O direito que tem falado pelos índios na verdade fala pelos brancos, porque é da lógica branca e não da lógica indígena. Uma decisão pelo marco temporal não será propriamente pelos interesses históricos das populações originárias. O que está em jogo será a oculta motivação da lei que é a de libertar a terra para sua conversão em renda fundiária capitalizada. A conversão da terra em terra de negócio. O oposto da concepção de território que da terra tem as populações indígenas como um bem, não como mercadoria.
É evidente a dificuldade para reconhecer a interpretação indígena das leis e normas que lhes dizem respeito. A de que contém não só o ponto de vista branco sobre os interesses indígenas, mas também podem conter a interpretação indígena desse ponto de vista branco.
Falta no debate a compreensão do modo indígena de interpretar as leis dos brancos a seu respeito. Que o fazem à luz de seu modo de vida, de seus valores, de sua visão de mundo. Nos anos 1970, quando o movimento indigenista começou a ganhar corpo e foram realizadas, em diferentes lugares, as assembleias dos povos indígenas, surgiu extensa verbalização sobre a concepção dos índios a respeito das concepções territoriais que deles tinham os brancos, o Estado e o capitalismo.
Embora neste caso do marco temporal os brancos julguem que está sendo discutido o direito à terra, os índios acham que o que estão questionando é o senhorio de cada povo indígena sobre o seu território.
No parecer de um dos ministros, a concepção de território indígena é regulada por sua ocupação e uso. Porém, a noção que os grupos rebarbativos do subdesenvolvido capitalismo brasileiro têm a respeito de ocupação e uso da terra nada tem a ver com o que deles têm os indígenas.
O tempo das concepções do branco que cobiça as terras indígenas é o tempo do lucro. De preferência o do lucro fácil, como no caso do desmatamento, em que o desmatador transforma em mercadoria o que não produziu, pilhou, que para o índio é um bem comum.
A agricultura indígena é agricultura de roça, rotativa. Mesmo quando se moderniza, e isso tem acontecido, ocorre com o uso racional e equilibrado do território e das diferentes qualidades de mata, terra, caça, águas que definem o cenário da sua divisão social do trabalho.
No entendimento dos indígenas, seus direitos territoriais são relativos a esse território mais amplo de sua concepção de uso racional e produtivo da terra e da natureza. A ausência da tribo em atividades econômicas de branco em partes do território indígena não significa abandono.
O antropólogo Darrell Posey identificou em território kayapó bosques, árvores e arbustos originários de florestas de sua travessia na migração em direção à cabeceira dos rios. São plantas medicinais, as farmácias das tribos.
Mencionado num dos votos do STF, no presente caso, o Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão, de 1755, que foi estendido ao Estado do Brasil em 1757, reconheceu os direitos territoriais dos índios em conexão com a suspensão, em relação a eles, das interdições estamentais que os definiam como socialmente inferiores. O território indígena como reconhecimento de sua condição humana, de sua condição de gente. Uma mediação essencial que o marco temporal anula, com a redução do território indígena a um reservatório de terra-mercadoria.
O Diretório de 1755 libertou-os da estratificação estamental, ao anular os signos de inferiorização social na mestiçagem, formalmente equiparando-os aos brancos. Esse detalhe não foi apreciado no voto do ministro que ao Diretório se referiu. Ressaltou-se, no entanto, a persistência da guerra justa na escravização do índio, na crise do cativeiro, sobretudo a partir do começo do século XIX.
A guerra justa era aplicada em determinadas situações, não em todas. A história social brasileira avança, desde a Colônia, nas brechas que lhe foram sendo abertas, como ocorreria também com o escravo negro durante toda a escravidão.
No caso dos indígenas, o direito ao território nasceu em conexão com o reconhecimento da sua condição humana, até no direito de acesso às funções públicas do poder local. O marco temporal quanto à propriedade da terra situa-se na guerra contra os direitos territoriais da população indígena numa história de crescimento econômico sem desenvolvimento social.
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