O conceito é fraco e difuso. Sabe-se que a insegurança se prolifera em cidades e que dispara com o tráfico de drogas. A partir daí, é imprevisível. Muito rapidamente se adapta a qualquer ambiente. Houve uma época em que foi vinculada à pobreza. Há muito tempo essa teoria teve as asas cortadas. Linear demais. A miséria não é causa suficiente. E, às vezes, nem mesmo necessária. A América Latina é um bom exemplo para entender isso.
A área registra uma das maiores taxas de crime do mundo. Mais de um milhão de assassinatos entre 2000 e 2010. Em 11 de seus 18 países, os homicídios têm status de epidemia, ou seja, superam os 10 casos a cada 100.000 habitantes. Há cidades como Caracas, Acapulco, San Pedro Sula e San Salvador onde esse índice é 10 vezes maior. Nesses casos, não se trata de uma epidemia, mas de puro terror.
Mas nem tudo foi ruim para esse território. Ao contrário, a América Latina passou, na década passada, por um dos maiores desenvolvimentos econômicos da sua história. O desemprego caiu de forma sustentável, 70 milhões de cidadãos saíram da pobreza e o crescimento agregado foi de 4,2% ao ano. Um sonho para qualquer economista. Não para um policial. Com a bonança, a criminalidade também cresceu. Homicídios e roubos alcançaram taxas delirantes. A bem-intencionada correlação (menos pobreza, menos crime) encalhou. A insegurança mostrou ter uma genética mais complexa. Por trás do crime, latejam forças pouco estudadas.
O paradoxo, devastador para os papos de café da Europa Central, foi analisada cuidadosamente pelo Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas(PNUD). Em um relatório referencial, publicado em 2014, constatou-se que a singularidade se move em águas profundas. Nem mesmo há uma relação estreita entre a renda e o crime. Honduras e El Salvador apresentam as taxas de homicídio mais altas, mas sofrem da mesma pobreza que Bolívia e Paraguai, com menores índices de homicídios na região.
Algo parecido acontece com a desigualdade e o desemprego. A redução de ambos, na década prodigiosa, não trouxe consigo, segundo os especialistas da ONU, uma queda das mortes e dos roubos. “Consideradas separadamente, a pobreza, a desigualdade de renda e o desemprego não parecem explicar satisfatoriamente os níveis de insegurança na região. Pelo contrário, o crime aumentou em um contexto regional de crescimento dinâmico e de melhoras notáveis nos indicadores sociais. Entender essa particularidade requer aceitar que a violência e o crime não têm explicações simples”, afirma o relatório do PNUD.
Com esses tópicos derrubados, emerge como possível fator causal algo profundamente enraizado na América: as grandes organizações criminais, especialmente as dedicadas ao narcotráfico. Sua capacidade de corrupção, sua penetração nos aparatos estatais e sua letalidade convertem-se em um candidato explicativo de primeira ordem. Mas, novamente, a insegurança escapa dos reducionismos. “O narcotráfico dinamiza o delito, mas não é a origem, seu desaparecimento não mudaria radicalmente o panorama, sempre existirão mercados ilícitos, negócios sujos, diversificação criminal. Legalizar a droga não é uma varinha mágica”, afirma Gema Santamaría Balmaceda, professora do Instituto Tecnológico Autônomo do México e assessora principal do relatório do PNUD.
Por esse ponto de vista, o narcotráfico é mais uma consequência do que uma causa. Há, antes, um terreno fértil, cuja origem é multifatorial e, portanto, difusa. Como qualquer conceito fraco, a insegurança vive em contínua transformação e é suscetível às mudanças sociais. Influenciam-na fatores como expectativas sociais, qualidade do emprego, entornos urbanos massificados e, sem dúvida, as drogas e as armas”.
A faixa resgatada da pobreza não entrou na classe média. Tem um pé dentro e outro fora. Ao menor vendaval pode voltar ao poço
“Não há uma evidência forte de correlação entre a pobreza e a desigualdade com o crime, mas advertimos sobre a importância fundamental do crescimento da sociedade de consumo. Formam-se enormes mercados ilegais de carros, telefones, comida, animais... sustentados por altíssimas demandas que, paradoxalmente, respondem a uma melhora da renda das classes mais baixas”, explica Marcelo Bergman, diretor do Centro de Estudos Latino-americanos sobre Insegurança e Violência da Universidade Tres de Febrero, da Argentina.
Essas novas tipologias, agrupadas no denominado “delito aspiracional”, representam um dos fenômenos mais disruptivos. E sua explicação não é simples. Os estudos mostram que a franja social resgatada da pobreza durante a década de ouro não entrou diretamente na classe média, mas tem um pé dentro dela e outro fora. Ao menor vendaval, pode ir embora. Forma o chamado “grupo vulnerável” e é a classe mais numerosa da América Latina: aproximadamente 38% da população. Seus empregos são de baixa qualidade, vivem expostos à informalidade econômica e sua mobilidade social é mínima. O desenvolvimento econômico, portanto, não criou uma barreira forte contra o crime. Ao contrário. As ânsias de consumo dispararam, mas não os meios para satisfazê-las. O problema não é a pobreza, mas a falta de expectativas. “As pessoas em situação de pobreza não são necessariamente as que cometem crimes, são as que têm aspirações de alcançar as metas prescritas pela sociedade (roupas de marcas ou celulares de última geração), mas têm desvantagens para materializá-las com empregos ruins ou salários baixos”, afirma o relatório do PNUD.
Junto à insatisfação social, outro detonador é o entorno. Não há zona mais urbanizada no mundo do que a América Latina. Por volta de 80% da sua população vive em cidades. Na periferia da capital do México, uma megacidade de 23 milhões de habitantes, explica, colônias como Desenvolvimento Urbano Quetzalcóatl (68.000 habitantes) não têm uma única biblioteca, mas 450 estabelecimentos de venda de álcool. O bairro, com 70% de desemprego jovem, tem a questionável honra de ser o que mais presos coloca nas cadeias do Distrito Federal.
É em espaços assim que ferve a sopa da violência. Mundos sem memória de melhoras, com empregos de ínfima qualidade e derrotas em toda parte. A lista perfeita para o último ingrediente: o tráfico de drogas. “O narcotráfico exacerba até a caricatura os ideais consumistas da sociedade em que vivemos: carros, mulheres e armas”, explica Andreas Schedler, professor do Centro de Investigação e Docência Econômicas (CIDE) e autor de No Nevoeiro da Guerra: os cidadãos diante da violência do crime organizado.
Leia mais o artigo de Jan Martínez Ahrens
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