Dependendo do acúmulo de pecados veniais, capitais e mortais cometidos por cada um na vida pública, a avaliação pelo retrovisor dizima glórias efêmeras e transforma em asterisco biografias com pretensões de enriquecer os anais da história dos homens.
Esta semana Brasil e Estados Unidos, os dois maiores países do continente, puderam ver suas versões de justiça, democracia e processo eleitoral sob novo crivo.
Cada um acompanhou a seu modo um capítulo a mais da crise de legitimidade do poder instalado aqui e lá.
Até porque, como já demonstrou uma pesquisa da Microsoft feita no Canadá, o tempo de atenção contínua dos seres humanos caiu em 25% desde o ano 2000.
Hoje, nossa capacidade de concentração ininterrupta estaria reduzida a apenas oito segundos — um segundo a menos do que a dos peixes dourados, que não fazem uso de dispositivos portáteis nem frequentam mídias digitais.
Mas não é preciso muito mais do que isso para registrar três frases capitais do Corregedor-geral e relator do processo, ministro Herman Benjamin, derrotado em seu pedido de cassação da chapa vencedora na eleição de 2014:
1) “Se eu entendi bem, aqui nós estamos no processo mais importante da história do TSE para examinar caixa 1, mas não caixa 2, invertendo a ordem absoluta de toda nossa história?”
2) As ditaduras cassavam e cassam quem defende a democracia. O TSE cassa aqueles que vão contra a democracia. Há aí uma enorme diferença”.
3) “No fundo, as ações agora sob julgamento são filhas de um sistema político-eleitoral falido”.
Até a tarde de sexta feira, quando este texto foi escrito, tudo apontava para a derrota do relator. E o Brasil prosseguirá claudicante até o próximo confronto judicial da presidência ou o surgimento de novo, inevitável, flanco de denúncias à espreita de Michel Temer.
Quando o jornalista Ezra Klein, da Vox, escreveu que o “presidente carece de legitimidade, o governo está paralisado, os problemas do país continuam não resolvidos”, poderia estar se referindo ao Brasil. Contudo, ele retratava o estado das artes nos Estados Unidos, onde esta semana assistiu-se a algo não menos estarrecedor.
Na quinta-feira o país virtualmente parara para ouvir o depoimento do ex-diretor do FBI James Comey perante a Comissão do Senado que investiga a interferência da Rússia nas eleições de 2016, e o eventual conluio de assessores de Trump com agentes russos.
Comey, cujo mandato era de dez anos, fora demitido por Trump à queima-roupa um mês atrás — alegadamente por não garantir lealdade absoluta ao presidente — e havia se transformado num tóxico poço de segredos incômodos para o governo.
Em seu depoimento transmitido ao vivo, já como cidadão comum, Comey revelou ter entregue a um amigo da Universidade de Columbia anotações feitas logo ao sair de um jantar na Casa Branca convocado por Trump. Na ocasião, e após pedir que outros presentes ao salão se retirassem, o presidente teria sugerido ao diretor do FBI abafar uma investigação em curso contra um ex-assessor incriminado com os russos.
Comey não apenas entregou os memorandos ao amigo, como o instruiu para vazar a existência da papelada ao “New York Times”. Caramba, Comey delator?
O que levou o poderoso número 1 da Policia Federal americana a vazar um segredo que, dependendo do conteúdo, poderá reforçar a abertura de um processo contra o presidente dos Estados Unidos por obstrução da justiça? Segundo Comey, foi a forma por ele encontrada para forçar a constituição de um promotor especial independente com poder de investigação real sobre a campanha de Trump. Conseguiu.
Ficou claro, também, que Comey não confiava nem confia no atual Procurador-Geral, Jeff Sessions. A rede de intrigas apenas se espessa.
(Vale lembrar que o lendário informante de pseudônimo Deep Throat que abriu os olhos dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein para o envolvimento do presidente Richard Nixon no caso Watergate, era o número 2 do FBI da época. Deu no que deu).
Com as respectivas políticas em desarranjo, o judiciário em confronto intestino e o sistema eleitoral sob suspeição, Brasil e Estados Unidos passaram a integrar a lista de 57 “democracias imperfeitas” do índice anual publicado pela Economist Intelligence Unit sobre o avanço e recuos do sistema democrático no mundo. Dos 167 países estudados, apenas 81 ainda podem ser considerados democracias plenas segundo o severo critério da publicação.
Péssima notícia para nós. Ótima notícia para o avanço da polarização, que se alimenta de absolutos, não deixa espaço para o imperfeito, o duvidoso, o inconcluso, nem para a transformação, a evolução, a mudança de opinião.
Num mundo desenvolvido em que o grupo com menor crença no regime democrático é o jovem, no qual 60% desses jovens recebem suas informações através das redes sociais, e no qual a informação (falsa ou verdadeira) não tem sido usada para aumentar o conhecimento e sim para confirmar ou aprofundar preconceitos, o cenário é pouco animador.
Billie Holiday prometeu certa vez que faria o difícil logo, e que para o impossível levaria um pouco mais de tempo.
Brasil e Estados Unidos bem que poderiam começar pelo difícil, já que o impossível vai levar muito tempo.
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