A democracia teve quatro etapas de desenvolvimento.
Na primeira os cidadãos aprovavam ou não, diretamente, propostas apresentadas em praça pública. Tornou-se inviável quando a Grécia passou a ser mais que Atenas. Veio depois a Republica Romana em que o cidadão elegia quem decidia em seu nome. Naufragou na corrupção pela ausência de mecanismos de controle dos representantes pelos representados.
O passo seguinte é a República dos Iluministas que asila-se na América em 1788. É a primeira e única revolução a substituir o típico “manifesto” de direitos e objetivos utópicos em que todas as precedentes terminavam pelo desenho de instituições projetadas para submeter em vez de servir os próceres da nova ordem, pulverizar em vez de concentrar o poder dos vencedores, incentivar em vez de impedir o dissenso, e submeter cada uma dessas inovações ao debate nacional por meio dos “Artigos Federalistas” (“Federalist Papers”), de modo a “estabelecer o bom governo pela reflexão e pelo consentimento” e não mais “pelo acaso e pela força”.
Foi escassamente lido por aqui esse manual de arquitetura institucional que o uso viria a consagrar como a melhor que a humanidade produziu. A quase democracia brasileira encalhou em algum ponto bem mais próximo da versão romana que da americana. A Republica, entre nós, foi quase inteiramente “tocada de ouvido”. Não houve consertação nacional nem esforço abrangente de reforma institucional. O voto substituiu o “direito divino” mas o Estado herdou intactos os poderes discricionários do imperador sobre os súditos. Ao sabor das idiossincrasias dos presidentes tivemos, depois de duas ditaduras militares, o “acidente” democrático Prudente de Morais num breve hiato do qual Rui Barbosa teve a oportunidade fortuita de plantar o marco institucional do capitalismo brasileiro – única inovação real da Republica – com o resultado fulgurante que fez de São Paulo o que ele é até hoje. Daí em diante, porém, vimos, entre ditaduras e quase ditaduras, empilhando leis e decretos para restabelecer privilégios perdidos e criar novos, variando apenas as clientelas contempladas, e reduzindo cada vez mais o Brasil “self made” criado a partir daquela semente à condição de uma guerrilha de resistência.
Da quarta e última etapa de desenvolvimento da democracia, a que emancipa finalmente o eleitor como soberano absoluto do processo político, o Brasil ficou totalmente excluído. Mal tem notícia da sua existência, aliás.
A democracia americana da virada do século 19 para o 20 andava tão carcomida pela corrupção quanto a brasileira hoje. É nesse momento que, começando por uma única e solitária cidade, parte para a síntese entre o sistema representativo e o de democracia direta que inverteria a hierarquia da relação entre representantes e representados, submeteria o Estado à cidadania e liberaria as forças vivas da sociedade para mudar para sempre a velocidade do desenvolvimento.
Com um século de exercício dessa prerrogativa – que sem nunca ter passado do âmbito estadual bastou para desinfetar todo o sistema – os americanos, enquanto iam filtrando o joio do trigo, foram-se equipando, de reforma em reforma, de um ferramental cada vez mais amplo de intervenção direta no processo político que hoje lhes permite decidir no voto, sem pedir licença a ninguém, tudo que nós vivemos rezando para os nossos políticos fazerem ou deixarem de fazer por inspiração do Bom Jesus da Lapa.
Que impostos concordam em pagar; que quantidade de dívida cada governo pode emitir; qual o salário e as obrigações dos servidores; quem continua ou não empregado do Estado; qual a pena para cada crime no Código Penal; leis de inciativa popular que o legislador não pode modificar; poder de veto a leis aprovadas pelo Legislativo; confirmação ou não do juiz de cada circunscrição a cada quatro anos; revisões periódicas obrigatórias de constituições estaduais; escolha de diretores, currículos e professores das escolas públicas, tudo isso e muito mais é decidido diretamente no voto e entra ou sai da lista de questões incluídas nas cédulas de cada eleição por iniciativa de quem vota e não de quem é votado.
Democracia é isso. O resto é tapeação.
Ao fazer da facilitação das correções sucessivas de rumo o padrão do seu sistema num mundo travado pela burocracia a serviço do privilegio os Estados Unidos decolaram para o futuro. Essa nossa montanha de entulho institucional cheirando a idade média não dá mais remendo. O teste da História comprova que só ha uma maneira de construir um país “user friendly”: é as instituições passarem a ser definidas passo a passo pelos seus próprios usuários. E assim que isso começa a acontecer no elo primário da cadeia que é o município, todo o resto do sistema se vai ajustando pelo novo gabarito.
É um objetivo perfeitamente alcançável mesmo num sistema tão emperrado quanto o nosso. Apresentar cotidianamente à massa dos brasileiros o espetáculo da democracia em funcionamento onde ela de fato existe seria um poderoso acelerador. Mas ainda que a imprensa siga até o fim dos tempos tomando Brasília pelo Brasil e colocando ambos fora do mundo a rua pode conquistar sozinha esse direito fundamental à ultima palavra nas decisões que afetam o seu destino que define a democracia moderna. Tudo que é necessário é foco e persistência.
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