embarcação a motor, encontraram a menina Sandra*, 13 anos, chorando sem parar em frente à casa de palafita. O irmão da adolescente, também menor de idade, teria presenciado a cena.
As crianças estavam na casa do avô enquanto o padrasto trabalhava e a mãe acompanhava a outra filha em Belém, a 220 quilômetros dali, em um tratamento de saúde. A equipe volante, formada por por representantes do Conselho Tutelar, Polícia Civil, secretaria de Saúde, Educação e Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), no qual Glinda trabalha como técnica, levou a adolescente e o irmão para a cidade para serem atendidos.
Em outro dia de trabalho, a assistente social conta que a equipe socorreu uma criança de quatro anos, também da zona rural, que foi abusada pelo pai. A suspeita veio de familiares e professores, que comunicaram o Conselho Tutelar. A criança recebeu atendimento especializado e passou por exames sexológicos. O crime foi confirmado.
"Casos como estes são recorrentes no município", lamenta a assistente social, cuja infância também foi marcada pela pobreza. Em Breves, de acordo com dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), 37,7% das crianças de até cinco anos de idade sofriam de desnutrição crônica em 2018 — percentual bem maior que a média brasileira, de 13,1%.
No Pará, 85% dos domicílios não possuem acesso adequado à rede de esgoto, e 2.157 crianças morreram antes de completar um ano em 2016. "Depois da escola brincava na rua mesmo, no meio das poças d'água", lembra Glinda. "Não senti falta de políticas voltadas à cultura, esporte e lazer. Não dá pra sentir falta daquilo que não vivenciei."
Filha de pai madeireiro e mãe sacoleira em uma família de baixa renda com quatro filhos, ela viu o pai ficar desempregado depois que a madeireira em que ele trabalhava fechou as portas, em 2009. A família, que morava no centro da cidade, mudou-se para um bairro mais distante e passou a viver em um pequeno cômodo de madeira. Nesse período, sobreviveram basicamente da renda do Bolsa Família, que transfere R$ 89 por pessoa a famílias que vivem abaixo da linha de pobreza, mais R$ 41 por criança ou adolescente, limitado a R$ 205 (cinco benefícios).
"As madeireiras fecharam por completo ou parcialmente, mas não tínhamos um plano B. Não estou defendendo o desmatamento, só que ninguém disse para o meu pai o que ele deveria fazer quando fechassem. Isso aconteceu com muitas famílias. Papai depois conseguiu outro emprego, mas outros não tiveram a mesma sorte."
Conseguiram, com muito esforço, manter os filhos na escola pública, e Glinda e os irmãos, quando adultos, estudaram também na Universidade Federal do Pará (UFPA). "Hoje, os filhos estão concluindo o ensino superior, outros formados, concursados, empregados. Todos da família têm renda própria", afirma, reconhecendo que, nas estatísticas da região, histórias de sucesso como a dela são exceção.
Ao todo, 9 milhões de crianças vivem na Amazônia Legal, região formada por Acre, Amapá, Pará, Amazonas, Rondônia, Roraima e parte dos Estados de Maranhã, Tocantins e Mato Grosso. Os indicadores apontam que, de todas as regiões do país, é ali o pior lugar do Brasil para ser criança, destaca relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). São de lá os mais altos níveis nacionais de mortalidade infantil.
Nos nove Estados da Amazônia Legal, cerca de 43% das crianças e dos adolescentes vivem em domicílios com renda per capita insuficiente para adquirir uma cesta básica de bens, contra 34,3% da média nacional. Além disso, muitas meninas e muitos meninos amazônicos não têm atendidos seus direitos a educação, água, saneamento, moradia, informação e proteção contra o trabalho infantil.
Em 2016, 1.225 crianças morreram antes de completar 1 ano no Estado do Amazonas. Além disso, desde 2010, os casos de sífilis congênita diagnosticados em crianças menores de um ano de idade cresceram 710%, segundo dados do ministério da Saúde reunidos pela Unicef. Foram 802 casos só em 2017. A proporção de mães com acesso ao pré-natal foi de 46% — ainda menos da metade —, registrando um aumento de 183% entre 2000 a 2016.
"A Amazônia é o pior lugar do Brasil para ser criança. Todos os indicadores sociais estão apresentando valores piores que a média brasileira e muitíssimo piores que os do sudeste do país. De criança fora da escola, vacinação, mortalidade infantil, acesso à água, saneamento", resume a coordenadora do Unicef na Amazônia Legal, Anyoli Sanabria, que explica que as crianças vivem em um estado de "privação múltipla", em que, além de viver na pobreza em termos financeiros, elas têm vários outros direitos violados que prejudicam não só sua qualidade de vida, mas comprometem seu futuro e limitam seu desenvolvimento.
As áreas rurais e dispersas ficam, em grande medida, sem acesso ou com acesso limitado aos serviços básicos como saúde, educação e proteção social. Vulneráveis e desassistidas, essas populações — principalmente, crianças e adolescentes — enfrentam uma série de riscos, alerta a entidade.
A visão de educadores, agentes de saúde, ONGs e instituições dedicadas à infância ouvidas pela BBC News Brasil é de que as crianças que vivem na Amazônia, nas cidades ou na zona rural, enfrentam uma quase que total escassez de serviços públicos — à exceção das que vivem nas capitais. Eles alertam: não vai dar para salvar o meio ambiente sem preservar a população local, cada vez mais vulnerável e dependendo de benefícios sociais.
"Sem social, não há ambiental", resume Caetano Scannavino, coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria, que atua na Amazônia. "No mundo inteiro as questões da pobreza e do meio ambiente estão ligadas", afirma Scannavino, que diz que famílias pobres e sem assistência e serviços de saúde são mais vulneráveis ao ilegalismo ambiental.
"Se eu tenho uma criança doente e eu preciso de dinheiro, de remédio, e tem um madeireiro pedindo uma autorização para tirar uma árvore do meu lote, muito provavelmente eu vou estabelecer um acordo com ele, porque a vida do meu filho está em jogo. Situações como essa se repetem e impactam o meio ambiente e favorecem a cultura do ilegalismo."
Para serem efetivas, as políticas públicas para a infância na região precisam considerar as peculiaridades e desafios extras do chamado "fator amazônico": as meninas e os meninos vivem com suas famílias em uma região muito extensa territorialmente, mas pouco povoada em comparação às demais regiões. Em média, cada quilômetro quadrado da Amazônia é habitado por apenas cinco pessoas, enquanto que em outras regiões do País essa taxa é de 48 habitantes por quilômetro quadrado.
Às vezes em comunidades de difícil acesso vivem crianças indígenas, quilombolas, ribeirinhos, mas também mais e mais em grandes cidades — juntamente com populações tradicionalmente urbanas, afirma a Unicef no relatório "Agenda pela Infância e Adolescência na Amazônia".
A principal privação a que meninas e meninos amazônicos estão sujeitos é a falta de acesso a saneamento. Enquanto a média nacional de crianças e adolescentes sem esse direito está em 24,8%, na maioria dos Estados da Amazônia ela está próxima aos 50%, chegando a 89% no Amapá, em dado de 2017. A única exceção na região é Roraima, com 11,5% de crianças e adolescentes sem saneamento, segundo a Unicef.
"Os indicadores sociais mostram que as crianças na Amazônia têm maior risco de morrer antes de um ano de idade e de não completar o ensino fundamental. Além disso, a taxa de gravidez na adolescência é alta, e as meninas e os meninos na região estão vulneráveis às mais variadas formas de violência, incluindo o abuso, a exploração sexual, o trabalho infantil e o homicídio", afirma relatório da Unicef divulgado em setembro e que analisa os principais desafios para a infância na região.
Também é na Amazônia Legal que o assassinato de jovens e adolescentes aumenta em ritmo mais acelerado no país. Entre 2007 e 2017, o número de homicídios de jovens cresceu acima da média nacional em quase todos os Estados que compõem a Amazônia Legal. Enquanto o homicídio de jovens de 15 a 19 anos aumentou 35,1% no Brasil na década, avançou muito mais no Acre (312,5%); Amapá (107%); Amazonas (117,8%); Maranhão (78,5%); Pará (94,1%); Roraima (112,8%); e Tocantins (222,3%). As exceções foram Mato Grosso (25,8%) e Rondônia (8,6%), segundo dados do Atlas da Violência, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
"As altas taxas de homicídio de adolescentes mostram que a vida de meninas e meninos das periferias é marcada por uma enorme falta de oportunidades que os torna cada vez mais vulneráveis à violência letal. Além de manter os investimentos na primeira infância, é necessário que o país invista igualmente na segunda década de vida", defende a Unicef no relatório "Agenda pela infância e adolescência na Amazônia".
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