terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Não é nada disso

Há coisas que, para entendermos, basta um pouco de lógica formal. Se o mundo se recupera, se até a Argentina volta a crescer e, além de nós, a Venezuela é o único país sul-americano a perigo, como a economia internacional pode ser considerada a exclusiva culpada pela nossa crise? E se a China é a vilã responsável pela nossa desgraça, por que permitimos que nossa economia, ao longo dos últimos anos, se tornasse tão dependente do que acontece por lá?

Em Lisboa, num certo fim de noite de algum vinho, um amigo meu, professor em universidade local, desabafou irritado me dizendo que não entendia por que os brasileiros viviam pondo a culpa nos portugueses pelo atraso do Brasil, quando nós somos independentes desde 1822. Fingi não ter ouvido, meu amigo estava até sendo gentil pois, na verdade, somos uma nação desde 1808, há mais de dois séculos.

Entre nós, o estrangeiro é sempre o culpado de tudo. Talvez porque precisamos vencer o trauma da incompetência, justificar nossa impotência, explicar sem culpa o nosso atraso. Primeiro foi o colonialismo português, depois as grandes nações europeias, finalmente o imperialismo americano. A estratégia não é original. Joseph Goebells, o marqueteiro de Hitler, já havia ensinado que, para unir um povo com agressividade em torno de uma mesma causa, nada como nomear um inimigo externo que seria o responsável por nossos males. Quando o nazismo botou a ideia em prática, ela gerou o Holocausto.

Esta semana, mandei para aquele professor lisboeta o número de janeiro da revista “Piauí”, recomendando a leitura de reportagem sobre um certo brasilianista americano que eu não conhecia. Tendo sido professor na Business School da Universidade de Nova York, o economista Nathaniel Leff dedicou parte de sua vida a estudar a história econômica do Brasil, tentando entender o mistério de nosso atraso crônico. Ele publicou o livro “Subdesenvolvimento e desenvolvimento no Brasil”, editado em 1982, com ensaios produzidos entre o final dos anos 1960 e o início dos 70.

Na primeira metade do século 19, o Brasil tinha um PIB próximo ao dos Estados Unidos, mas concentrado nas poucas mãos de fazendeiros extremamente conservadores. Segundo Leff, o país se tornou uma máquina de produzir gente “barata”, uma abundância de trabalhadores não qualificados que custavam pouco e consumiam nada. “Uma industrialização baseada no mercado interno”, diz ele com ironia, “precisa, como condição prévia, de um mercado interno”.

Desde 1862, com a aprovação do Homestead Act pelo Congresso americano, quem ocupasse terras sem dono por mais de cinco anos se tornava seu proprietário, fosse nascido nos Estados Unidos ou não (levas de imigrantes começavam a chegar ao país). No Brasil, no Império e na República, as terras sempre pertenceram ao Estado, que cobrava caro por elas, além de exigir pagamento à vista. Não tendo como comprá-las, os trabalhadores corriam ao fazendeiro mais próximo e vendiam por nada sua força de trabalho. “No caso brasileiro”, escreve Leff, “interesses de classe eram tão obviamente distintos que é razoável questionar a validade de se usar a ‘nação’ como unidade de análise”.

Leff aponta a passagem do século XIX para o XX quando, há algum tempo, o Brasil não era mais uma colônia, como o momento em que o país organiza, por sua própria conta, a síndrome de seu atraso. Ali, quando finalmente o país começa a fazer crescer sua malha de transporte (um dos principais motivos de nosso subdesenvolvimento era a falta de integração econômica, ocasionada pelos altos custos do transporte, num país imenso sem estradas ou ferrovias), ela é implementada para atender às necessidades exclusivas dos grandes proprietários de terra da época, os trogloditas do café.

Apesar de os números serem outros, não sei se Leff consideraria a situação de hoje muito diferente daquela. Os culpados pelo “desenvolvimento do atraso brasileiro” somos nós mesmos, submetidos ao poder dos poucos que disputam o resultado do butim nacional. Ninguém tem nada a ver com isso, somos nós os desinteressados pelo país.

Debret, o pintor da Missão Francesa do século XIX, registrou a metáfora desse desinteresse em célebre gravura saudada como singela ilustração da verve brasileira. Nela, um aristocrata nacional, protegido do sol pela sombrinha de um escravo, faz xixi na via pública contra um muro de rua, uma metáfora histórica de como os grandes tratavam o país. Hoje, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), sabemos que o Brasil só universalizará a coleta de esgoto em 2053. Se fosse vivo, Debret ainda poderia pintar muito xixi de poderosos.

Cacá Diegues

Nenhum comentário:

Postar um comentário