No fim da Segunda Guerra Mundial — ele serviu no Departamento de Propaganda —, Capra estava afastado do ambiente ultracompetitivo de Holywood e, perto dos 50 anos, apostou na história “The greatest gift” (“O maior presente”), um conto de Van Doren Stern inspirado num sonho e, em 1943, rejeitado por revistas e divulgado pelo autor em 200 cartões de Natal. Foi assim que virou filme a história do pai de família quebrado, como muitos neste Brasil de 2022, que tenta se matar, mas a quem um anjo, enviado pelas preces dos seus entes queridos, realiza o milagre de fazer ver a falta que sua existência faria caso não tivesse nascido e vivido — nosso maior presente.
O filme é enquadrado pela visão americana do Natal, mas vai muito além. É, sobretudo, uma crítica aos dois lados do capitalismo. O do banqueiro egoísta, preso a uma cadeira de rodas, símbolo da mais-valia de todos os que amam o poder pelo poder; e a do herói, herdeiro sem querer de uma frágil cooperativa que socializa o dinheiro financiando casas para trabalhadores e imigrantes (Capra foi um imigrante paupérrimo). A cooperativa opera como nossos “bancos de habitação”, sempre canibalizados pelos populismos de direita e esquerda.
O filme também especula sobre um intrigante problema filosófico. A questão de ver o mundo em que se viveu sem nele ter nascido. Um exercício que, inconscientemente, praticamos. Um olhar duplo. No primeiro, o real; no segundo (graças ao milagre da imaginação), as mesmas pessoas, mas sem nossa presença. Essa possibilidade de assistir a uma impossível saída da vida que vivemos é a melhor prova do poder do cinema que jamais vi no cinema. Seu clímax ocorre quando o herói — prestes a se suicidar — revê milagrosamente sua existência e a implora de volta. Precisamente porque compreende que todos somos fabricados por sofrimentos e dificuldades.
É quando Capra prova quanto tocamos em inúmeras outras vidas. “A felicidade não se compra” é um filme revelador de que ser é melhor do que ter.
O que tem isso a ver com “nosso Brasil”, em plena ebulição de venda de felicidade eleitoral, em que, nós, pessoas comuns, somos obrigados a ver, ouvir e eventualmente “comprar” uma entrada (ou voto) nesse filme de politicagem, encontros e desencontros que tipificam essas transições de poder político e institucional?
Arrisco-me a dizer que o filme é um contraponto a essa busca eleitoreira obviamente marcada pela falsidade, porque ilusória e repetitiva, em que vidas duplicadas e contrárias a seus propalados ideais polarizam-se como resultado de um populismo estrutural que só pode levar à insinceridade e ao engodo — um autoengano.
Vejam os heróis-candidatos e como eles retornam a suas “primeiras” vidas, tentando refilmá-las como se elas fossem coerentes com o que fizeram e fazem numa viagem de cinema... Pois, tanto de um lado quanto do outro, houve uma cilada em colocar em prática os ideais que pregavam e prometiam praticar.
Aliás, eles não se opõem, mas se completam, pois, sem a corrupção lulopetista, não haveria nenhuma chance para esse bolsonarismo, cujas marcas são a confusão, a violência, o caos e a negação.
Filme é filme, realidade é realidade. Mas existem princípios morais que comandam a prática política? Ou só vale fazer tudo para ganhar e “tomar o poder”? Há coerência na vida social, ou somos todos tão presos a nossos interesses quanto os candidatos que — sem dúvida e com as devidas, mas cada vez mais raras, exceções — se aventuram a disputar papéis muito acima de seus talentos?
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