segunda-feira, 12 de junho de 2017

Justiça, democracia, eleições

Muitos ocupantes do poder são tementes a Deus. Fariam bem se dedicassem temor igual à História, uma vez que o julgamento desta, ao contrário do Juízo Final, pode pegá-los ainda em vida.

Dependendo do acúmulo de pecados veniais, capitais e mortais cometidos por cada um na vida pública, a avaliação pelo retrovisor dizima glórias efêmeras e transforma em asterisco biografias com pretensões de enriquecer os anais da história dos homens.

Esta semana Brasil e Estados Unidos, os dois maiores países do continente, puderam ver suas versões de justiça, democracia e processo eleitoral sob novo crivo.

Cada um acompanhou a seu modo um capítulo a mais da crise de legitimidade do poder instalado aqui e lá.

Seria desumano exigir do trabalhador brasileiro que acompanhasse as dezenas de horas de sessão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que analisaram o processo de cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer. Exceto para quem tinha obrigação profissional, interesse pessoal ou dedicação cidadã em ouvir os ardis embutidos na defesa de cada voto da corte, foi difícil não ser vencido pela exaustão.

Até porque, como já demonstrou uma pesquisa da Microsoft feita no Canadá, o tempo de atenção contínua dos seres humanos caiu em 25% desde o ano 2000.

Hoje, nossa capacidade de concentração ininterrupta estaria reduzida a apenas oito segundos — um segundo a menos do que a dos peixes dourados, que não fazem uso de dispositivos portáteis nem frequentam mídias digitais.

Mas não é preciso muito mais do que isso para registrar três frases capitais do Corregedor-geral e relator do processo, ministro Herman Benjamin, derrotado em seu pedido de cassação da chapa vencedora na eleição de 2014:

1) “Se eu entendi bem, aqui nós estamos no processo mais importante da história do TSE para examinar caixa 1, mas não caixa 2, invertendo a ordem absoluta de toda nossa história?”

2) As ditaduras cassavam e cassam quem defende a democracia. O TSE cassa aqueles que vão contra a democracia. Há aí uma enorme diferença”.

3) “No fundo, as ações agora sob julgamento são filhas de um sistema político-eleitoral falido”.

Até a tarde de sexta feira, quando este texto foi escrito, tudo apontava para a derrota do relator. E o Brasil prosseguirá claudicante até o próximo confronto judicial da presidência ou o surgimento de novo, inevitável, flanco de denúncias à espreita de Michel Temer.

Quando o jornalista Ezra Klein, da Vox, escreveu que o “presidente carece de legitimidade, o governo está paralisado, os problemas do país continuam não resolvidos”, poderia estar se referindo ao Brasil. Contudo, ele retratava o estado das artes nos Estados Unidos, onde esta semana assistiu-se a algo não menos estarrecedor.

Na quinta-feira o país virtualmente parara para ouvir o depoimento do ex-diretor do FBI James Comey perante a Comissão do Senado que investiga a interferência da Rússia nas eleições de 2016, e o eventual conluio de assessores de Trump com agentes russos.

Comey, cujo mandato era de dez anos, fora demitido por Trump à queima-roupa um mês atrás — alegadamente por não garantir lealdade absoluta ao presidente — e havia se transformado num tóxico poço de segredos incômodos para o governo.

Em seu depoimento transmitido ao vivo, já como cidadão comum, Comey revelou ter entregue a um amigo da Universidade de Columbia anotações feitas logo ao sair de um jantar na Casa Branca convocado por Trump. Na ocasião, e após pedir que outros presentes ao salão se retirassem, o presidente teria sugerido ao diretor do FBI abafar uma investigação em curso contra um ex-assessor incriminado com os russos.

Comey não apenas entregou os memorandos ao amigo, como o instruiu para vazar a existência da papelada ao “New York Times”. Caramba, Comey delator?

O que levou o poderoso número 1 da Policia Federal americana a vazar um segredo que, dependendo do conteúdo, poderá reforçar a abertura de um processo contra o presidente dos Estados Unidos por obstrução da justiça? Segundo Comey, foi a forma por ele encontrada para forçar a constituição de um promotor especial independente com poder de investigação real sobre a campanha de Trump. Conseguiu.

Ficou claro, também, que Comey não confiava nem confia no atual Procurador-Geral, Jeff Sessions. A rede de intrigas apenas se espessa.

(Vale lembrar que o lendário informante de pseudônimo Deep Throat que abriu os olhos dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein para o envolvimento do presidente Richard Nixon no caso Watergate, era o número 2 do FBI da época. Deu no que deu).

Com as respectivas políticas em desarranjo, o judiciário em confronto intestino e o sistema eleitoral sob suspeição, Brasil e Estados Unidos passaram a integrar a lista de 57 “democracias imperfeitas” do índice anual publicado pela Economist Intelligence Unit sobre o avanço e recuos do sistema democrático no mundo. Dos 167 países estudados, apenas 81 ainda podem ser considerados democracias plenas segundo o severo critério da publicação.

Péssima notícia para nós. Ótima notícia para o avanço da polarização, que se alimenta de absolutos, não deixa espaço para o imperfeito, o duvidoso, o inconcluso, nem para a transformação, a evolução, a mudança de opinião.

Num mundo desenvolvido em que o grupo com menor crença no regime democrático é o jovem, no qual 60% desses jovens recebem suas informações através das redes sociais, e no qual a informação (falsa ou verdadeira) não tem sido usada para aumentar o conhecimento e sim para confirmar ou aprofundar preconceitos, o cenário é pouco animador.

Billie Holiday prometeu certa vez que faria o difícil logo, e que para o impossível levaria um pouco mais de tempo.

Brasil e Estados Unidos bem que poderiam começar pelo difícil, já que o impossível vai levar muito tempo.

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