Reinar, mas não governar. Essa é a ameaça que paira sobre a cabeça de mandatários que fazem da autossuficiência o molde de seus governos. Nas democracias modernas, governar é repartir, dividir, compartilhar com os parceiros políticos a administração pública. Pela ausência dessa prática, os governos, particularmente por estas plagas, têm perdido força. Nos anos do lulopetismo, incluindo a gestão da presidente Rousseff, os atores partidários até foram convidados a participar da administração. Mas não como parceiros; foram chamados para integrar o time governamental, sem direito, porém, a opinar sobre políticas públicas. Em termos mais concretos, o governo nomeou ministros de muitos partidos, mas estes viram seus poderes limitados. Alguns até passaram a ser monitorados por quadros petistas fincados ao seu redor.
Governos que assim agem acabam experimentando derrotas sucessivas no Congresso. E até impedimentos. O passado registra o caso de Fernando Collor de Mello. Não fazia articulação com a base política. Sem capital político, foi empurrado para fora da Presidência da República por um impeachment. Algum verniz de distanciamento entre o Executivo e o Congresso também pode ser enxergado no ciclo Dilma. Que, como se sabe, cultivou imenso desprezo pela base parlamentar.
O nosso chamado “presidencialismo de coalizão”, portanto, não se apoia em bases sólidas. Frequentemente, balança em areia movediça que gera instabilidade. A explicação é a forma de relacionamento do Executivo com os partidos que lhe dão sustentação. Adota uma forma considerada ortodoxa, unilateral, sem reciprocidade. O maior partido do país, o PMDB, por exemplo, sempre se queixou por não ser governo, mas estar no governo. Foi assim durante a era petista.
A diferença entre ser e estar conduz aos fundamentos do “presidencialismo de coalizão”, nos termos descritos pelo cientista político Sérgio Abranches em 1988, que pressupõem três momentos: a constituição pelos partidos de uma aliança eleitoral e sua união em torno de um programa mínimo; a formação do governo, a partir do preenchimento de cargos e compromissos com a plataforma política; e a transformação da aliança inicial em coalizão governativa. Ser governo significa assumir responsabilidades nesses três momentos.
Sob essa perspectiva, os governos deveriam amalgamar as posições programáticas dos partidos, contemplando-os na operação administrativa de acordo com a sua respectiva densidade política no Congresso Nacional e observando a identidade e as vocações de cada um. Mas isso não é visto no cotidiano da administração. A disparidade no atendimento das demandas partidárias abre contrariedades, organiza emboscadas, gera traições.
As disputas por espaços se acirram sob o leque do fisiologismo, mazela histórica de nossa cultura política. A crise política por que passa o país tem muito a ver com essa distorção. O PT sempre cultivou a ideia de formar sua redoma de poder, só admitindo (a fórceps) compartilhar espaços na Esplanada dos Ministérios. Nunca arredou mão do lema “nós aqui e eles lá”. Em outros termos, o PT sempre quis dizer: nós somos governo, e vocês, aliados, estão aqui de passagem. São convidados circunstanciais. Estar no governo, pois, é ocupar cargos sem a prerrogativa dos ocupantes de interferir no ideário governamental. Essa tem sido a modelagem que gera insatisfação das bases partidárias.
O resultado é um embate permanente entre alas e grupos. Ao deixar de contemplar posições e visões dos participantes da base, o Executivo faz uma interpretação enviesada do “presidencialismo de coalizão”. Qual a razão para tanta autossuficiência? Resposta: o caráter do hiper-presidencialismo. O Poder Executivo ganhou força com a Constituição federal de 1988, que dotou o governo de extraordinário instrumento legiferante (a medida provisória). Além deste, outros meios têm expandido o cacife presidencial: a adoção do regime de urgência na tramitação de projetos de lei; o mecanismo de votação simbólica de lei pelos líderes partidários; a legislação tributária centralizadora e a própria Lei de Responsabilidade Fiscal.
Com essa armação, o Palácio do Planalto, nos últimos anos, passou a enquadrar as políticas do Estado em duas bandas: uma com capacidade decisória sobre metas de câmbio, política de juros, cujos efeitos se fazem sentir nas políticas de emprego e renda; a outra, sem poder decisório central, fica repartida entre os apoiadores. Não por acaso floresce no País um autoritarismo civil sem precedentes. As tensões entre os Poderes atingem um clímax. O barão de Montesquieu (quem se lembra dele?), com seu sistema de pesos e contrapesos, vê quebrada a harmonia que pregava entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Diante dessa moldura, cai bem a proposta do presidente em exercício, Michel Temer, de dar forças aos ministros, permitindo-lhes conduzir suas áreas com conceitos e estratégias próprias, bastando que sejam afinadas ao escopo governamental. Ou seja, ele quer ajustar a gramática do poder, começando com a declinação dos verbos ser e estar. Os integrantes da plataforma governista agora poderão dizer que são governo e, assim, participar da elaboração das regras do jogo, não apenas nele entrando como coadjuvantes. Esse é o desafio que se apresenta ao “presidencialismo de coalizão”. Sem essa condição, o que teremos é a continuidade da colisão.
É evidente que a aprendizagem na cartilha dessa feição presidencialista demandará compromisso dos entes partidários com valores éticos e princípios morais, sem os quais os domínios administrativos se tornarão feudos de caciques e interesseiros. Posições mais transparentes, articulação das forças sociais para participar da formulação das políticas e calendário de implementação dos programas ajudariam a compor uma identidade governativa homogênea. Ganharíamos, sem dúvida, uma República mais limpa.
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