Moser está certo, claro. Não me pareça é que exista novidade em tal conclusão. Aquilo a que ele chama autoimperialismo já outros, há muito tempo, chamaram endocolonialismo. Nem há diferença alguma, neste aspecto, entre os Estados Unidos e o Brasil. Os EUA também se colonizaram a si mesmos, e com enorme violência. E se há, como insiste Moser, quem, naquele bizarro país sem nome próprio, se horrorize com tal História, também há outros tantos que se vangloriam dela. Perguntem a Trump.
A diferença é que ao longo de todo esse complexo processo de autocolonização o Brasil conseguiu criar uma cultura própria, composta a partir das expressões culturais dos povos colonizados — a população indígena e africana. Eduardo Giannetti lembra isto mesmo no seu livro, quase como se estivesse respondendo a Moser: “As técnicas modernas de mapeamento genético permitiram quantificar o que está à vista de todos. Enquanto nos Estados Unidos apenas 1% da população branca possui alguma ascendência africana, no Brasil a maioria dos brancos — cerca de 60% — pertence a linhagens africanas ou ameríndias” — escreve Giannetti.
Em vez de “população branca” seria mais acertado escrever “população que se vê a si mesma como branca”. A maioria dos “brancos” brasileiros não são percebidos como “brancos” nos Estados Unidos. Acontece o mesmo, aliás, com os portugueses. A minha irmã foi casada com um português de ascendência goesa. Tiveram uma filha nos Estados Unidos. Quando o pai foi registrar a menina entregaram-lhe um documento no qual ele deveria selecionar a “raça” da filha, de entre um vasto conjunto de possibilidades. O meu cunhado não hesitou: branca. Os burocratas americanos entreolharam-se, entre chocados e divertidos: “Branca?!” Finalmente, lá o convenceram a registrar a menina como latina ou hispânica. O rico espólio genético da minha sobrinha não cabia naquele papel.
“O entrelaço genético”, ainda citando Giannetti, “se reflete no modo como os brasileiros se autoclassificam quando instados a declarar a cor de sua pele: de galega a sarará e de meio preta a cor de canela e puxa para branca”. Para o economista mineiro “há uma forma de vida embutida em nossa língua falada — a língua fala. Daí que enquanto a presença de termos e expressões afro-indígenas no inglês norte-americano é rarefeita, ela transparece de forma ubíqua no português do Brasil.”
Se há uma diferença entre o endocolonialismo brasileiro e o norte-americano está aqui. Ao colonizar-se a si mesmo o Brasil foi-se descolonizando. Não há nada, ou quase nada, de índio ou de africano na larga maioria dos descendentes de colonos europeus norte-americanos. Os brasileiros, porém, podem repetir o que de si mesmos dizem os cabo-verdianos: “aqui, do branco puro ao negro retinto somos todos mulatos.” Se tirarmos o foco da “raça” e o colocarmos na cultura, como deveria ser sempre, a afirmação é ainda mais precisa. Em termos culturais, nenhum brasileiro é “branco”. Todos são mestiços. Todos são, aliás, mais africanos do que europeus. Talvez por isso o Brasil — ao contrário dos EUA — se tenha conseguido afirmar no mundo sem violência alguma. Apenas recorrendo à extraordinária força da sua cultura mestiça.
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