segunda-feira, 5 de setembro de 2022

A crise e o projeto em 200 anos

Darcy Riberio, caso estivesse vivo, celebraria no próximo mês 100 anos. Além de um grande educador e antropólogo, era também exímio frasista, capaz de resumir em poucas palavras diagnósticos precisos sobre problemas nacionais. Uma de suas citações mais lembradas é a de que “a crise na educação no Brasil não é crise, é projeto”. Na semana em que faremos 200 anos como nação independente, não há como deixar de reconhecer que Darcy tinha razão.

A crise foi projeto durante todo o período em que o país insistiu na escravidão, tendo inclusive excluído a população escravizada da lista dos grupos considerados cidadãos em nossa primeira Constituição, de 1824. Ao fim do período imperial, o projeto continuava a pleno vapor, quando tanto conservadores quanto ditos liberais aprovaram em 1881 a Lei Saraiva, proibindo o voto dos analfabetos, restrição que só caiu em 1985.

Estava lá também na Primeira República, quando o presidente Nilo Peçanha cria em 1909 a primeira rede de escolas profissionalizantes, estipulando como público-alvo os “pobres e humildes desvalidos da sorte”. O Estado Novo deixou isso ainda mais explícito, colocando na Constituição de 1937 que o ensino “pré-vocacional” era “destinado às classes menos favorecidas”, ao passo que o secundário (único na época a facultar o acesso a qualquer área do superior) visava, nas palavras em decreto de 1942 do ministro Gustavo Capanema, elites “condutoras”.


As vezes o projeto de exclusão não era tão visível, mas nem por isso deixava de alcançar seus objetivos quando, por exemplo, naturalizava o fato de que mais da metade das crianças matriculadas na primeira série do antigo primário (hoje ensino fundamental) não conseguiam sequer chegar à série seguinte. Ou quando, na década de 60, de cada 100 ingressantes no primário, apenas seis conseguiam completar ao final de sua trajetória escolar o que seria hoje o ensino médio. O abuso nas taxas de repetência sem que isso gerasse mais qualidade foi tanto que, ao final do século XX, um relatório da Unesco nos colocou entre os piores do mundo neste quesito, atrás apenas de dez países da África Subsaariana.

Obstáculos não apareciam por acaso. Por exemplo, mesmo quando a maioria dos países desenvolvidos - e mesmo vizinhos latino-americanos - já havia ampliado para sete ou oito anos letivos o período de escolaridade obrigatória, o Brasil até 1971 continuou limitando a quatro séries. E ainda colocava barreiras como os exames de admissão, que não deixavam chegar ao que hoje seria o segundo ciclo do fundamental boa parte dos que terminavam o antigo primário.

Mesmo em períodos econômicos favoráveis, o projeto persistia, caso do ciclo do café paulista no início do século, do governo JK, ou da Ditadura Militar, quando, a despeito de momentos de maior crescimento do PIB, nem assim elevou-se, na mesma proporção, o investimento em educação.

O projeto de exclusão educacional foi majoritariamente vitorioso ao longo de nossa história, mas também tivemos vozes influentes a criticá-lo. Foram educadores como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Cecília Meireles, Alceu de Amoroso Lima, Paulo Freire, Florestan Fernandes, e o já citado Darcy Ribeiro, entre outros. Graças principalmente a uma sociedade civil que foi se fortalecendo, nem tudo foi retrocesso. Tivemos ganhos, com destaque para o período da redemocratização. Não foram poucos, mas foram insuficientes para compensar o imenso atraso histórico. Há muito mais a ser feito para que a história seja, daqui para a frente, diferente.

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