terça-feira, 22 de maio de 2018

Brasil de mármore e de murta

O Padre Vieira criou uma ideia em seu Sermão do Espírito Santo, em 1657. Alguns povos, pensava o inaciano, são de difícil mudança e resistem à pregação do Evangelho. Diz o português que: “Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas”. No caso desses povos, a conquista espiritual seria muito complexa e demorada. Uma vez realizada a tarefa hercúlea, a nova imagem seria dura como a pedra e os convertidos ficariam apegados de forma definitiva à Boa-Nova. 

Haveria outros povos, como os indígenas do Brasil, que teriam comportamento oposto. Seriam dóceis e receptivos ao novo modelo religioso. A facilidade da adesão seria acompanhada pela pouca constância no caminho de Jesus. Imediatamente cristianizados e com rapidez voltando às crenças antepassadas. No caso em questão, em vez de mármore, seria como esculpir em um arbusto, a murta, planta sobre a qual o jardineiro hábil pode produzir formas inventivas. Passadas algumas semanas (Vieira fala em 4 dias), o arbusto perde o modelo e retorna ao estado natural. No mundo clássico, a murta era dedicada à deusa do amor, Vênus/Afrodite, reforçando sua mutabilidade. Os “gentios” do Novo Mundo eram alunos ambíguos: aceitariam tudo que lhe ensinam e, teimosos, permanecem apegados ao seu universo de valores. 

A metáfora do lisboeta foi aproveitada por Eduardo Viveiros de Castro. Em artigo hoje inserido em livro (A Inconstância da Alma Selvagem, em nova edição pela Ubu Editora, 2017), o antropólogo discorre sobre o impacto cosmológico provocado pela catequese dos jesuítas, especialmente sobre a prática do canibalismo. Os padres reclamavam que os indígenas adoravam nada e isso dificultava a mudança religiosa, pois escapavam dos modelos de idólatras que os jesuítas tinham a partir da memória histórica da conversão da bacia do Mediterrâneo no Baixo Império Romano. Pior, os indígenas não teriam fé porque não tinham lei e não tinham lei porque não tinham rei. Sem um sistema tradicional de submissão a um rei e a um código jurídico, era difícil substituir o mundo nativo pela nova lei e pelo novo rei europeu. No fundo, o desafio para os jesuítas e para alguns da escola de Émile Durkheim, os tupinambás não tinham religião.

Sem Fé, sem Lei e sem Rei (que Pero de Magalhães Gândavo atribuiu à falta de F, L e R na língua tupi), os habitantes originais daqui seriam incapazes de realizar a incorporação da norma europeia porque não tinham norma anterior. O selvagem seria inconstante e incapaz de adaptar-se a um sistema civilizado. Grande parte do pensamento conservador da intelectualidade brasileira nos séculos seguintes dialogaria com a ideia do Padre Vieira. “O brasileiro não tem jeito”, “a saída para o Brasil é o aeroporto” e outras frases que reforçam a construção (quase sempre urbana e branca) de um país impossível de atingir patamares dignos de uma pátria moderna. A culpa? Ela já foi colocada nos grupos humanos constitutivos da sociedade dos trópicos ou no clima. Haveria, dizem preconceituosamente há séculos, uma combinação nefasta de preguiça, magia e dependência do Estado, fruto da mistura de indígenas, africanos e portugueses. 

Com outro recorte e com outra intenção, há o filme dirigido por Sérgio Bianchi: Cronicamente Inviável (2000). Na obra, as contradições regionais e as diferenças sociais são retratadas não como mazelas que podem ser refeitas a partir de uma ação efetiva, porém algo impossível de ser remediado, pois seria, justamente, crônico. Assim, sem citar Vieira, nós seríamos, como sociedade, um arbusto de murta. Aceitamos docemente qualquer choque de gestão, um programa novo de governo ou um planejamento bem ou mal-intencionado porque, no fundo, todos sabemos que, em breve, tudo voltará ao original informe. Novas chefias e novas regras são bem recebidas, pois, basicamente, não acreditaríamos que possam ser efetivas ou duradouras.

Minha experiência como professor é que toda regra enunciada no início do semestre é recebida com anuência silenciosa pelos alunos. Iniciam-se os trabalhos letivos e, lentamente, os discentes percebem que a regra é real e que será implementada. Então começam os choques e os pedidos para que elas sejam mudadas. É interessante: a regra (ou, se preferirem, a lei) não causa reação. Acredita-se que ela também será murta. Quando é notada a consistência marmórea na implementação, a resistência surge. Lembro-me do espanto de um amigo alemão ao ver a notícia de uma lei estadual afirmando que menores não poderiam comprar bebidas alcoólicas. Ele me perguntou: “Antes podia”? Eu disse que nunca foi possível, que sempre fora proibido, mas agora era efetivamente interditado. Claro, estimado leitor e querida leitora: o alemão não conseguiu entender o advérbio: como seria algo “efetivamente” proibido e como seria possível de distinguir de algo apenas proibido. Notável falta de imaginação germânica para nossa elasticidade interpretativa. Tem jeito? Seremos sempre murta? Bem, outubro está aí e teremos de responder de novo a essa questão. 
Leandro Karnal

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