sábado, 20 de outubro de 2018

Bolsonaro vai se revelando um político mais pragmático do que se imaginava

A campanha anda radicalizada, mas acostumem-se. A democracia será assim, doravante. Talvez não exatamente desse jeito. Talvez tenhamos candidatos mais bem comportados e elegantes, no futuro.

Mas o fato é que ingressamos na era da democracia digital. Há milhares de pessoas falando o que bem entendem, na internet, sem muita paciência para ouvir o que os outros têm a dizer.

Elas não estão lá muito preocupadas em checar as informações que compartilham ou chegar a um acordo sobre nada. Isso é função da liderança política, dos partidos, do Parlamento. Do lado institucional na política, que agora passou a ser apenas um lado, e não quase toda a política, como foi no passado.

Dito isto, não me surpreendo muito com a estridência do nosso debate eleitoral. Digo apenas que andamos exagerando um pouco. Alunos e professores de uma universidade federal, no sul do país, se dão o direito de suspender as aulas e fazer campanha para “combater o fascismo”. Usam o espaço público sem a menor cerimônia, visto se considerarem donos de algum tipo superior de virtude.

Um articulista aparentemente sério diz estarmos prestes a “viver sob uma intervenção massiva do Estado em todas as esferas de nossas vidas”. Leio outro que assegura estarmos ingressando em mais “vinte e um anos de medo e escuridão”, e pede que aproveitemos para falar agora, pois não se sabe se “ainda teremos este direito quando janeiro chegar”.

A estética do exagero parece ter tomado conta do debate público, mas gradativamente vou percebendo sinais de cansaço. Devagar, percebo muita gente se dando conta que toda esta onda de pavor com a fraseologia de Bolsonaro cedendo espaço a um senso de realidade.


O que um presidente pode fazer, de verdade, contra a vigência de direitos individuais? Emendas à Constituição demandam quatro votações, com quórum qualificado, nas duas Casas. Educação básica compete aos estados e municípios. Segurança ostensiva aos estados. Há um sistema de Justiça independente e uma Suprema Corte ativa e vigilante.

E há liberdade de imprensa, uma sociedade civil organizada e atuante. Numa expressão: estamos longe de ser uma república de bananas, como muitas vezes desconfio que nos veem intelectuais estrangeiros que se especializaram em fazer alertas sobre nossa democracia, em artigos de jornal.

Gradativamente, percebo que a tese do “risco democrático” vai perdendo espaço no sistema político e na intelectualidade mais independente. Vamos, aos poucos, separando o que é realidade daquilo que não passa de retórica de campanha eleitoral (em relação a qual já deveríamos estar vacinados, depois de 30 anos).

O cientista político Carlos Pereira expressou isto com clareza ao dizer que há “risco zero” para nossa democracia, e que, mesmo havendo traços iliberais em ambos lados da disputa política, nossas instituições são fortes e que a “sociedade pega fogo” quando percebe alguma ameaça.

Meu argumento vai nesta direção: a democracia é um surpreendente mecanismo inclusivo, capaz de moderar posições políticas. Muitas vezes subestimado, como nos fez ver Alexis Tocqueville.

É evidente que isto só é verdade quando o sistema de freios e contrapesos funcionam. Quando o custo para o gesto autoritário, por pequeno que seja, é alto. É precisamente este o caso do Brasil atual.

Isto se acentua como efeito de nosso modelo de governabilidade via coalizões, no Congresso. Ele induz à negociação e à composição. Ele obriga ao diálogo, à arte da escuta e da concessão. Ele impõe lentidão à democracia, cria efeitos adversos de cooptação e clientelismo político, alimenta nossa cultura patrimonial.

Mas funciona como um complexo metabolismo de redução do risco democrático.

Agora mesmo, para além da gritaria generalizada que marca a campanha, assiste-se a um discreto processo de realinhamento do sistema político.

A nova composição partidária do Congresso reforçou, na margem, seu perfil liberal e conservador, e não se vislumbra maiores dificuldades para que um eventual governo Bolsonaro forme uma base partidária consistente.

Seu maior desafio será compreender que os mesmos atributos e métodos que produziram sucesso eleitoral não são suficientes para garantir eficiência a seu governo.

Para ganhar a eleição, é perfeitamente racional o rechaço ao sistema político e a retórica antissistema. Para governar, é preciso trabalhar com o sistema. É preciso gerenciar uma ampla base, que deve incluir quase todos os partidos, menos a esquerda tradicional e o PSDB.

Neste quadro, minha aposta é clara: Bolsonaro se revelará, caso eleito, um presidente bastante mais moderado do que a imagem criada a seu respeito. Imagem que ele cuidadosamente alimentou e foi responsável pelo seu sucesso eleitoral (ao menos até o momento).

Sinais desse giro moderado já são evidentes. Paulo Guedes tem se mantido quieto e há um recuo claro na retórica das privatizações. Bolsonaro agora fala em preservar com o Estado o “miolo” da Eletrobrás, e diz que pretende fazer tudo gradualmente.

No tema da reforma da Previdência, assistimos o mesmo movimento. Bolsonaro implodiu qualquer chance do tema avançar no Congresso ainda este ano e sinalizou vagamente que simpatizaria com uma idade mínima de 61 anos para o sistema.

O mesmo se deu na temática social e de segurança. Ele agora fala em uma redução mais contida da maioridade penal, para 17 anos, e acena com uma reforma ampla dos programas de transferência de renda como o Bolsa Família.

É evidente que tudo isto pode não passar de retórica eleitoral. Mas também é verdade que a posição de Bolsonaro não lhe exige fazer grandes concessões.

Uma parte importante do trabalho de quem tenta compreender o mundo da política é enxergar alguns movimentos à frente. O sistema político já se encontra em processo de realinhamento.

Bolsonaro vai gradativamente se mostrando um político mais pragmático do que muitos imaginavam. Se isto é positivo, ou não, vai do juízo de cada um.
Fernando Schüler 

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