Foi um susto. Sabia-se que Luiz Inácio Lula da Silva se materializaria na despedida de Dilma Rousseff do Palácio do Planalto, após a mandatária assinar o ato de afastamento compulsório do cargo por até 180 dias. Ainda assim, foram necessários alguns nanossegundos para identificá-lo na figura apagada, esquiva, de olhar ausente e ar perdido captado por câmeras na retaguarda do palanque em que Dilma discursou para militantes na manhã de quinta feira.
Ele parecia ter encolhido de tamanho, aumentado de idade e cortado as amarras com o presente.
Embora a aprovação do processo de impeachment tenha sido contra sua criatura, Dilma, é Lula quem tem menos chance de tentar fazer as pazes com a história, com o Brasil e com sua biografia. Hoje quem diz “era petista” refere-se sobretudo a corrupção, mordomias, Estado aparelhado e saqueado. E cada vez menos ao que a marcha petista deu ao país pela primeira vez em 500 anos — uma identidade social e econômica menos humilhante para a maioria da população.
Como se sabe, quanto maior a biografia do político, maior a queda. “Líderes devem guiar enquanto são capazes. Depois, devem desaparecer”, escreveu H.G. Wells. “Suas cinzas não devem sufocar o fogo que geraram”.
Mais de quatro décadas atrás, o 37º presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon — para muitos historiadores o ocupante da Casa Branca que maior poder exerceu na função — tomou uma decisão que era anátema a tudo o que perseguiu em vida. “Nunca fui de desistir. Sair da Presidência antes do término do meu mandato é contrário a cada instinto do meu corpo”, anunciou em cadeia nacional de televisão na noite de 8 de agosto de 1974. “Mas decidi fazê-lo para colocar os interesses dos Estados Unidos em primeiro lugar”.
Menos de dois anos antes, ele havia sido reeleito com uma maioria estrondosa de 61% dos votos, pontuara 68% poucos meses depois ao encerrar o envolvimento militar americano na Guerra do Vietnã, mas despencara para perto de 20% por causa do chamado escândalo Watergate — a desastrada operação de espionagem contra a sede do Partido Democrata, ordenada e acobertada pelo presidente republicano.
Seguiram-se 17 meses de investigações, escândalos e atritos com o Congresso. Ao final de seu discurso de renúncia, sabendo que não teria os votos necessários para escapar ao impeachment na Câmara nem a uma condenação no Senado, Nixon acrescentou que “prolongar a luta por mais tempo para minha vindicação pessoal certamente haveria de absorver o tempo e a atenção do presidente e do Congresso num período em que nosso foco deve se concentrar na paz externa e na prosperidade interna. Comunico minha renúncia, efetiva a partir do meio-dia de amanhã, quando Gerald Ford prestará juramento neste mesmo Salão Oval”.
Com o anúncio, o país tratou de olhar para a frente, exaurido de tanto revirar fatos do passado. E Nixon, como percebeu o grande colunista James Reston, juntou-se quase aliviado a esse exercício através da renúncia: ignorando todos os crimes e mentiras que o obrigaram a abandonar o poder, despediu-se da nação falando generosamente do futuro, como se toda a tragédia de Watergate não passasse de um grande mal-entendido que minou sua autoridade e deveria ser esquecido. Também o país queria esquecer, virar a página, mesmo que de forma imperfeita.
Na essência, o caso de impeachment de Dilma Rousseff por crime de responsabilidade fiscal, e o que levou à renúncia de Richard Nixon nada têm em comum — a começar pela avaliação da legitimidade dos dois processos, que nos Estados Unidos jamais esteve em dúvida.
Ambos apenas mencionaram ter cometido erros em seus ato de despedida (temporária no caso de Dilma). “Fizemos coisas erradas na nossa Administraçao e a responsabilidade sempre recai sobre o cara de cima”, admitiu Nixon, emotivo e suarento, perante as filhas Julie e Tricia em lágrimas. “Posso ter cometido erros, mas não crimes”, discursou a presidente afastada, serena diante da plateia de aliados emocionados.
Quatro horas após o esvaziamento do Palácio do Planalto do último petista, na cerimônia de posse do novo Ministério, sinal dos novos tempos. Do gótico gabinete de Michel Temer, apenas um arriscou apresentar-se de gravata vermelha, adereço de regra dos donos do poder até a antevéspera. Gravatas prateadas, cinza chumbo e um ar mais sisudo compunham a coreografia desejada.
Mas a rua não é tola. O juiz Sérgio Moro também não. Nem Dilma nem Temer ou as Excelências da Câmara e do Senado que catapultaram o processo de impeachment teriam condições de pronunciar sem corar uma frase simples dita por Nixon ao se despedir de assessores, membros de gabinete aliados mais fiéis antes de decolar para o exílio do poder:
“Podemos nos orgulhar do fato de que, em cinco anos e meio, nenhum homem ou mulher que trabalhou para o meu governo dele saiu com mais bens materiais do que quando aqui entrou”. Referia-se, é claro, a vantagens e falcatruas. “Nenhum funcionário ou funcionária teve qualquer lucro às custas do bem comum. Isso diz muito sobre quem vocês são. Erros foram cometidos, sim, mas nunca em proveito próprio. Gostaria muito de ser rico para poder recompensá-los pelo serviço que prestaram à nação”.
Era verdade.
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