quarta-feira, 7 de maio de 2025
Pilares maltrapilhos
Os quatro pilares ideológicos, jurídicos e morais do alto capitalismo - constituições, contratos, cidadania e sociedade civil - são, hoje, vadios maltrapilhos, mas sempre lavados, barbeados e vestidos com roupas novas para esconder sua verdadeira situação de penúria.
Fredric Jameson, “A Cultura do Dinheiro”
A diversidade indecente
Em excelente artigo publicado no Correio Braziliense, o ex-ministro Raul Jungmann apresenta sua visão sobre a importância moral e a necessidade social de combater preconceitos e promover a diversidade — respeito e aceitação do outro, pela cor da pele, orientação sexual, religião ou gênero. Apesar da qualidade e relevância, o artigo manteve a tradição de ignorar o "rendismo": a discriminação ao acesso a bens e serviços essenciais conforme a renda da pessoa (comida, educação, saúde). Tampouco menciona que, aplicado à educação, esse preconceito é a principal causa dos outros preconceitos.
O respeito à diversidade nasce do que for ensinado nas escolas: na formação da mente e na definição de comportamentos. Ser ou não ser racista, homofóbico, machista, depende do que é ensinado nas famílias e nas salas de aula. Cada vez menos nas famílias e mais nas escolas. Apesar da percepção, no Brasil, o acesso à escola de qualidade com permanência até o final da educação básica com qualidade depende de um preconceito disfarçado: a renda da criança. Jungmann lembra que a abolição foi um gesto de respeito à diversidade, ao determinar que legalmente ninguém era mais escravo no Brasil.
Mas o sistema escolar mantém até hoje "escolas senzala", para pobres, "descendentes sociais" dos escravos, e "escolas casa grande", frequentadas pelos "descendentes sociais" dos escravocratas, que podem pagar as altas mensalidades em instituições privadas ou que conseguem vaga em alguma das raras boas escolas públicas, quase todas federais. Pela abolição, brancos e negros tornaram-se iguais perante a lei, mas ricos e pobres continuam a ter direitos diferenciados, graças ao acesso desigual à educação plena e de qualidade.
Para ser plenamente alfabetizado hoje, é preciso saber ler, escrever e criticar em português, ser fluente em pelo menos um idioma estrangeiro; aprender a deslumbrar-se com as artes, ter competência e gosto para o debate sobre os temas de filosofia, política, antropologia e sociologia; indignar-se com a permanência da pobreza, desigualdade social, autoritarismo, corrupção e preconceitos contra as minorias.
Saber usar as ferramentas digitais para usufruir e trabalhar com elas; formar-se em pelo menos um ofício que permita emprego e renda; adquirir noções e gosto pela prática de solidariedade com vizinhos, compatriotas e toda a humanidade: respeitar os patrimônios cultural e natural e sua diversidade; querer participar da construção de sociedades pacíficas, com desenvolvimento sustentável, democrático e justo; ser capaz de obter educação continuada ao longo da vida nestes tempos de limites, incertezas, revoluções tecnológicas e conceituais e transformações geopolíticas; garantir a todos que desejarem, a base para concorrer à vaga nas universidades e nos cursos mais disputados. Essa educação necessária não é oferecida à maior parte dos brasileiros, discriminados pelo rendismo.
Essa discriminação é executada pela falta de um Sistema Único Público de Educação Básica com máxima qualidade, permanência e equidade. Como consequência, o destino de cada brasileiro é definido desde o nascimento conforme a renda. Apesar de um negro rico poder frequentar a mesma escola que um rico branco, a pobreza tem cor preta porque a maior parte da população pobre é excluída da educação de qualidade devido ao rendismo.
O preconceito racial persiste porque a negação de escola de qualidade discrimina a população afrodescendente que, por falta de renda, tem suas crianças fora da escola de qualidade. As análises sobre preconceito e diversidade se mantêm no paradigma tradicional: não denunciam o rendismo na promoção educacional, na compra de anos de vida e de saúde e até mesmo no direito à liberdade — em função do poder de compra dos serviços jurídicos.
Por milênios, houve discriminação racial, mas a palavra racismo só nasceu durante o nazismo alemão para definir a discriminação contra os judeus. Depois, se expandiu para os outros tipos de preconceito racial. Mas, até hoje, a palavra rendismo não é aceita para definir o preconceito de renda que determina a negação do acesso aos bens e serviços essenciais — comida, saúde, escolaridade. O mesmo padrão moral aplicado à desigualdade na qualidade da educação é aplicado à desigualdade no acesso a bens e serviços supérfluos e suntuários. Além de imoral, essa visão é também estúpida, porque não é percebida como a causa de todos os demais preconceitos: a diversidade indecente determinada pela renda, impede o respeito às diversidades decentes.
O respeito à diversidade nasce do que for ensinado nas escolas: na formação da mente e na definição de comportamentos. Ser ou não ser racista, homofóbico, machista, depende do que é ensinado nas famílias e nas salas de aula. Cada vez menos nas famílias e mais nas escolas. Apesar da percepção, no Brasil, o acesso à escola de qualidade com permanência até o final da educação básica com qualidade depende de um preconceito disfarçado: a renda da criança. Jungmann lembra que a abolição foi um gesto de respeito à diversidade, ao determinar que legalmente ninguém era mais escravo no Brasil.
Mas o sistema escolar mantém até hoje "escolas senzala", para pobres, "descendentes sociais" dos escravos, e "escolas casa grande", frequentadas pelos "descendentes sociais" dos escravocratas, que podem pagar as altas mensalidades em instituições privadas ou que conseguem vaga em alguma das raras boas escolas públicas, quase todas federais. Pela abolição, brancos e negros tornaram-se iguais perante a lei, mas ricos e pobres continuam a ter direitos diferenciados, graças ao acesso desigual à educação plena e de qualidade.
Para ser plenamente alfabetizado hoje, é preciso saber ler, escrever e criticar em português, ser fluente em pelo menos um idioma estrangeiro; aprender a deslumbrar-se com as artes, ter competência e gosto para o debate sobre os temas de filosofia, política, antropologia e sociologia; indignar-se com a permanência da pobreza, desigualdade social, autoritarismo, corrupção e preconceitos contra as minorias.
Saber usar as ferramentas digitais para usufruir e trabalhar com elas; formar-se em pelo menos um ofício que permita emprego e renda; adquirir noções e gosto pela prática de solidariedade com vizinhos, compatriotas e toda a humanidade: respeitar os patrimônios cultural e natural e sua diversidade; querer participar da construção de sociedades pacíficas, com desenvolvimento sustentável, democrático e justo; ser capaz de obter educação continuada ao longo da vida nestes tempos de limites, incertezas, revoluções tecnológicas e conceituais e transformações geopolíticas; garantir a todos que desejarem, a base para concorrer à vaga nas universidades e nos cursos mais disputados. Essa educação necessária não é oferecida à maior parte dos brasileiros, discriminados pelo rendismo.
Essa discriminação é executada pela falta de um Sistema Único Público de Educação Básica com máxima qualidade, permanência e equidade. Como consequência, o destino de cada brasileiro é definido desde o nascimento conforme a renda. Apesar de um negro rico poder frequentar a mesma escola que um rico branco, a pobreza tem cor preta porque a maior parte da população pobre é excluída da educação de qualidade devido ao rendismo.
O preconceito racial persiste porque a negação de escola de qualidade discrimina a população afrodescendente que, por falta de renda, tem suas crianças fora da escola de qualidade. As análises sobre preconceito e diversidade se mantêm no paradigma tradicional: não denunciam o rendismo na promoção educacional, na compra de anos de vida e de saúde e até mesmo no direito à liberdade — em função do poder de compra dos serviços jurídicos.
Por milênios, houve discriminação racial, mas a palavra racismo só nasceu durante o nazismo alemão para definir a discriminação contra os judeus. Depois, se expandiu para os outros tipos de preconceito racial. Mas, até hoje, a palavra rendismo não é aceita para definir o preconceito de renda que determina a negação do acesso aos bens e serviços essenciais — comida, saúde, escolaridade. O mesmo padrão moral aplicado à desigualdade na qualidade da educação é aplicado à desigualdade no acesso a bens e serviços supérfluos e suntuários. Além de imoral, essa visão é também estúpida, porque não é percebida como a causa de todos os demais preconceitos: a diversidade indecente determinada pela renda, impede o respeito às diversidades decentes.
Ramsés II, o coração, a pena e a sustentabilidade do planeta
No Egito antigo, no tempo de Ramsés II, a preocupação com a vida após a morte direcionou ações das mais variadas, como construções, práticas de embalsamento e abordagem religiosa politeísta em que a proteção era o lugar comum no relacionamento com as divindades e o paraíso era uma ambição. Uma coisa interessante é que a morte era tratada de maneira parcelada em termos da eliminação do corpo. Após o falecimento, vários órgãos eram descartados, exceto o coração, e o embalsamento tinha o seu rito.
Na crença da época, o falecido enfrentava uma avaliação, conhecida como sala de Maat, em que o coração era “pesado” a partir de 42 negações que se referiam a questões éticas e religiosas, como não ter matado, não ter roubado etc. Com isso, era possível comparar o peso do coração com uma pena. Se no conjunto da avaliação o coração fosse mais pesado do que a pena, uma fera comia o coração, e o sonho do paraíso era extinto para sempre. Se fosse mais leve, seria aprovado e liberado para o paraíso. Era a crença de uma prova com chance única levando em conta toda a trajetória da vida terrena. Ou ia para o paraíso para continuidade de sua vida ou… Parece aquela final do campeonato com jogo único, bem ao estilo Elvis (Is now or never).
Uma das coisas importantes traduzidas para a nossa realidade era que o rio Nilo era incluído no teste do peso do coração, como elemento da natureza a ser protegido e não deteriorado. Uma das condições do julgamento da sala de Maat era a confissão número 35, que consistia em dizer “Não interrompi (ou não obstruí) a corrente d’água”. Interromper a corrente de água significava, literalmente bloquear canais de irrigação, prejudicando plantações alheias, reter água para benefício próprio, em detrimento da comunidade, ou modificar o curso natural do Nilo, algo visto como um ato contra a ordem divina (Maat). Num país onde o Nilo era a fonte da vida, manipular o fluxo da água injustamente era visto como um crime grave, tão sério quanto roubar ou matar, pois podia significar sofrimento e morte para outras pessoas. Era a confluência entre individual e coletivo.
Segundo Zakaria Adeeb Abdelsayed, egiptólogo formado pela Universidade de Assuã, no Egito a lógica era de defesa do Nilo. Não tendo o avanço da sociedade sobre a natureza, o problema não era encontrar latinha de cerveja, sacos plásticos, esgotos clandestinos, pneus ou mesmo sofás boiando, mas algo sobre defender o Nilo pela forma como a natureza teria oferecido. O Nilo era e ainda é a forma mais clara e decisiva na sustentabilidade da região já que, de uma forma muita simplificada, geograficamente, o Egito é um deserto que contém um presente da natureza que permite a vida. A vida foi se desenvolvendo ao longo do rio.
A relação causal entre a existência do Nilo e a vida nesse caso é muito evidente, clara, prática, individual e coletiva. Passa a ser coletiva quando essa clareza se torna homogeneamente prioritária. De forma geral, isso falta à sociedade atualmente. Quando ocorrem as catástrofes a sensibilidade surge, mas se esvai com muita facilidade, em parte por causa do overload de informações e passamos para a página seguinte, deixando de filtrar informações pelas prioridades, mas sim pela atualidade. Vale mais gastar neurônios naquilo que hoje as mídias divulgaram do que algo que mexe com a vida, mas não é tão recente, indicando que a importância do novo supera a lógica do impacto do que se trata. A novidade atrai e ocupa mais o espaço de interesse do que o crítico e estratégico.
Essa consciência da importância da natureza, mais de três mil anos depois, ainda está imperfeita. Na verdade, muito distante do real impacto. Afinal, as mudanças climáticas estão no nosso dia a dia, cada vez mais próximas da nossa vida. Enquanto os fenômenos afetam quem está longe fisicamente, não gastamos tempo e energia. A realidade do aquecimento, enchentes, destruição da natureza traz a dimensão da sustentabilidade para outro patamar, mostrando que o tema é cada vez mais presente e urgente: não é para hoje ou amanhã, mas para ontem.
Embora a questão econômica sempre apareça como forma de desvio das soluções, ela mudaria de perspectiva se fosse percebida sob a lógica de não apenas curto prazo. Quando a gente não consegue ver alguma coisa ocorrer no curto prazo, o estímulo para se preocupar se reduz. Nesse sentido a sustentabilidade, fatiada nos seus vários temas, é um tema de longo prazo como proposta de solução, mas é algo de curtíssimo prazo quando se pensa nos desafios, crises e desastres, alimentado diuturnamente.
Existem vários motivos para a não percepção de urgência, isso, com dependência de múltiplos stakeholders com interlocuções. O tema valorização de ações que tratem a sustentabilidade passa pela lógica de mudança de hábitos e a sensibilização da sociedade deveria se mostrar presente. Temos camadas diferentes de percepções, em que um dado grupo não precisa ler este artigo por se posicionar com evidências e consciência do problema e de algumas soluções; do outro lado extremo, uma camada que não percebe a questão como um problema.
Especialmente no que se refere ao segundo grupo descrito, algumas reflexões podem ser oferecidas sobre o tema sustentabilidade com a inspiração do Nilo.
Nossas ações a favor (tornando o coração leve) e contra a natureza (aumentando o peso do coração) estão sendo “medidas”, não como julgamento da sala de Maat, mas como consequências reais sobre a humanidade, de diversas formas, como aquecimento, enchentes, desequilíbrios que afetam a geração de alimentos e consequências negativas nas vidas das pessoas. Alguns desses fenômenos sempre ocorreram, mas estão se tornando mais críticos e abrangentes, e, infelizmente, nos acostumamos com os problemas. Take for grant, ou seja, “é a vida”. Um grande problema é que quem age contra a natureza, não necessariamente é quem sofre as consequências.
O “Nilo” enquanto metáfora contemporânea se mostra de diversas formas, como o bioma amazônico, o Aquífero Guarani, a Mata Atlântica urbana, por exemplo. A dimensão temporal entre não proteção ao sustentável e os danos não é casada, o que torna difícil a evidenciação causal e mesmo a responsabilização de algumas ações, ou mesmo não-ações. Quando pensamos numa dimensão mais localizada, qual é o “Nilo” que garante a vida na sua cidade ou o seu bairro? E o que você faz por ele?
Podemos trabalhar a ideia de que o julgamento egípcio era individual, mas a salvação sustentável era coletiva. Não podemos perder esse direcionamento, e a educação pode, e deve, transformar catástrofes em gatilhos permanentes de consciência, não apenas em manchetes de ocasião. Educação nesse sentido começa na intimidade dos valores das famílias, da forma como são, com a percepção da importância da sustentabilidade que o núcleo tem.
A escola, nos seus vários níveis e áreas, também têm papel importante, o que proporciona força para a consciência coletiva, independentemente dos direcionamentos governamentais e seus humores nem sempre consistentes, principalmente pelo cruzamento do individual com o coletivo político.
O “efeito novidade” nas mídias tem muita força quando comparado com os temas de priorização estratégica. Os impactos de estiagem do Nilo eram concretos e de curto prazo, o que favorecia a priorização e foco, algo que não é percebido como concreto hoje e deixa de sensibilizar as pessoas. Afinal temos muito tempo para corrigir coisas. Na verdade, não temos, e as correções dificilmente reporão a qualidade da natureza do passado. Temos tantas coisas para priorizar que o “efeito novidade” acaba ganhando mais força do que é realmente relevante e que deveria ser ressaltado pelas nossas lideranças. Afinal, você não se pergunta:“Por que nos mobilizamos mais por uma celebridade da internet que foi presa do que por um bioma queimando por vários dias?”. Provavelmente o “Nilo” não foi percebido. O individual pode afetar o coletivo se for sensibilizado.
Como levar a lógica do “Nilo” até para quem nunca viu água limpa sair da torneira? A heterogeneidade de percepção, tanto do risco como do benefício é enorme, independentemente de camada social e região geográfica, implicando em estruturação de diferentes diálogos. Em outras palavras como dialogar com quem já entendeu e posiciona com compromissos, e como alcançar quem ainda não percebe o risco?
Os rituais egípcios, como a construção de pirâmides e locais para os mortos, eram longos e previamente deliberados. A mudança de hábitos também requer ritos de passagem, paciência, repetição. A tese é que a lógica de pensar na sustentabilidade como ingrediente permanente na cultura das pessoas não se impõe, se cultiva. O esforço no sentido de defender a visão de sustentabilidade existe desde longa data mas precisa ser substancialmente ampliado. Se o planeta estivesse fazendo o papel de Maat, quais perguntas ele faria para decidir se ainda nos quer como hóspede?
A sociedade precisa de algo para ter a percepção que o Nilo produz para o Egito, significando nada mais, nada menos do que a chance de ter vida para hoje, amanhã e depois de amanhã. É isso que deveríamos pensar quando surge o tema sustentabilidade. Nada mais, nada menos.
Prestem atenção ao que mencionei no início deste texto: para pesar o coração eram formulados 42 questionamentos sobre o comportamento das pessoas ao longo das suas vidas. Com isso posso imaginar que Ramsés II, se estivesse por aqui hoje, iria considerar que acesso ao paraíso de antigamente era mais desafiador do que o de hoje. Quem sabe possamos nos encontrar no paraíso?
Na crença da época, o falecido enfrentava uma avaliação, conhecida como sala de Maat, em que o coração era “pesado” a partir de 42 negações que se referiam a questões éticas e religiosas, como não ter matado, não ter roubado etc. Com isso, era possível comparar o peso do coração com uma pena. Se no conjunto da avaliação o coração fosse mais pesado do que a pena, uma fera comia o coração, e o sonho do paraíso era extinto para sempre. Se fosse mais leve, seria aprovado e liberado para o paraíso. Era a crença de uma prova com chance única levando em conta toda a trajetória da vida terrena. Ou ia para o paraíso para continuidade de sua vida ou… Parece aquela final do campeonato com jogo único, bem ao estilo Elvis (Is now or never).
Uma das coisas importantes traduzidas para a nossa realidade era que o rio Nilo era incluído no teste do peso do coração, como elemento da natureza a ser protegido e não deteriorado. Uma das condições do julgamento da sala de Maat era a confissão número 35, que consistia em dizer “Não interrompi (ou não obstruí) a corrente d’água”. Interromper a corrente de água significava, literalmente bloquear canais de irrigação, prejudicando plantações alheias, reter água para benefício próprio, em detrimento da comunidade, ou modificar o curso natural do Nilo, algo visto como um ato contra a ordem divina (Maat). Num país onde o Nilo era a fonte da vida, manipular o fluxo da água injustamente era visto como um crime grave, tão sério quanto roubar ou matar, pois podia significar sofrimento e morte para outras pessoas. Era a confluência entre individual e coletivo.
Segundo Zakaria Adeeb Abdelsayed, egiptólogo formado pela Universidade de Assuã, no Egito a lógica era de defesa do Nilo. Não tendo o avanço da sociedade sobre a natureza, o problema não era encontrar latinha de cerveja, sacos plásticos, esgotos clandestinos, pneus ou mesmo sofás boiando, mas algo sobre defender o Nilo pela forma como a natureza teria oferecido. O Nilo era e ainda é a forma mais clara e decisiva na sustentabilidade da região já que, de uma forma muita simplificada, geograficamente, o Egito é um deserto que contém um presente da natureza que permite a vida. A vida foi se desenvolvendo ao longo do rio.
A relação causal entre a existência do Nilo e a vida nesse caso é muito evidente, clara, prática, individual e coletiva. Passa a ser coletiva quando essa clareza se torna homogeneamente prioritária. De forma geral, isso falta à sociedade atualmente. Quando ocorrem as catástrofes a sensibilidade surge, mas se esvai com muita facilidade, em parte por causa do overload de informações e passamos para a página seguinte, deixando de filtrar informações pelas prioridades, mas sim pela atualidade. Vale mais gastar neurônios naquilo que hoje as mídias divulgaram do que algo que mexe com a vida, mas não é tão recente, indicando que a importância do novo supera a lógica do impacto do que se trata. A novidade atrai e ocupa mais o espaço de interesse do que o crítico e estratégico.
Essa consciência da importância da natureza, mais de três mil anos depois, ainda está imperfeita. Na verdade, muito distante do real impacto. Afinal, as mudanças climáticas estão no nosso dia a dia, cada vez mais próximas da nossa vida. Enquanto os fenômenos afetam quem está longe fisicamente, não gastamos tempo e energia. A realidade do aquecimento, enchentes, destruição da natureza traz a dimensão da sustentabilidade para outro patamar, mostrando que o tema é cada vez mais presente e urgente: não é para hoje ou amanhã, mas para ontem.
Embora a questão econômica sempre apareça como forma de desvio das soluções, ela mudaria de perspectiva se fosse percebida sob a lógica de não apenas curto prazo. Quando a gente não consegue ver alguma coisa ocorrer no curto prazo, o estímulo para se preocupar se reduz. Nesse sentido a sustentabilidade, fatiada nos seus vários temas, é um tema de longo prazo como proposta de solução, mas é algo de curtíssimo prazo quando se pensa nos desafios, crises e desastres, alimentado diuturnamente.
Existem vários motivos para a não percepção de urgência, isso, com dependência de múltiplos stakeholders com interlocuções. O tema valorização de ações que tratem a sustentabilidade passa pela lógica de mudança de hábitos e a sensibilização da sociedade deveria se mostrar presente. Temos camadas diferentes de percepções, em que um dado grupo não precisa ler este artigo por se posicionar com evidências e consciência do problema e de algumas soluções; do outro lado extremo, uma camada que não percebe a questão como um problema.
Especialmente no que se refere ao segundo grupo descrito, algumas reflexões podem ser oferecidas sobre o tema sustentabilidade com a inspiração do Nilo.
Nossas ações a favor (tornando o coração leve) e contra a natureza (aumentando o peso do coração) estão sendo “medidas”, não como julgamento da sala de Maat, mas como consequências reais sobre a humanidade, de diversas formas, como aquecimento, enchentes, desequilíbrios que afetam a geração de alimentos e consequências negativas nas vidas das pessoas. Alguns desses fenômenos sempre ocorreram, mas estão se tornando mais críticos e abrangentes, e, infelizmente, nos acostumamos com os problemas. Take for grant, ou seja, “é a vida”. Um grande problema é que quem age contra a natureza, não necessariamente é quem sofre as consequências.
O “Nilo” enquanto metáfora contemporânea se mostra de diversas formas, como o bioma amazônico, o Aquífero Guarani, a Mata Atlântica urbana, por exemplo. A dimensão temporal entre não proteção ao sustentável e os danos não é casada, o que torna difícil a evidenciação causal e mesmo a responsabilização de algumas ações, ou mesmo não-ações. Quando pensamos numa dimensão mais localizada, qual é o “Nilo” que garante a vida na sua cidade ou o seu bairro? E o que você faz por ele?
Podemos trabalhar a ideia de que o julgamento egípcio era individual, mas a salvação sustentável era coletiva. Não podemos perder esse direcionamento, e a educação pode, e deve, transformar catástrofes em gatilhos permanentes de consciência, não apenas em manchetes de ocasião. Educação nesse sentido começa na intimidade dos valores das famílias, da forma como são, com a percepção da importância da sustentabilidade que o núcleo tem.
A escola, nos seus vários níveis e áreas, também têm papel importante, o que proporciona força para a consciência coletiva, independentemente dos direcionamentos governamentais e seus humores nem sempre consistentes, principalmente pelo cruzamento do individual com o coletivo político.
O “efeito novidade” nas mídias tem muita força quando comparado com os temas de priorização estratégica. Os impactos de estiagem do Nilo eram concretos e de curto prazo, o que favorecia a priorização e foco, algo que não é percebido como concreto hoje e deixa de sensibilizar as pessoas. Afinal temos muito tempo para corrigir coisas. Na verdade, não temos, e as correções dificilmente reporão a qualidade da natureza do passado. Temos tantas coisas para priorizar que o “efeito novidade” acaba ganhando mais força do que é realmente relevante e que deveria ser ressaltado pelas nossas lideranças. Afinal, você não se pergunta:“Por que nos mobilizamos mais por uma celebridade da internet que foi presa do que por um bioma queimando por vários dias?”. Provavelmente o “Nilo” não foi percebido. O individual pode afetar o coletivo se for sensibilizado.
Como levar a lógica do “Nilo” até para quem nunca viu água limpa sair da torneira? A heterogeneidade de percepção, tanto do risco como do benefício é enorme, independentemente de camada social e região geográfica, implicando em estruturação de diferentes diálogos. Em outras palavras como dialogar com quem já entendeu e posiciona com compromissos, e como alcançar quem ainda não percebe o risco?
Os rituais egípcios, como a construção de pirâmides e locais para os mortos, eram longos e previamente deliberados. A mudança de hábitos também requer ritos de passagem, paciência, repetição. A tese é que a lógica de pensar na sustentabilidade como ingrediente permanente na cultura das pessoas não se impõe, se cultiva. O esforço no sentido de defender a visão de sustentabilidade existe desde longa data mas precisa ser substancialmente ampliado. Se o planeta estivesse fazendo o papel de Maat, quais perguntas ele faria para decidir se ainda nos quer como hóspede?
***
A sociedade precisa de algo para ter a percepção que o Nilo produz para o Egito, significando nada mais, nada menos do que a chance de ter vida para hoje, amanhã e depois de amanhã. É isso que deveríamos pensar quando surge o tema sustentabilidade. Nada mais, nada menos.
Prestem atenção ao que mencionei no início deste texto: para pesar o coração eram formulados 42 questionamentos sobre o comportamento das pessoas ao longo das suas vidas. Com isso posso imaginar que Ramsés II, se estivesse por aqui hoje, iria considerar que acesso ao paraíso de antigamente era mais desafiador do que o de hoje. Quem sabe possamos nos encontrar no paraíso?
Por que bacharéis?
Um dos meus mestres, o professor Luiz de Castro Faria, chamava a atenção para o “bacharelismo” brasileiro no intuito de definir nosso legalismo — o ideal de ordenar juridicamente a realidade social.
Bacharel é alguém diplomado numa faculdade de Direito, mas é também o “bem-falante” ou o “tagarela” capaz de invocar uma regra para tudo. O termo nasce pelos anos 1400 para designar o aspirante a um diploma universitário. Quando o Brasil era um “país de analfabetos”, seria impensável ocupar certos cargos sem o título de bacharel. Isso explica o fato de o Brasil ser o país com mais faculdades de Direito do planeta. Era esse formalismo que nosso professor apontava.
Todo mundo que “se lava” ou aspira ao bacharelato social busca ser “branco”, ter “boa aparência”, ser “limpo”, simpático e, por fim, mas jamais por último, ser “bem relacionado” — pertencer à turma ou ao partido certo. Ser, como adverte Manuel Bandeira, amigo do Rei, tendo as prerrogativas, os privilégios e as vantagens dos “grandes” e mandões. Dos donos do poder, como dizia Raymundo Faoro.
Eis uma aristocratização que estou rouco de repetir nesta coluna. Nobreza mal mascarada porque são justamente os “bacharéis”, esse povo que escreve em jornais, tem curso superior, que mais falam em democracia e, dependendo da pessoa ou contexto, desdenham a universalidade da meritocracia e, inapelavelmente, usam particularismos para “vencer na vida”. Um vencer que se traduz em “enriquecer” ou “subir”, tendo certeza das anistias e anulações, como estamos fartos de engolir.
São essas singularidades bacharelescas que justificam o “você sabe com quem está falando?” por mim analisado, que surpreende pela ausência de discussão porque é justamente o particularismo que estrutura o campo cultural brasileiro. Campo dinamizado por uma competição entre solidariedades devidas aos companheiros e as regras do Estado Democrático de Direito que formalizam a democracia liberal.
Liberal porque nós, humanos, substituímos instintos por uma consciência que é, fundamentalmente, libertária e nos faculta e nos condena a escolhas que nos individualizam e, ao mesmo tempo, conduzem à solidariedade.
Em nossa vida pública, chama a atenção a recorrência de crimes cometidos por administradores públicos e o fato de os criminosos serem ancorados por laços de amizade, ideologia ou prerrogativas jurídicas. Espanta verificar que os meliantes sejam nomeados por governantes eleitos por partidos políticos furiosamente voltados para o bem público. A marca do que chamamos de “corrupção” é justamente o absurdo da legitimidade burocrática, ao lado do apoio hoje desmontado pelos instrumentos digitais, de companheirismo ideológico. Esse traço, acentuo, vale tanto para a direita cavernária e burra quanto para esquerda iluminada.
Trata-se do permanente confronto de costumes contra leis; de relacionamentos contra as isenções e isolamentos exigidos pelos cargos públicos num sistema democrático. Isenções ou insulamentos sistematicamente suspensos pelas “considerações” jurídicas do companheirismo ideológico. Nesse sistema, não existe conflito de interesse porque ele é no fundo guiado somente por interesses. Aí está a raiz do patrimonialismo de Antônio Paim e Raymundo Faoro.
Na descoberta do conflito, quem arbitra para condenar ou anistiar é o bacharel que, como profeta, aplica os mandamentos, protegendo o lado que mais lhe fala tanto à cabeça quanto ao bom senso do velho coração.
Entre a casa (o Executivo) e a rua (o Legislativo), surge intemerato o Judiciário com seu bacharelismo que não conhece contradição ou, reitero, conflito de interesse. Donde as anistias e as decisões contraditórias. Esse oscilar entre leis e costumes, entre o impessoal e o pessoal, é a marca maior de um sistema avesso à igualdade.
Bacharel é alguém diplomado numa faculdade de Direito, mas é também o “bem-falante” ou o “tagarela” capaz de invocar uma regra para tudo. O termo nasce pelos anos 1400 para designar o aspirante a um diploma universitário. Quando o Brasil era um “país de analfabetos”, seria impensável ocupar certos cargos sem o título de bacharel. Isso explica o fato de o Brasil ser o país com mais faculdades de Direito do planeta. Era esse formalismo que nosso professor apontava.
Todo mundo que “se lava” ou aspira ao bacharelato social busca ser “branco”, ter “boa aparência”, ser “limpo”, simpático e, por fim, mas jamais por último, ser “bem relacionado” — pertencer à turma ou ao partido certo. Ser, como adverte Manuel Bandeira, amigo do Rei, tendo as prerrogativas, os privilégios e as vantagens dos “grandes” e mandões. Dos donos do poder, como dizia Raymundo Faoro.
Eis uma aristocratização que estou rouco de repetir nesta coluna. Nobreza mal mascarada porque são justamente os “bacharéis”, esse povo que escreve em jornais, tem curso superior, que mais falam em democracia e, dependendo da pessoa ou contexto, desdenham a universalidade da meritocracia e, inapelavelmente, usam particularismos para “vencer na vida”. Um vencer que se traduz em “enriquecer” ou “subir”, tendo certeza das anistias e anulações, como estamos fartos de engolir.
São essas singularidades bacharelescas que justificam o “você sabe com quem está falando?” por mim analisado, que surpreende pela ausência de discussão porque é justamente o particularismo que estrutura o campo cultural brasileiro. Campo dinamizado por uma competição entre solidariedades devidas aos companheiros e as regras do Estado Democrático de Direito que formalizam a democracia liberal.
Liberal porque nós, humanos, substituímos instintos por uma consciência que é, fundamentalmente, libertária e nos faculta e nos condena a escolhas que nos individualizam e, ao mesmo tempo, conduzem à solidariedade.
Em nossa vida pública, chama a atenção a recorrência de crimes cometidos por administradores públicos e o fato de os criminosos serem ancorados por laços de amizade, ideologia ou prerrogativas jurídicas. Espanta verificar que os meliantes sejam nomeados por governantes eleitos por partidos políticos furiosamente voltados para o bem público. A marca do que chamamos de “corrupção” é justamente o absurdo da legitimidade burocrática, ao lado do apoio hoje desmontado pelos instrumentos digitais, de companheirismo ideológico. Esse traço, acentuo, vale tanto para a direita cavernária e burra quanto para esquerda iluminada.
Trata-se do permanente confronto de costumes contra leis; de relacionamentos contra as isenções e isolamentos exigidos pelos cargos públicos num sistema democrático. Isenções ou insulamentos sistematicamente suspensos pelas “considerações” jurídicas do companheirismo ideológico. Nesse sistema, não existe conflito de interesse porque ele é no fundo guiado somente por interesses. Aí está a raiz do patrimonialismo de Antônio Paim e Raymundo Faoro.
Na descoberta do conflito, quem arbitra para condenar ou anistiar é o bacharel que, como profeta, aplica os mandamentos, protegendo o lado que mais lhe fala tanto à cabeça quanto ao bom senso do velho coração.
Entre a casa (o Executivo) e a rua (o Legislativo), surge intemerato o Judiciário com seu bacharelismo que não conhece contradição ou, reitero, conflito de interesse. Donde as anistias e as decisões contraditórias. Esse oscilar entre leis e costumes, entre o impessoal e o pessoal, é a marca maior de um sistema avesso à igualdade.
Acreditar ser porta-voz de uma maioria silenciosa é porta aberta ao populismo
Há uma ilusão curiosa — e muito difundida — segundo a qual a maioria, ainda que silenciosamente, quer as mesmas políticas, valoriza os mesmos princípios, enxerga o país do mesmo jeito que a gente. Essa convicção subjetiva de que nossas ideias são majoritárias, mesmo quando não são, é bem conhecida na psicologia social e atende pelo nome de viés de falso consenso.
É um viés cognitivo, ou seja, uma tendência psicológica automática que faz com que projetemos nossas características e preferências sobre o coletivo. Progressistas tendem a superestimar a adesão da sociedade —ou da melhor parte dela— aos seus valores; conservadores estão convictos de que o Brasil profundo é conservador como eles.
A esquerda tem certeza de que a massa compartilha sua visão de mundo, seu conceito de justiça e sua ideia do papel do Estado; a direita tem certeza de que qualquer pessoa lúcida e bem informada não tem dúvida alguma sobre a superioridade da sua agenda e de suas políticas. Sim, a mente costuma nos pregar esta peça: a de que os outros é que são minoria —as pessoas sensatas pensam como nós.
Até aí, nada grave, certo? Certas ilusões respondem às nossas necessidades de obter validação social, e nada há de mais reconfortante e tranquilizador do que a convicção de que estamos com a maioria —mesmo que seja uma convicção falsa.
O problema é que, cedo ou tarde, indivíduos que sustentam opiniões que se creem majoritárias, mas não são, acabam se deparando com decisões políticas ou resultados eleitorais que não correspondem às suas próprias visões. Por não serem capazes de se entender como parte minoritária da sociedade, o resultado não é apenas frustração: é ressentimento. Como aceitar que uma maioria pense como eu e, ainda assim, as coisas continuem sendo decididas de outra maneira?
Um artigo deste ano dos pesquisadores alemães Steiner, Landwehr e Harms, na Political Psychology, mostra uma clara correlação entre a crença ilusória, por parte de minorias, de serem parte de uma maioria silenciosa, e o populismo de direita que por lá anda prosperando. Afinal, se os nossos interesses não encontram canais de expressão na política institucional, é porque a elite, corrupta e anti-povo, não ouve a maioria, bloqueia sua voz e passa por cima da vontade popular.
A essa altura, a crítica ao sistema político vira ressentimento contra "as elites" e, mais um passo adiante, a política se transforma em uma guerra moral entre "o povo" e "os corruptos". Nesse caso, sobra até para "a democracia que está aí", supostamente distorcida pela elite traidora e corrupta —e, portanto, passível de substituição.
Essa crença ilusória de que somos maioria está ligada não apenas à hostilidade contra as instituições, mas também à intolerância contra a simples discordância. Se a maioria pensa como eu, então é justo que minha opinião prevaleça e que a suposta minoria ponha-se em seu lugar. E se alguém ousa discordar, o problema não está na diferença entre visões, mas em uma falha no caráter de quem diverge.
Divergir da política pública predileta de cada grupo, portanto, não é expressão de uma diferença legítima, mas uma declaração de guerra moral. As cotas dos identitários, a defesa da família "como está na Bíblia" dos conservadores, a centralidade do enfrentamento da desigualdade da esquerda, a crença na superioridade da gestão privada da direita —tudo isso está fora de discussão.
É intocável, mesmo em nível argumentativo. E qualquer política pública em contrário será considerada uma abominação. Na raiz de tudo, está a certeza de que a maioria compartilha nossas convicções, de que a sociedade não está dividida ao meio e de que os minoritários são sempre os outros.
No fundo, essa convicção nos poupa do esforço de abrir espaço para buscar dados, escutar, revisar nossas certezas. Essa ilusão de consenso nos permite permanecer no conforto das nossas bolhas, certos de que representamos o bem, o povo e a verdade.
O outro lado vira ameaça; o pluralismo, um ruído incômodo; "essa democracia que está aí", um estorvo que atrapalha o cumprimento do destino moral do nosso grupo.
Talvez o maior desafio para a democracia hoje não seja apenas o ódio ou a desinformação, mas essa fé cega de que já vencemos o debate antes mesmo de ele começar. Acreditar que somos os porta-vozes da maioria silenciosa é uma tentação poderosa, mas perigosa, porque é uma porta aberta ao populismo, à intolerância e à incapacidade de lidar com a complexidade do mundo —ainda mais em sociedades polarizadas e radicalizadas.
É um viés cognitivo, ou seja, uma tendência psicológica automática que faz com que projetemos nossas características e preferências sobre o coletivo. Progressistas tendem a superestimar a adesão da sociedade —ou da melhor parte dela— aos seus valores; conservadores estão convictos de que o Brasil profundo é conservador como eles.
A esquerda tem certeza de que a massa compartilha sua visão de mundo, seu conceito de justiça e sua ideia do papel do Estado; a direita tem certeza de que qualquer pessoa lúcida e bem informada não tem dúvida alguma sobre a superioridade da sua agenda e de suas políticas. Sim, a mente costuma nos pregar esta peça: a de que os outros é que são minoria —as pessoas sensatas pensam como nós.
Até aí, nada grave, certo? Certas ilusões respondem às nossas necessidades de obter validação social, e nada há de mais reconfortante e tranquilizador do que a convicção de que estamos com a maioria —mesmo que seja uma convicção falsa.
O problema é que, cedo ou tarde, indivíduos que sustentam opiniões que se creem majoritárias, mas não são, acabam se deparando com decisões políticas ou resultados eleitorais que não correspondem às suas próprias visões. Por não serem capazes de se entender como parte minoritária da sociedade, o resultado não é apenas frustração: é ressentimento. Como aceitar que uma maioria pense como eu e, ainda assim, as coisas continuem sendo decididas de outra maneira?
Um artigo deste ano dos pesquisadores alemães Steiner, Landwehr e Harms, na Political Psychology, mostra uma clara correlação entre a crença ilusória, por parte de minorias, de serem parte de uma maioria silenciosa, e o populismo de direita que por lá anda prosperando. Afinal, se os nossos interesses não encontram canais de expressão na política institucional, é porque a elite, corrupta e anti-povo, não ouve a maioria, bloqueia sua voz e passa por cima da vontade popular.
A essa altura, a crítica ao sistema político vira ressentimento contra "as elites" e, mais um passo adiante, a política se transforma em uma guerra moral entre "o povo" e "os corruptos". Nesse caso, sobra até para "a democracia que está aí", supostamente distorcida pela elite traidora e corrupta —e, portanto, passível de substituição.
Essa crença ilusória de que somos maioria está ligada não apenas à hostilidade contra as instituições, mas também à intolerância contra a simples discordância. Se a maioria pensa como eu, então é justo que minha opinião prevaleça e que a suposta minoria ponha-se em seu lugar. E se alguém ousa discordar, o problema não está na diferença entre visões, mas em uma falha no caráter de quem diverge.
Divergir da política pública predileta de cada grupo, portanto, não é expressão de uma diferença legítima, mas uma declaração de guerra moral. As cotas dos identitários, a defesa da família "como está na Bíblia" dos conservadores, a centralidade do enfrentamento da desigualdade da esquerda, a crença na superioridade da gestão privada da direita —tudo isso está fora de discussão.
É intocável, mesmo em nível argumentativo. E qualquer política pública em contrário será considerada uma abominação. Na raiz de tudo, está a certeza de que a maioria compartilha nossas convicções, de que a sociedade não está dividida ao meio e de que os minoritários são sempre os outros.
No fundo, essa convicção nos poupa do esforço de abrir espaço para buscar dados, escutar, revisar nossas certezas. Essa ilusão de consenso nos permite permanecer no conforto das nossas bolhas, certos de que representamos o bem, o povo e a verdade.
O outro lado vira ameaça; o pluralismo, um ruído incômodo; "essa democracia que está aí", um estorvo que atrapalha o cumprimento do destino moral do nosso grupo.
Talvez o maior desafio para a democracia hoje não seja apenas o ódio ou a desinformação, mas essa fé cega de que já vencemos o debate antes mesmo de ele começar. Acreditar que somos os porta-vozes da maioria silenciosa é uma tentação poderosa, mas perigosa, porque é uma porta aberta ao populismo, à intolerância e à incapacidade de lidar com a complexidade do mundo —ainda mais em sociedades polarizadas e radicalizadas.
terça-feira, 6 de maio de 2025
Debates são monólogos paralelos para converter convertidos
Foi milagre. Semana passada, assistindo a um debate político na TV, um dos participantes mudou de ideias ao vivo. "Você tem razão", disse ele, depois de uma pausa de alguns segundos. "Pensando melhor, seus argumentos me convenceram."
O outro, surpreso, respondeu: "Sério? É a primeira vez que isso acontece na minha vida". No estúdio, todos riram.
Eu também ri, imaginando a cena, que nunca aconteceu. O responsável por minhas divagações mentirosas é o escritor Julian Barnes, que escreveu um breve ensaio a respeito: "Changing my Mind" (mudando de ideias).
Escreve Barnes, citando o artista Francis Picabia, que nossas cabeças são redondas para que nossos pensamentos possam mudar de direção. Mas quantas vezes isso acontece?
Em público, raramente. Nunca. Impossível. A cena televisiva que eu descrevi é pura ficção. Ninguém escuta argumentos, ninguém avalia o argumento do outro por seus próprios méritos.
Tudo o que temos são monólogos paralelos para converter os convertidos. Nossos debates são exercícios de dogmática muito semelhantes às brigas de galos. Vence quem dá mais bicadas no adversário.
Mas é possível mudar de ideias?
Julian Barnes confessa que mudou, até porque a mudança é involuntária. Nossas memórias, que julgamos fiéis, são sempre transformadas quando as convocamos para o presente. O que julgamos ter acontecido é, muitas vezes, uma construção posterior para tapar algum buraco ou alguma dissonância.
Concordo. Há episódios da minha infância ou da minha juventude que mudam de versão consoante as testemunhas. Lugares onde estive, mas não estive. Conversas que escutei, mas não escutei. Traumas que carrego, mas não carrego.
Nossa memória é um filme que vamos constantemente editando, ao sabor das conveniências presentes e dos temores futuros. A verdade, dolorosa verdade, é que nem o passado nos pertence por inteiro.
O que é válido para nós é válido sobre os outros. Meus juízos ou julgamentos sobre terceiros foram ficando mais modestos. Que sei eu da vida deles? Que sei eu da minha?
Mas não é preciso ser tão filosófico. Julian Barnes se ocupa das coisas singelas —palavras, política, livros, envelhecimento, morte— para fazer o catálogo das suas mudanças de opinião.
Gostei de saber que, entre os autores, o escritor inglês abandonou Bernard Shaw ou D.H. Lawrence —escritores que gostam de pregar os seus sermões— para revalorizar E.M. Forster ou Georges Simenon.
No meu caso, conservo ainda Bernard Shaw (pelo estilo), mas prefiro o contemporâneo Oscar Wilde (pelo estilo e pelo resto). Aliás, sempre preferi —e minhas mudanças foram bem menos radicais. Os autores que amei na juventude —Mark Twain, Wilde, Wodehouse, Evelyn Waugh— sempre estiveram na melhor estante.
E houve mudanças no pódio: entre os lusos, Eça de Queirós é agora medalha de prata (o ouro vai para Camilo Castelo Branco, bicentenário neste ano).
E em política?
Julian Barnes confessa que já votou nos trabalhistas, nos liberais, nos conservadores. E questiona se foi ele quem mudou ou se foram os partidos que mudaram.
Eu, confesso, nunca fui tão elástico. Meu ceticismo começou lá atrás e, até o momento, ainda não me abandou. Só abrandou, ou seja, estou mais liberal do que conservador. A escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís (medalha de bronze) dizia que nascera adulta e que iria morrer criança. Quem sabe? Talvez aconteça.
As melhores páginas do ensaio, porém, lidam com o tempo, a idade e a finitude. Julian Barnes relembra: na infância, o tempo não existia ou existia em excesso, sob a forma de um tédio aterrador.
É um mal de que nunca padeci: na infância, o tempo tinha a duração ideal —os dias eram longos e proveitosos, as férias ainda mais.
Na idade adulta, a única alteração foi para pior: o tempo passa rápido ou, então, rapidíssimo. E fica tudo por fazer.
Sobre a velhice e a morte, Julian Barnes, beirando os 80, não tem ilusões: a velhice não é um eufemismo ("os 80 são os novos 60" etc. etc.) e a morte será um ponto final sem prorrogação eterna.
Com menos 30 anos, não consigo ser tão definitivo. Mas envelhecer, ao contrário do que pensava e temia, tem sido uma bênção para mim, mesmo que o corpo diga o contrário.
Há coisas que mudam. Há coisas que não mudam. A primazia do amor, a primazia da arte, a primazia da literatura — essa trilogia manteve-se inalterada em Julian Barnes. Exatamente por essa ordem?
Não sabemos. Mas é uma lista respeitável, que eu endossaria facilmente — não fosse por uma ausência imperdoável: a primazia do humor.
A sabedoria popular está errada. Quem ri por último não ri melhor.
O outro, surpreso, respondeu: "Sério? É a primeira vez que isso acontece na minha vida". No estúdio, todos riram.
Eu também ri, imaginando a cena, que nunca aconteceu. O responsável por minhas divagações mentirosas é o escritor Julian Barnes, que escreveu um breve ensaio a respeito: "Changing my Mind" (mudando de ideias).
Escreve Barnes, citando o artista Francis Picabia, que nossas cabeças são redondas para que nossos pensamentos possam mudar de direção. Mas quantas vezes isso acontece?
Em público, raramente. Nunca. Impossível. A cena televisiva que eu descrevi é pura ficção. Ninguém escuta argumentos, ninguém avalia o argumento do outro por seus próprios méritos.
Tudo o que temos são monólogos paralelos para converter os convertidos. Nossos debates são exercícios de dogmática muito semelhantes às brigas de galos. Vence quem dá mais bicadas no adversário.
Mas é possível mudar de ideias?
Julian Barnes confessa que mudou, até porque a mudança é involuntária. Nossas memórias, que julgamos fiéis, são sempre transformadas quando as convocamos para o presente. O que julgamos ter acontecido é, muitas vezes, uma construção posterior para tapar algum buraco ou alguma dissonância.
Concordo. Há episódios da minha infância ou da minha juventude que mudam de versão consoante as testemunhas. Lugares onde estive, mas não estive. Conversas que escutei, mas não escutei. Traumas que carrego, mas não carrego.
Nossa memória é um filme que vamos constantemente editando, ao sabor das conveniências presentes e dos temores futuros. A verdade, dolorosa verdade, é que nem o passado nos pertence por inteiro.
O que é válido para nós é válido sobre os outros. Meus juízos ou julgamentos sobre terceiros foram ficando mais modestos. Que sei eu da vida deles? Que sei eu da minha?
Mas não é preciso ser tão filosófico. Julian Barnes se ocupa das coisas singelas —palavras, política, livros, envelhecimento, morte— para fazer o catálogo das suas mudanças de opinião.
Gostei de saber que, entre os autores, o escritor inglês abandonou Bernard Shaw ou D.H. Lawrence —escritores que gostam de pregar os seus sermões— para revalorizar E.M. Forster ou Georges Simenon.
No meu caso, conservo ainda Bernard Shaw (pelo estilo), mas prefiro o contemporâneo Oscar Wilde (pelo estilo e pelo resto). Aliás, sempre preferi —e minhas mudanças foram bem menos radicais. Os autores que amei na juventude —Mark Twain, Wilde, Wodehouse, Evelyn Waugh— sempre estiveram na melhor estante.
E houve mudanças no pódio: entre os lusos, Eça de Queirós é agora medalha de prata (o ouro vai para Camilo Castelo Branco, bicentenário neste ano).
E em política?
Julian Barnes confessa que já votou nos trabalhistas, nos liberais, nos conservadores. E questiona se foi ele quem mudou ou se foram os partidos que mudaram.
Eu, confesso, nunca fui tão elástico. Meu ceticismo começou lá atrás e, até o momento, ainda não me abandou. Só abrandou, ou seja, estou mais liberal do que conservador. A escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís (medalha de bronze) dizia que nascera adulta e que iria morrer criança. Quem sabe? Talvez aconteça.
As melhores páginas do ensaio, porém, lidam com o tempo, a idade e a finitude. Julian Barnes relembra: na infância, o tempo não existia ou existia em excesso, sob a forma de um tédio aterrador.
É um mal de que nunca padeci: na infância, o tempo tinha a duração ideal —os dias eram longos e proveitosos, as férias ainda mais.
Na idade adulta, a única alteração foi para pior: o tempo passa rápido ou, então, rapidíssimo. E fica tudo por fazer.
Sobre a velhice e a morte, Julian Barnes, beirando os 80, não tem ilusões: a velhice não é um eufemismo ("os 80 são os novos 60" etc. etc.) e a morte será um ponto final sem prorrogação eterna.
Com menos 30 anos, não consigo ser tão definitivo. Mas envelhecer, ao contrário do que pensava e temia, tem sido uma bênção para mim, mesmo que o corpo diga o contrário.
Há coisas que mudam. Há coisas que não mudam. A primazia do amor, a primazia da arte, a primazia da literatura — essa trilogia manteve-se inalterada em Julian Barnes. Exatamente por essa ordem?
Não sabemos. Mas é uma lista respeitável, que eu endossaria facilmente — não fosse por uma ausência imperdoável: a primazia do humor.
A sabedoria popular está errada. Quem ri por último não ri melhor.
O banquete de Veronese
A capacidade para nos adaptarmos é um sexto sentido. Muitos animais não têm: morrem. De outros não chegamos a saber: não se adaptaram, ficaram por ali, sem deixar descendência de espécie alguma.
As nossas circunstâncias estão sempre a mudar e, como não podemos mudar as circunstâncias, mudamos a nossa maneira de encará-las.
Veja-se a pintura de Veronese que é conhecida por “Convito in casa de Levi.” Como é que se conta a história desta pintura? Depende da maneira como a queremos contar. Vou contar apenas a história que mais me convém.
Veronese pintou a última ceia, mas a Igreja não gostou. E lá se convocou a Inquisição para julgar o pintor. A pergunta principal era: “Por que a última ceia está cheia de bêbados, anões e alemães”?
Veronese respondeu que havia muito espaço para encher e que tinha tido o cuidado de colocar os bêbados, anões e alemães muito longe de Jesus. Enfim, disse o que qualquer um de nós diria.
Mas não colheu. A Inquisição reagiu como qualquer Inquisição reagiria. Mandou alterar imediatamente a pintura, ordenando que extinguese aquelas figuras carnavalescas.
Veronese não queria alterar uma composição tão magnífica. Decidiu mudar de estratégia: os bêbados, anões e alemães estavam lá porque que, como artista, tinha direito a exprimir-se com a mesma liberdade que se concedia aos loucos e aos poetas. A Inquisição deve ter sorrido, não era insensível à lata.
Veronese e a Inquisição acabaram por se entender. Adaptaram-se.
A pintura ficou na mesma. Só o título mudou. Deixou de ser “A Última Ceia” e passou a ser “O banquete em casa de Levi”. Ou “A farra em casa de Levi”.
O nome mudou-se num segundo e não estragou nada. Foi uma adaptação magnífica.
Não é frequente evocar-se a flexibilidade dos grandes artistas – e muito menos da Inquisição. E assim se acrescentou uma história àquela que é a história da defesa da liberdade artística perante a tirania do gosto dominante.
A pintura ficou. E ficou a rir-se.
Miguel Esteves Cardoso
As nossas circunstâncias estão sempre a mudar e, como não podemos mudar as circunstâncias, mudamos a nossa maneira de encará-las.
Veja-se a pintura de Veronese que é conhecida por “Convito in casa de Levi.” Como é que se conta a história desta pintura? Depende da maneira como a queremos contar. Vou contar apenas a história que mais me convém.
Veronese pintou a última ceia, mas a Igreja não gostou. E lá se convocou a Inquisição para julgar o pintor. A pergunta principal era: “Por que a última ceia está cheia de bêbados, anões e alemães”?
Veronese respondeu que havia muito espaço para encher e que tinha tido o cuidado de colocar os bêbados, anões e alemães muito longe de Jesus. Enfim, disse o que qualquer um de nós diria.
Mas não colheu. A Inquisição reagiu como qualquer Inquisição reagiria. Mandou alterar imediatamente a pintura, ordenando que extinguese aquelas figuras carnavalescas.
Veronese não queria alterar uma composição tão magnífica. Decidiu mudar de estratégia: os bêbados, anões e alemães estavam lá porque que, como artista, tinha direito a exprimir-se com a mesma liberdade que se concedia aos loucos e aos poetas. A Inquisição deve ter sorrido, não era insensível à lata.
Veronese e a Inquisição acabaram por se entender. Adaptaram-se.
A pintura ficou na mesma. Só o título mudou. Deixou de ser “A Última Ceia” e passou a ser “O banquete em casa de Levi”. Ou “A farra em casa de Levi”.
O nome mudou-se num segundo e não estragou nada. Foi uma adaptação magnífica.
Não é frequente evocar-se a flexibilidade dos grandes artistas – e muito menos da Inquisição. E assim se acrescentou uma história àquela que é a história da defesa da liberdade artística perante a tirania do gosto dominante.
A pintura ficou. E ficou a rir-se.
Miguel Esteves Cardoso
Bloqueio israelense de Gaza: 'A situação é indescritível'
Após quase 19 meses de guerra, o povo de Gaza está ficando sem opções para lidar com a situação e teme o que o futuro reserva.
O bloqueio israelense de todos os suprimentos humanitários e comerciais já dura dois meses, e o bombardeio israelense em Gaza continua.
"A realidade em Gaza é indescritível", disse Ahmad Qattawi à DW por telefone da Cidade de Gaza. "Estamos vivendo uma tragédia, tentando sobreviver, sem saber se vamos conseguir ou não. Podemos sobreviver, mas nossas almas morreram há muito tempo."
O bloqueio israelense de todos os suprimentos humanitários e comerciais já dura dois meses, e o bombardeio israelense em Gaza continua.
"A realidade em Gaza é indescritível", disse Ahmad Qattawi à DW por telefone da Cidade de Gaza. "Estamos vivendo uma tragédia, tentando sobreviver, sem saber se vamos conseguir ou não. Podemos sobreviver, mas nossas almas morreram há muito tempo."
O medo de bombardeios é um problema, ele enfatiza, e encontrar o suficiente para comer também é outro problema. "Somos consumidos pela busca diária por comida, estocando tudo o que podemos para os dias seguintes", acrescenta. "Comemos frugalmente e tanto quanto podemos."
Organizações de ajuda humanitária têm alertado constantemente sobre o alto risco de desnutrição e fome, já que padarias estão fechadas, o preço dos alimentos básicos está alto e as fronteiras permanecem fechadas.
Os mercados ainda vendem pequenas quantidades de vegetais, mas eles são inacessíveis para a maioria das pessoas. Os preços dispararam e muitos moradores de Gaza ficaram sem renda. Um quilo de tomate, alimento básico nas cozinhas palestinas, agora custa cerca de 30 shekels , ou 7 euros. Isso se compara aos 1 a 3 shekels por quilo que custava antes da guerra. E um quilo de açúcar agora é vendido por mais de 60 shekels .
"Nossas vidas agora dependem inteiramente de alimentos enlatados, com a rara exceção de alguns vegetais", diz Qatawi, 44 anos, acrescentando que cozinhar é um desafio devido à escassez de gás. "Não há lenha para acender o fogo, então queimamos tudo o que encontramos: roupas, sapatos, qualquer coisa. Esse é o nosso dia a dia."
"Nunca na história de Gaza nos encontramos em uma situação como esta", disse Amjad Shawa, diretor da Rede de Organizações Não Governamentais Palestinas (NGNO), por telefone, da Cidade de Gaza. "É uma catástrofe", acrescenta.
"Temos ataques aéreos, ataques de artilharia, ataques a tendas e abrigos", disse Shawa. "Não há lugar seguro. E, além disso, todo mundo está morrendo de fome. Mesmo falando pessoalmente, não sabemos o que comer. Não há quase nada."
Shawa comenta que as pessoas se sentem cada vez mais encurraladas, sem fim à vista. "E a pior coisa para nós, como humanitários, é nos sentirmos de pés e mãos amarrados, sem nada para dar", lamenta Shawa. "Fazemos o possível para dar alguma esperança aqui e ali, mas, por outro lado, somos parte da comunidade e não podemos nos isolar da situação."
O Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) disse que "o sistema de saúde está à beira do colapso, sobrecarregado pelo grande número de vítimas e severamente afetado pelo bloqueio total, que cortou o fornecimento de medicamentos essenciais, vacinas e equipamentos médicos".
Por sua vez, o Programa Alimentar Mundial (PAM) anunciou recentemente que esgotou suas reservas de alimentos para Gaza e distribuiu os últimos suprimentos para cozinhas comunitárias, que servem refeições básicas aos mais vulneráveis, bem como a farinha restante para padarias.
"Em 31 de março, as 25 padarias apoiadas pelo PMA fecharam depois que a farinha de trigo e o combustível para cozinhar acabaram", anunciou a agência da ONU em um comunicado. Na mesma semana, as cestas básicas do PMA distribuídas às famílias, contendo rações para duas semanas, acabaram. O PMA também está profundamente preocupado com a grave escassez de água potável e combustível para cozinhar, que obriga as pessoas a procurar comida para cozinhar.
À medida que os suprimentos diminuem, as preocupações sobre como apoiar os entes queridos ofuscam tudo, disse Mahmoud Hassouna, morador da cidade de Khan Yunis, no sul de Gaza, à DW por telefone. O jovem de 24 anos foi deslocado no início da guerra em 2023, quando a casa de sua família foi destruída por bombardeios israelenses.
O jovem conta que passa o dia na casa improvisada da família, ajudando a mãe a preparar comida. "Voltamos a viver de comida enlatada", diz ele. "Não temos dinheiro suficiente para comprar vegetais, que são vendidos a preços exorbitantes no mercado."
Hassouna explica que seu trabalho é encontrar lenha, algo que tem sido difícil de obter ultimamente, já que a maioria das árvores foi cortada ou destruída por bombardeios. Muitas pessoas se arriscam a entrar em casas bombardeadas para resgatar portas ou objetos de madeira.
Você também precisa encontrar água potável e tentar carregar seus celulares nas proximidades. O medo de bombardeios e deslocamentos tornou-se constante: "Passei quase dois anos da minha vida sob bombas, assassinatos e mortes. Nem me reconheço mais."
Um cessar-fogo que começou em janeiro e durou até o início de março trouxe algum alívio à população de Gaza e deu tempo às organizações humanitárias para encher seus armazéns. Entretanto, a situação se deteriorou novamente quando Israel encerrou o cessar-fogo e retomou sua ofensiva em 18 de março, após a conclusão da primeira fase do acordo de cessar-fogo, a libertação de reféns e o fracasso das negociações sobre uma segunda fase.
Antes do fim do cessar-fogo, o governo israelense já havia ordenado o fechamento de todas as passagens de fronteira e interrompido todos os carregamentos humanitários e comerciais para Gaza.
O bloqueio faz parte do que autoridades israelenses descrevem como uma estratégia de "pressão máxima" para forçar o Hamas a libertar os reféns restantes sob um novo acordo de cessar-fogo temporário e, finalmente, derrubar o grupo militante palestino. Autoridades israelenses acusaram o Hamas de roubar ajuda e usá-la para suas próprias forças.
A mídia israelense informou na segunda-feira que o gabinete de segurança aprovou planos operacionais para expandir a atual ofensiva militar , incluindo o recrutamento de dezenas de milhares de reservistas . Não está claro quando tal expansão ocorreria.
O Hamas rejeitou todos os pedidos de desarmamento e insiste em um acordo que garanta o fim da guerra.
Israel iniciou a guerra após um ataque terrorista liderado pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, no qual homens armados mataram quase 1.200 pessoas, a maioria civis, e sequestraram cerca de 250 reféns. Autoridades israelenses dizem que 59 reféns permanecem em Gaza, dos quais acredita-se que menos da metade esteja viva.
Israel respondeu imediatamente ao ataque liderado pelo Hamas com uma grande operação militar e ofensiva terrestre em Gaza. O número de mortos na Faixa de Gaza já chegou a mais de 52.000, informou o Ministério da Saúde administrado pelo Hamas na semana passada. Acredita-se que milhares estejam soterrados sob os escombros.
Grupos de ajuda humanitária e as Nações Unidas acusam Israel de usar ajuda humanitária e alimentar como ferramenta política. Isso constitui um potencial crime de guerra que afeta todos os 2,2 milhões de pessoas em Gaza.
Esta semana, o Subsecretário-Geral da ONU para Assuntos Humanitários e Coordenador de Socorro de Emergência, Tom Fletcher, lembrou a Israel em uma declaração que "o direito internacional é inequívoco: como potência ocupante, Israel deve permitir a entrada de ajuda humanitária. A ajuda, e as vidas civis que ela salva, jamais devem ser usadas como moeda de troca".
Durante a guerra, a população de Gaza tornou-se quase inteiramente dependente de suprimentos externos. O deslocamento contínuo de pessoas e a criação de uma vasta zona de proteção controlada pelo exército israelense no norte, ao longo da fronteira leste e no sul negaram aos palestinos o acesso às terras agrícolas mais férteis de Gaza.
"Simplificando, Israel não está apenas impedindo que alimentos entrem em Gaza, mas também criou uma situação em que os palestinos não podem cultivar ou pescar seus próprios alimentos", diz Gavin Kelleher, um trabalhador humanitário do Conselho Norueguês para Refugiados, que recentemente retornou de um trabalho em Gaza.
Os moradores de Gaza também relatam saques de armazéns e uma atmosfera geral de caos e segurança interna precária durante o bombardeio israelense.
O OCHA informou na quinta-feira (1º de maio) que "ataques recentes teriam atingido prédios residenciais e tendas que abrigavam pessoas deslocadas, particularmente em Rafah e no leste da Cidade de Gaza. Até terça-feira, nossos parceiros humanitários estimavam que mais de 423.000 pessoas em Gaza foram deslocadas novamente, sem ter para onde ir."
Isto é um pesadelo para Mahmoud Hassouna. "Meu único desejo é nunca mais ser deslocado." E ele acrescenta: "Depois disso, quero que essa guerra louca acabe."
Organizações de ajuda humanitária têm alertado constantemente sobre o alto risco de desnutrição e fome, já que padarias estão fechadas, o preço dos alimentos básicos está alto e as fronteiras permanecem fechadas.
Os mercados ainda vendem pequenas quantidades de vegetais, mas eles são inacessíveis para a maioria das pessoas. Os preços dispararam e muitos moradores de Gaza ficaram sem renda. Um quilo de tomate, alimento básico nas cozinhas palestinas, agora custa cerca de 30 shekels , ou 7 euros. Isso se compara aos 1 a 3 shekels por quilo que custava antes da guerra. E um quilo de açúcar agora é vendido por mais de 60 shekels .
"Nossas vidas agora dependem inteiramente de alimentos enlatados, com a rara exceção de alguns vegetais", diz Qatawi, 44 anos, acrescentando que cozinhar é um desafio devido à escassez de gás. "Não há lenha para acender o fogo, então queimamos tudo o que encontramos: roupas, sapatos, qualquer coisa. Esse é o nosso dia a dia."
"Nunca na história de Gaza nos encontramos em uma situação como esta", disse Amjad Shawa, diretor da Rede de Organizações Não Governamentais Palestinas (NGNO), por telefone, da Cidade de Gaza. "É uma catástrofe", acrescenta.
"Temos ataques aéreos, ataques de artilharia, ataques a tendas e abrigos", disse Shawa. "Não há lugar seguro. E, além disso, todo mundo está morrendo de fome. Mesmo falando pessoalmente, não sabemos o que comer. Não há quase nada."
Shawa comenta que as pessoas se sentem cada vez mais encurraladas, sem fim à vista. "E a pior coisa para nós, como humanitários, é nos sentirmos de pés e mãos amarrados, sem nada para dar", lamenta Shawa. "Fazemos o possível para dar alguma esperança aqui e ali, mas, por outro lado, somos parte da comunidade e não podemos nos isolar da situação."
O Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) disse que "o sistema de saúde está à beira do colapso, sobrecarregado pelo grande número de vítimas e severamente afetado pelo bloqueio total, que cortou o fornecimento de medicamentos essenciais, vacinas e equipamentos médicos".
Por sua vez, o Programa Alimentar Mundial (PAM) anunciou recentemente que esgotou suas reservas de alimentos para Gaza e distribuiu os últimos suprimentos para cozinhas comunitárias, que servem refeições básicas aos mais vulneráveis, bem como a farinha restante para padarias.
"Em 31 de março, as 25 padarias apoiadas pelo PMA fecharam depois que a farinha de trigo e o combustível para cozinhar acabaram", anunciou a agência da ONU em um comunicado. Na mesma semana, as cestas básicas do PMA distribuídas às famílias, contendo rações para duas semanas, acabaram. O PMA também está profundamente preocupado com a grave escassez de água potável e combustível para cozinhar, que obriga as pessoas a procurar comida para cozinhar.
À medida que os suprimentos diminuem, as preocupações sobre como apoiar os entes queridos ofuscam tudo, disse Mahmoud Hassouna, morador da cidade de Khan Yunis, no sul de Gaza, à DW por telefone. O jovem de 24 anos foi deslocado no início da guerra em 2023, quando a casa de sua família foi destruída por bombardeios israelenses.
O jovem conta que passa o dia na casa improvisada da família, ajudando a mãe a preparar comida. "Voltamos a viver de comida enlatada", diz ele. "Não temos dinheiro suficiente para comprar vegetais, que são vendidos a preços exorbitantes no mercado."
Hassouna explica que seu trabalho é encontrar lenha, algo que tem sido difícil de obter ultimamente, já que a maioria das árvores foi cortada ou destruída por bombardeios. Muitas pessoas se arriscam a entrar em casas bombardeadas para resgatar portas ou objetos de madeira.
Você também precisa encontrar água potável e tentar carregar seus celulares nas proximidades. O medo de bombardeios e deslocamentos tornou-se constante: "Passei quase dois anos da minha vida sob bombas, assassinatos e mortes. Nem me reconheço mais."
Um cessar-fogo que começou em janeiro e durou até o início de março trouxe algum alívio à população de Gaza e deu tempo às organizações humanitárias para encher seus armazéns. Entretanto, a situação se deteriorou novamente quando Israel encerrou o cessar-fogo e retomou sua ofensiva em 18 de março, após a conclusão da primeira fase do acordo de cessar-fogo, a libertação de reféns e o fracasso das negociações sobre uma segunda fase.
Antes do fim do cessar-fogo, o governo israelense já havia ordenado o fechamento de todas as passagens de fronteira e interrompido todos os carregamentos humanitários e comerciais para Gaza.
O bloqueio faz parte do que autoridades israelenses descrevem como uma estratégia de "pressão máxima" para forçar o Hamas a libertar os reféns restantes sob um novo acordo de cessar-fogo temporário e, finalmente, derrubar o grupo militante palestino. Autoridades israelenses acusaram o Hamas de roubar ajuda e usá-la para suas próprias forças.
A mídia israelense informou na segunda-feira que o gabinete de segurança aprovou planos operacionais para expandir a atual ofensiva militar , incluindo o recrutamento de dezenas de milhares de reservistas . Não está claro quando tal expansão ocorreria.
O Hamas rejeitou todos os pedidos de desarmamento e insiste em um acordo que garanta o fim da guerra.
Israel iniciou a guerra após um ataque terrorista liderado pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, no qual homens armados mataram quase 1.200 pessoas, a maioria civis, e sequestraram cerca de 250 reféns. Autoridades israelenses dizem que 59 reféns permanecem em Gaza, dos quais acredita-se que menos da metade esteja viva.
Israel respondeu imediatamente ao ataque liderado pelo Hamas com uma grande operação militar e ofensiva terrestre em Gaza. O número de mortos na Faixa de Gaza já chegou a mais de 52.000, informou o Ministério da Saúde administrado pelo Hamas na semana passada. Acredita-se que milhares estejam soterrados sob os escombros.
Grupos de ajuda humanitária e as Nações Unidas acusam Israel de usar ajuda humanitária e alimentar como ferramenta política. Isso constitui um potencial crime de guerra que afeta todos os 2,2 milhões de pessoas em Gaza.
Esta semana, o Subsecretário-Geral da ONU para Assuntos Humanitários e Coordenador de Socorro de Emergência, Tom Fletcher, lembrou a Israel em uma declaração que "o direito internacional é inequívoco: como potência ocupante, Israel deve permitir a entrada de ajuda humanitária. A ajuda, e as vidas civis que ela salva, jamais devem ser usadas como moeda de troca".
Durante a guerra, a população de Gaza tornou-se quase inteiramente dependente de suprimentos externos. O deslocamento contínuo de pessoas e a criação de uma vasta zona de proteção controlada pelo exército israelense no norte, ao longo da fronteira leste e no sul negaram aos palestinos o acesso às terras agrícolas mais férteis de Gaza.
"Simplificando, Israel não está apenas impedindo que alimentos entrem em Gaza, mas também criou uma situação em que os palestinos não podem cultivar ou pescar seus próprios alimentos", diz Gavin Kelleher, um trabalhador humanitário do Conselho Norueguês para Refugiados, que recentemente retornou de um trabalho em Gaza.
Os moradores de Gaza também relatam saques de armazéns e uma atmosfera geral de caos e segurança interna precária durante o bombardeio israelense.
O OCHA informou na quinta-feira (1º de maio) que "ataques recentes teriam atingido prédios residenciais e tendas que abrigavam pessoas deslocadas, particularmente em Rafah e no leste da Cidade de Gaza. Até terça-feira, nossos parceiros humanitários estimavam que mais de 423.000 pessoas em Gaza foram deslocadas novamente, sem ter para onde ir."
Isto é um pesadelo para Mahmoud Hassouna. "Meu único desejo é nunca mais ser deslocado." E ele acrescenta: "Depois disso, quero que essa guerra louca acabe."
Um flâneur no inferno
Escrito como reportagem histórica, décadas depois dos fatos, Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe (3ª edição, Artes e Ofícios, 2014, tradução Eduardo San Martin), foi publicado em 1772 em uma estratégia publicitária. O material é apresentado com autoria oculta, produzido por um cidadão londrino que viveu à época dos fatos e que nunca antes fora publicado. A peste de que trata o livro é a bubônica, de 1665, que transformou Londres em um pequeno inferno, com seres deformados e mortos em todos os cantos. Trazida nos porões dos navios pelos ratos, a doença reconfigura a organização da cidade, que sofre um esvaziamento, aguçando as divisões sociais.
O autor ficcional do diário tem uma classe bem definida. É um comerciante abastado que, por tédio e por esporte, não fez como a maioria dos companheiros de seu grupo, que, ao primeiro sinal dos riscos da doença, deixou a cidade e foi em busca dos ares puros do campo, em suas propriedades de campo: “Enquanto a população fugia da city, descobri que a corte mudara mais cedo”. Como um trânsfuga, ele olha a cidade deixada para trás pelos seus, podendo passar o período da doença como um flâneur no inferno. Há um diletantismo noir nesta sua atitude que também é um componente estético.
Este eu burguês percorre assim a cidade e a revela dominada pelos pobres, pelos criados abandonados pelos ricos, pelas famílias que ocupavam regiões mais populosas da periferia, todos nas mãos do charlatanismo, tanto científico quanto místico. “O povo andava feito louco atrás de curandeiros, charlatões e de toda velha benzedeira em busca de remédio e tratamentos […], atrás de remédios geralmente anunciados em floreios como este: ‘pílulas preventivas, infalíveis contra a peste’, ‘elixir soberano contra a corrupção do ar’” — o que poderíamos tomar hoje como versões desesperadas da crença em remédios como a cloroquina. Foi um momento de desafio para a medicina, com seu receituário contraditório, em que médicos que prescreviam e usavam certos métodos ou produtos eram também acometidos pela peste.
Há todo um código de habitação da cidade, na maioria das vezes desrespeitado, para evitar a sua propagação. O principal deles é que as famílias contaminadas são mantidas isoladas nas casas, para que não espalhem a doença. Para isso, um aparato policial é posto em ação e mesmo homens de bem da sociedade são convocados para fiscalizar esta medida. O próprio narrador é um deles que, depois de saciar o seu desejo de colher episódios, contrata um pobre para ocupar a função perigosa imposta pela prefeitura.
Para não ter a casa vigiada, as pessoas fingem-se saudáveis, até ficar impossível esconder as transformações do corpo adoecido, e aí são trancafiadas para morrerem quanto antes em isolamento doméstico.
Este cenário dantesco é descrito como fruto da corrupção moral, daí o tom bíblico da vingança divina de algumas passagens da narrativa. O pecado é que levou àquele estado de coisas, sendo a peste uma mão de Deus para punir a nova Sodoma. Embora o narrador apresente estas teses, ele culpa também a população que não se preveniu e continuou contaminando outros cidadãos, em uma espiral infinita. Famílias mais abastadas que não saíram a tempo teriam sido contaminadas pelos seus criados, pois “é preciso reconhecer que, embora a peste atingisse os mais pobres, também foram os pobres que mais destemidamente se expuseram a ela, dirigindo-se aos seus empregos com um tipo de coragem brutal”. Houve fechamento de comércio e de fábricas, o que resultou na “dispensa e demissão de um número incontável de diaristas e operários de todos os tipos”. Esta população, a mais sacrificada, acabou presa à sua pobreza e morrendo em quantidades absurdas (ao todo, foram 75 mil mortos), ao ponto de serem jogadas em valas comuns e obrigando as autoridades a abrir novos cemitérios.
A população que não tinha posses para deixar Londres, ou que foi negligente quando podia fazer isso, restou na cidade. O narrador conta a tentativa de fuga de três irmãos trabalhadores, um velho soldado, um padeiro e um marinheiro aleijado, que com um pouco de dinheiro e provisão tentaram ir para outras vilas, mas eram proibidos de entrar nelas.
Revelando-se politicamente, Defoe, oculto neste narrador anônimo, conclui que o acerto do prefeito, que com sua equipe ficou na cidade, foi trancafiar a população (principalmente a mais pobre) nas suas casas e na cidade, para evitar a propagação da peste. Houve também controle para que não ocorressem saques nas casas e lojas fechadas, o que distinguiu a “boa administração do lorde prefeito e dos juízes […] para impedir que a fúria e o desespero do povo explodissem em arruaças e tumultos, em suma: que os pobres roubassem os ricos”. Neste elogio está a visão de classe do narrador, que mostra para que serviram as autoridades constituídas e qual foi a solução sanitária encontrada: transformar a cidade de Londres em um imenso campo de concentração, em que a população mais necessitada morresse ali, sem causar maiores danos à economia, ao comércio e aos cofres públicos. Uma política que, com alguns disfarces, talvez seja a mesma que estejamos vivendo em certos setores do Brasil de hoje.
Não há no livro propriamente um enredo, embora as narrativas se organizem em dois núcleos. A viagem cotidiana pela cidade contaminada, feita pelo narrador, e a história de um grupo de trabalhadores que tenta deixar Londres. Entre dados estatísticos de mortos, descrição da doença, métodos de ação sanitária e policial, elogios ao prefeito, cenas dramáticas de sofrimento e relatos do descuido da população, o livro documenta, a partir de relatos, não raro exagerados, este momento histórico que ainda causava medo na população. O tom que hoje chamaríamos de sensacionalista domina o livro, e, para que haja um maior impacto, no seu lançamento, ele simula uma veracidade documental. Seria um diário em primeira pessoa deixado por um sobrevivente da epidemia. O não-ficcional fazia parte de uma estratégia de chegar a um público maior, mais crédulo quando diante de obras pretensamente reais. O ficcionista, assim, no primeiro momento, se vale da invenção para forjar um caráter documental, anulando-se como autor. Ou seja, o ficcional é constituído nos paratextos, no envelopamento narrativo da obra que se apresenta como testemunhal. Esta novidade de estrutura dá a esta quase-ficção uma natureza moderna, de busca do leitor desconfiado em relação à literatura e ávido por emoções tidas como autênticas, porque vividas em proximidade com um cidadão que tomou nota do que viu. O subtítulo extenso é quase um abstrat da obra: Observações e recordações dos acontecimentos mais extraordinários, públicos ou privados, ocorridos em Londres durante a última grande epidemia. Ou seja, o livro cumpre uma das funções literárias que é a de transmitir emoção estética a partir da simulação de episódios, que aqui atinge a própria identificação autoral.
O autor ficcional do diário tem uma classe bem definida. É um comerciante abastado que, por tédio e por esporte, não fez como a maioria dos companheiros de seu grupo, que, ao primeiro sinal dos riscos da doença, deixou a cidade e foi em busca dos ares puros do campo, em suas propriedades de campo: “Enquanto a população fugia da city, descobri que a corte mudara mais cedo”. Como um trânsfuga, ele olha a cidade deixada para trás pelos seus, podendo passar o período da doença como um flâneur no inferno. Há um diletantismo noir nesta sua atitude que também é um componente estético.
Este eu burguês percorre assim a cidade e a revela dominada pelos pobres, pelos criados abandonados pelos ricos, pelas famílias que ocupavam regiões mais populosas da periferia, todos nas mãos do charlatanismo, tanto científico quanto místico. “O povo andava feito louco atrás de curandeiros, charlatões e de toda velha benzedeira em busca de remédio e tratamentos […], atrás de remédios geralmente anunciados em floreios como este: ‘pílulas preventivas, infalíveis contra a peste’, ‘elixir soberano contra a corrupção do ar’” — o que poderíamos tomar hoje como versões desesperadas da crença em remédios como a cloroquina. Foi um momento de desafio para a medicina, com seu receituário contraditório, em que médicos que prescreviam e usavam certos métodos ou produtos eram também acometidos pela peste.
Há todo um código de habitação da cidade, na maioria das vezes desrespeitado, para evitar a sua propagação. O principal deles é que as famílias contaminadas são mantidas isoladas nas casas, para que não espalhem a doença. Para isso, um aparato policial é posto em ação e mesmo homens de bem da sociedade são convocados para fiscalizar esta medida. O próprio narrador é um deles que, depois de saciar o seu desejo de colher episódios, contrata um pobre para ocupar a função perigosa imposta pela prefeitura.
Para não ter a casa vigiada, as pessoas fingem-se saudáveis, até ficar impossível esconder as transformações do corpo adoecido, e aí são trancafiadas para morrerem quanto antes em isolamento doméstico.
Este cenário dantesco é descrito como fruto da corrupção moral, daí o tom bíblico da vingança divina de algumas passagens da narrativa. O pecado é que levou àquele estado de coisas, sendo a peste uma mão de Deus para punir a nova Sodoma. Embora o narrador apresente estas teses, ele culpa também a população que não se preveniu e continuou contaminando outros cidadãos, em uma espiral infinita. Famílias mais abastadas que não saíram a tempo teriam sido contaminadas pelos seus criados, pois “é preciso reconhecer que, embora a peste atingisse os mais pobres, também foram os pobres que mais destemidamente se expuseram a ela, dirigindo-se aos seus empregos com um tipo de coragem brutal”. Houve fechamento de comércio e de fábricas, o que resultou na “dispensa e demissão de um número incontável de diaristas e operários de todos os tipos”. Esta população, a mais sacrificada, acabou presa à sua pobreza e morrendo em quantidades absurdas (ao todo, foram 75 mil mortos), ao ponto de serem jogadas em valas comuns e obrigando as autoridades a abrir novos cemitérios.
A população que não tinha posses para deixar Londres, ou que foi negligente quando podia fazer isso, restou na cidade. O narrador conta a tentativa de fuga de três irmãos trabalhadores, um velho soldado, um padeiro e um marinheiro aleijado, que com um pouco de dinheiro e provisão tentaram ir para outras vilas, mas eram proibidos de entrar nelas.
Revelando-se politicamente, Defoe, oculto neste narrador anônimo, conclui que o acerto do prefeito, que com sua equipe ficou na cidade, foi trancafiar a população (principalmente a mais pobre) nas suas casas e na cidade, para evitar a propagação da peste. Houve também controle para que não ocorressem saques nas casas e lojas fechadas, o que distinguiu a “boa administração do lorde prefeito e dos juízes […] para impedir que a fúria e o desespero do povo explodissem em arruaças e tumultos, em suma: que os pobres roubassem os ricos”. Neste elogio está a visão de classe do narrador, que mostra para que serviram as autoridades constituídas e qual foi a solução sanitária encontrada: transformar a cidade de Londres em um imenso campo de concentração, em que a população mais necessitada morresse ali, sem causar maiores danos à economia, ao comércio e aos cofres públicos. Uma política que, com alguns disfarces, talvez seja a mesma que estejamos vivendo em certos setores do Brasil de hoje.
Polarização à brasileira
O vocabulário da política brasileira tem consagrado o conceito de polarização para traduzir o sentimento do eleitorado em relação ao momento que o País atravessa. O termo se tornou uma recorrência na expressão popular, a partir de 2018, quando o ex-capitão Jair Bolsonaro ganhou o pleito, no segundo turno, por 55,13% contra 44,87% do petista Fernando Haddad. A polarização foi o conceito usado por uma parcela do eleitorado para explicar a vitória do candidato da direita contra o candidato de esquerda. E, também, para explicar a vitória de Lula em 2022.
A polarização política, é oportuno lembrar, ganhou espaço no cenário eleitoral ao longo do ciclo da redemocratização dos anos de 1990, quando o PT ainda se apresentava como o legítimo intérprete do ideário socialista, enfrentando o PSDB, que tentava fincar as estacas da social-democracia. As diferenças entre os dois se apresentavam no modo de implementar seus programas, pois os escopos se aproximavam.
Enquanto os partidos socialistas defendem a igualdade social, a justiça, a redução da desigualdade e a intervenção do Estado na economia para garantir o bem-estar social, por meio de mudanças radicais, os partidos social-democratas defendem o Estado do Bem-Estar Social, focando em reformas gradualistas, sob a égide do Estado Democrático de Direito.
Era esse o ideário que abria espaço para a polarização. Hoje, a disputa entre tucanos e petistas não tem mais sentido. O tucanato se apequenou, ninho, diminuiu de tamanho e, para sobreviver, funde-se, agora, com um partido amorfo, o Pode (Podemos), da família Abreu (Renata Abreu), para formar uma Federação, essa nova figura criada com o objetivo de permitir às legendas atuarem de forma unificada em todo o País. A nova Federação promete atuar na área de centro-direita.
Como se vê, os tucanos mudam para outro lado do arco ideológico, estreitando o espaço de centro-esquerda e engordando o centro.
Já o PT, que se apresentava como o único partido a desfraldar a bandeira socialista, também corre para o centro, premido pelas circunstâncias e forçado por um aglomerado composto de uma batelada de siglas sem doutrina (o Centrão). Urge reconhecer, porém, que o petismo ainda atrai uma legião de simpatizantes, principalmente os bolsões que recebem benefícios, contingentes da baixa classe média, grupos da academia e do mundo das artes e pequenos proprietários, entre outros.
O fato é que o partido amaciou sua imagem, adoçou sua narrativa extremista, limpou arestas, e contém vozes mais radicais, como os integrantes da Articulação de Esquerda, que ainda defendem um “projeto de direção socialista para realizar um processo de transformação radical do Brasil”.
A imagem de partido ideológico dá lugar à de um partido que joga o “jogo das conveniências”. Um partido que busca apoio de entes amorfos, sem ideologia, sem programas e sem marca.
O PSB do prefeito de Recife, João Campos, e do vice-presidente Geraldo Alckmin, por sua vez, já não habita a seara socialista, embora o S da sigla (S de socialista) tenha perdido sentido.
Voltemos, então, a analisar a polarização. Como ela pode existir sob uma moldura que mostra um PT centrista, um PSDB quase morrendo, o PDT do ministro da Previdência, Carlos Lupi, sendo destroçado pela crise do INSS, o PSB de João Campos sem programas, o PSD de Gilberto Kassab crescendo no espaço de centro-direita, e o PL de Valdemar da Costa Neto e de Bolsonaro, tendo como único objetivo derrotar Lula em 2026. Defende o PL um ideário, uma linha programática que lhe desse uma identidade? Ora, se ganhou em 2018 a disputa contra o PT, não foi por conta de uma marca ideológica e, sim, porque o eleitorado viu em Bolsonaro um perfil novo, alguém que se contrapunha à mesmice.
A ciência política ensina: a polarização costuma ocorrer em sistemas bipartidários, como os dos Estados Unidos, onde dois partidos, o republicano e o democrata, se revezam no assento presidencial da Casa Branca.
Portanto, a polarização no Brasil, nos termos definidos pela política, não existe ou é insignificante. Temos 29 siglas registradas no TSE e não há, entre elas, disputas ideológicas, com exceção de um outro partido, de índole extremada, como o PSOL ou o PSTU.
Se a disputa ideológica é de pouca intensidade, já na esfera social ela ganha força, ancorada em divergências entre duas bandas da sociedade, uma que se proclama liberal (defesa de princípios que enfatizam a liberdade individual, a igualdade perante a lei, a democracia, o livre mercado e a propriedade privada); e outra que defende valores conservadores (defesa da manutenção das instituições sociais tradicionais, como a família, a comunidade local e a religião, além dos usos, costumes e tradições).
Qual o tamanho dessas bandas? As pesquisas de opinião calculam que ambas não passam de 30% do eleitorado. Sobram 70%.
Pergunta que fica no ar: é possível se afirmar que temos forte polarização no País, como costumam dizer bolsonaristas e petistas?
A polarização política, é oportuno lembrar, ganhou espaço no cenário eleitoral ao longo do ciclo da redemocratização dos anos de 1990, quando o PT ainda se apresentava como o legítimo intérprete do ideário socialista, enfrentando o PSDB, que tentava fincar as estacas da social-democracia. As diferenças entre os dois se apresentavam no modo de implementar seus programas, pois os escopos se aproximavam.
Enquanto os partidos socialistas defendem a igualdade social, a justiça, a redução da desigualdade e a intervenção do Estado na economia para garantir o bem-estar social, por meio de mudanças radicais, os partidos social-democratas defendem o Estado do Bem-Estar Social, focando em reformas gradualistas, sob a égide do Estado Democrático de Direito.
Era esse o ideário que abria espaço para a polarização. Hoje, a disputa entre tucanos e petistas não tem mais sentido. O tucanato se apequenou, ninho, diminuiu de tamanho e, para sobreviver, funde-se, agora, com um partido amorfo, o Pode (Podemos), da família Abreu (Renata Abreu), para formar uma Federação, essa nova figura criada com o objetivo de permitir às legendas atuarem de forma unificada em todo o País. A nova Federação promete atuar na área de centro-direita.
Como se vê, os tucanos mudam para outro lado do arco ideológico, estreitando o espaço de centro-esquerda e engordando o centro.
Já o PT, que se apresentava como o único partido a desfraldar a bandeira socialista, também corre para o centro, premido pelas circunstâncias e forçado por um aglomerado composto de uma batelada de siglas sem doutrina (o Centrão). Urge reconhecer, porém, que o petismo ainda atrai uma legião de simpatizantes, principalmente os bolsões que recebem benefícios, contingentes da baixa classe média, grupos da academia e do mundo das artes e pequenos proprietários, entre outros.
O fato é que o partido amaciou sua imagem, adoçou sua narrativa extremista, limpou arestas, e contém vozes mais radicais, como os integrantes da Articulação de Esquerda, que ainda defendem um “projeto de direção socialista para realizar um processo de transformação radical do Brasil”.
A imagem de partido ideológico dá lugar à de um partido que joga o “jogo das conveniências”. Um partido que busca apoio de entes amorfos, sem ideologia, sem programas e sem marca.
O PSB do prefeito de Recife, João Campos, e do vice-presidente Geraldo Alckmin, por sua vez, já não habita a seara socialista, embora o S da sigla (S de socialista) tenha perdido sentido.
Voltemos, então, a analisar a polarização. Como ela pode existir sob uma moldura que mostra um PT centrista, um PSDB quase morrendo, o PDT do ministro da Previdência, Carlos Lupi, sendo destroçado pela crise do INSS, o PSB de João Campos sem programas, o PSD de Gilberto Kassab crescendo no espaço de centro-direita, e o PL de Valdemar da Costa Neto e de Bolsonaro, tendo como único objetivo derrotar Lula em 2026. Defende o PL um ideário, uma linha programática que lhe desse uma identidade? Ora, se ganhou em 2018 a disputa contra o PT, não foi por conta de uma marca ideológica e, sim, porque o eleitorado viu em Bolsonaro um perfil novo, alguém que se contrapunha à mesmice.
A ciência política ensina: a polarização costuma ocorrer em sistemas bipartidários, como os dos Estados Unidos, onde dois partidos, o republicano e o democrata, se revezam no assento presidencial da Casa Branca.
Portanto, a polarização no Brasil, nos termos definidos pela política, não existe ou é insignificante. Temos 29 siglas registradas no TSE e não há, entre elas, disputas ideológicas, com exceção de um outro partido, de índole extremada, como o PSOL ou o PSTU.
Se a disputa ideológica é de pouca intensidade, já na esfera social ela ganha força, ancorada em divergências entre duas bandas da sociedade, uma que se proclama liberal (defesa de princípios que enfatizam a liberdade individual, a igualdade perante a lei, a democracia, o livre mercado e a propriedade privada); e outra que defende valores conservadores (defesa da manutenção das instituições sociais tradicionais, como a família, a comunidade local e a religião, além dos usos, costumes e tradições).
Qual o tamanho dessas bandas? As pesquisas de opinião calculam que ambas não passam de 30% do eleitorado. Sobram 70%.
Pergunta que fica no ar: é possível se afirmar que temos forte polarização no País, como costumam dizer bolsonaristas e petistas?
segunda-feira, 5 de maio de 2025
Mussolini inspira esquerda e direita
Ao final da estupenda trilogia de Antonio Scurati sobre Benito Mussolini, um misto de espanto e encanto fica gravado no leitor. “M — Os últimos dias da Europa” encerra a narrativa da triste epopeia quando flagra o ditador italiano, entre a vaidade e a covardia, transformado em capacho de Adolf Hitler. Armado de retórica trágica, em cada parágrafo, sob a poesia de desabamento, Scurati constrói um personagem sempre fadado ao atoleiro, mesmo se vitorioso, ou em queda no precipício, se em desespero.
Não há escapatória para o Mussolini de Scurati — a conquista também é o passaporte de seu cadafalso. O autoengano surge disfarçado de estratégia política, de esperteza ideológica. Disposto a ser um César romano, será apenas um oportunista seminal e lúgubre da História.
Antes elogiado por Churchill, que o derrotou depois de ele se aliar ao ditador alemão, Mussolini encarna a tragédia política do século passado. Começa socialista, termina nazifascista. De um extremo a outro sem intervalo, onde a incoerência é aparato da amoralidade, quase seu sinônimo. É um jornalista de texto vibrante, polemista incansável. Ao ser execrado pelos companheiros de esquerda, funda seu movimento direitista. Com o ato, procura o reconhecimento intelectual e afetivo capaz de compensar seu constante sentimento de abandono e substitui a baixa estima pela virulenta arrogância e violência anticomunista. Não há ética, é apenas o gesto político de um animal ferido; o poder nada mais é que um bálsamo diante das frustrações.
Encontra nas amantes, mais jovens e mais ricas, o consolo afetivo paradoxalmente não preenchido por suas conquistas políticas, quando é incensado pelas massas a quem oferece um futuro espelhado no passado glorioso do Império Romano (Trump? Bolsonaro?). Morrerá ao lado de uma delas, Clara Petacci. Mas deve a Margherita Sarfatti seu verniz de sofisticação. Bronco, analfabeto cultural, sem modos ou lustro, receberá da rica judia veneziana as instruções para estar na sociedade. Por seu intermédio virá a convivência com a aristocracia, escritores e artistas. Sarfatti teoriza e organiza o Novecento Italiano, com o pintor Mario Simoni e o grande Umberto Boccioni, entre outros. Mussolini aproveita o brilho social e intelectual da amante. Ao contrário de seu futuro aliado, Adolf Hitler, admira a arte moderna e seus recursos como a fotomontagem. É uma paixão de resultados — Sarfatti o ensina a usar os talheres e os copos adequados à mesa.
Também é uma paixão trágica. E oportunista. Até então modelo político para Hitler, que o imita até na formação de milícias para espancar os adversários e, ao final, o inspira na grotesca coreografia de gestos, Mussolini passa a imitar o imitador. Torna-se antissemita e edita leis raciais, para desespero de muitos de seus apoiadores e amigos judeus. Entre eles, Sarfatti, obrigada a abandonar o leito do ditador e buscar refúgio na América do Sul. Não sem antes deixar sua filha Fiammetta como refém na Itália; era uma garantia de que sua mãe (judia) não escandiria a relação com o ditador (agora racista). Safartti só voltará do exílio no final da década de 1940, depois de Hitler meter uma bala na cabeça e Mussolini ser morto e pendurado de ponta-cabeça em praça pública ao lado de outros fascistas (Petacci inclusive).
O espanto deixado por Scurati em seus leitores é a proximidade das ideias e práticas de Mussolini com o universo político contemporâneo. Entre muitos exemplos, os argumentos das Leis Raciais, de 1938. À sombra do Ministério da Cultura Popular, a seu pedido, um grupo de intelectuais fascistas lança o documento “O fascismo e o problema da raça”. Estabelecem: “As raças humanas existem. A existência das raças humanas já não é uma abstração do nosso espírito, mas corresponde a uma realidade fenomênica, material, perceptível aos nossos sentidos”. E mais: “O conceito de raça é um conceito puramente biológico”. Chocante atualidade.
Scurati recorre a documentos, diários dos personagens e fonogramas na construção da narrativa. Depois de se unir ao nazismo, como fantoche e coadjuvante, com a vaidade ultrajada, sem munição para entrar na guerra, Mussolini busca influenciar o ditador alemão. E grafa mensagem: “O dia que tivermos demolido o bolchevismo (…) será então a vez das grandes democracias”. Desde então, o socialismo foi enterrado. Apostas? “O povo é uma puta e se deita com o macho que vence”, vaticinou o italiano antes de ser morto e apedrejado pela turba que o amou.
Não há escapatória para o Mussolini de Scurati — a conquista também é o passaporte de seu cadafalso. O autoengano surge disfarçado de estratégia política, de esperteza ideológica. Disposto a ser um César romano, será apenas um oportunista seminal e lúgubre da História.
Antes elogiado por Churchill, que o derrotou depois de ele se aliar ao ditador alemão, Mussolini encarna a tragédia política do século passado. Começa socialista, termina nazifascista. De um extremo a outro sem intervalo, onde a incoerência é aparato da amoralidade, quase seu sinônimo. É um jornalista de texto vibrante, polemista incansável. Ao ser execrado pelos companheiros de esquerda, funda seu movimento direitista. Com o ato, procura o reconhecimento intelectual e afetivo capaz de compensar seu constante sentimento de abandono e substitui a baixa estima pela virulenta arrogância e violência anticomunista. Não há ética, é apenas o gesto político de um animal ferido; o poder nada mais é que um bálsamo diante das frustrações.
Encontra nas amantes, mais jovens e mais ricas, o consolo afetivo paradoxalmente não preenchido por suas conquistas políticas, quando é incensado pelas massas a quem oferece um futuro espelhado no passado glorioso do Império Romano (Trump? Bolsonaro?). Morrerá ao lado de uma delas, Clara Petacci. Mas deve a Margherita Sarfatti seu verniz de sofisticação. Bronco, analfabeto cultural, sem modos ou lustro, receberá da rica judia veneziana as instruções para estar na sociedade. Por seu intermédio virá a convivência com a aristocracia, escritores e artistas. Sarfatti teoriza e organiza o Novecento Italiano, com o pintor Mario Simoni e o grande Umberto Boccioni, entre outros. Mussolini aproveita o brilho social e intelectual da amante. Ao contrário de seu futuro aliado, Adolf Hitler, admira a arte moderna e seus recursos como a fotomontagem. É uma paixão de resultados — Sarfatti o ensina a usar os talheres e os copos adequados à mesa.
Também é uma paixão trágica. E oportunista. Até então modelo político para Hitler, que o imita até na formação de milícias para espancar os adversários e, ao final, o inspira na grotesca coreografia de gestos, Mussolini passa a imitar o imitador. Torna-se antissemita e edita leis raciais, para desespero de muitos de seus apoiadores e amigos judeus. Entre eles, Sarfatti, obrigada a abandonar o leito do ditador e buscar refúgio na América do Sul. Não sem antes deixar sua filha Fiammetta como refém na Itália; era uma garantia de que sua mãe (judia) não escandiria a relação com o ditador (agora racista). Safartti só voltará do exílio no final da década de 1940, depois de Hitler meter uma bala na cabeça e Mussolini ser morto e pendurado de ponta-cabeça em praça pública ao lado de outros fascistas (Petacci inclusive).
O espanto deixado por Scurati em seus leitores é a proximidade das ideias e práticas de Mussolini com o universo político contemporâneo. Entre muitos exemplos, os argumentos das Leis Raciais, de 1938. À sombra do Ministério da Cultura Popular, a seu pedido, um grupo de intelectuais fascistas lança o documento “O fascismo e o problema da raça”. Estabelecem: “As raças humanas existem. A existência das raças humanas já não é uma abstração do nosso espírito, mas corresponde a uma realidade fenomênica, material, perceptível aos nossos sentidos”. E mais: “O conceito de raça é um conceito puramente biológico”. Chocante atualidade.
Scurati recorre a documentos, diários dos personagens e fonogramas na construção da narrativa. Depois de se unir ao nazismo, como fantoche e coadjuvante, com a vaidade ultrajada, sem munição para entrar na guerra, Mussolini busca influenciar o ditador alemão. E grafa mensagem: “O dia que tivermos demolido o bolchevismo (…) será então a vez das grandes democracias”. Desde então, o socialismo foi enterrado. Apostas? “O povo é uma puta e se deita com o macho que vence”, vaticinou o italiano antes de ser morto e apedrejado pela turba que o amou.
Uma anatomia de genocídio e silêncio global que trai a humanidade
Tudo se sabe, tudo se comprova. Amanhã, ninguém ousará dizer: "Eu não sabia". Desde outubro de 2023, Gaza está desaparecendo diante de nossos olhos, vítima de um crime que as mais altas autoridades morais, jurídicas e intelectuais ousaram nomear inequivocamente: genocídio.
Será que as nações ocidentais — principalmente os Estados Unidos — ainda terão a audácia de denunciar violações de direitos humanos em outros lugares, pontuando sua hipocrisia com os intermináveis chavões do Departamento de Estado? Seu descrédito está selado; sua palavra está desonrada.
E o que dizer dos regimes árabes cúmplices — Egito, Jordânia, Arábia Saudita, Emirados — especialmente o Egito e os Emirados, os verdadeiros arquitetos do estrangulamento de Gaza? O que dirão perante o tribunal da história? Esses regimes da vergonha carregarão para sempre a marca da infâmia. Pensaram em trocar sua honra pela proteção dos poderosos; em vez disso, ganharam apenas o desprezo de seus povos e as maldições de gerações ainda por nascer.
A terrível palavra genocídio não é pronunciada levianamente, nem movida pela emoção; ela foi cuidadosamente ponderada por aqueles cuja vocação é o rigor. Omer Bartov , eminente historiador do Holocausto e ex-soldado israelense, descreve Gaza como o teatro do extermínio deliberado. Raz Segal, especialista israelense em genocídios modernos, a identifica como um " caso clássico " de apagamento étnico em plena luz do dia. Amos Goldberg , professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, declara sem rodeios: "Isso é genocídio". Gregory Stanton, fundador do Genocide Watch, denuncia o "genocídio à vista de todos". Até mesmo instituições internacionais, tipicamente tão relutantes em nomear o irreparável, confirmaram esse diagnóstico condenatório.
Em 26 de janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça reconheceu solenemente a plausibilidade das acusações de genocídio contra Israel, exigindo medidas imediatas para impedir novos danos irreparáveis. O Tribunal Penal Internacional, ultrapassando um limiar histórico, emitiu mandados de prisão para os principais líderes israelenses por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A Anistia Internacional, a Human Rights Watch e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos — todos agora falam abertamente em extermínio, genocídio e destruição sistemática de um povo.
Israel impôs um bloqueio total a Gaza, cortando a alimentação, a eletricidade e a água potável, tornando impossível a sobrevivência física. A última usina de dessalinização cessou a operação, condenando a população à sede e à doença. Mais da metade do território está militarmente ocupada.
Dois terços dos habitantes de Gaza enfrentam ordens de deslocamento forçado, forçados a se deslocar em direção a uma fronteira fechada em um êxodo orquestrado. O Ministro da Defesa de Israel admite abertamente que Israel usará todas as formas de pressão, militar e civil, para impor esse deslocamento, em consonância com as ambições do plano de Trump.
O número de vítimas humanas é sem precedentes. Entre 7 e 31 de outubro de 2023, quase 1.900 crianças foram mortas, segundo a Airwars — o equivalente proporcional a trezentas vezes a taxa de mortalidade infantil observada na Ucrânia. No pior ano da Síria, foram necessários doze meses para atingir esse número. Em Gaza, três semanas foram suficientes. Trabalhadores humanitários assassinados, médicos alvejados, jornalistas executados, hospitais destruídos: Gaza se tornou o epicentro de uma tragédia sem precedentes na história contemporânea. Até mesmo a tonelagem de bombas lançadas supera a de Dresden em 1945.
A escala da destruição desafia qualquer justificativa militar; ela personifica o instinto genocida em sua forma mais pura. Até Moshe Ya'alon , ex-ministro da Defesa israelense, acusou abertamente Israel de cometer crimes de guerra e limpeza étnica em Gaza — uma acusação extraordinária vinda de dentro do establishment de segurança israelense em meio ao conflito em curso.
Essa avaliação terrível é amplamente compartilhada. O Projeto de Direitos Humanos Lowenstein da Faculdade de Direito de Yale afirma inequivocamente: "Israel cometeu atos genocidas, nomeadamente matando, ferindo gravemente e impondo condições de vida calculadas e destinadas a provocar a destruição física dos palestinos em Gaza."
O Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio acrescenta sem rodeios: "Israel está cometendo genocídio, e os EUA são cúmplices". Michael Fakhri, Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, denunciou as táticas de fome de Israel como genocidas. Tlaleng Mofokeng, Relator Especial da ONU para o Direito à Saúde, concorda, condenando a imposição deliberada de fome, desnutrição prolongada, desidratação e genocídio.
O método segue uma lógica glacial: aterrorizar, matar de fome, deslocar e, então, sem ter para onde fugir, tornar Gaza inabitável, aniquilando sua infraestrutura vital. Transformar esta terra em um deserto. O próprio Benjamin Netanyahu admitiu: o objetivo é " reduzir a população ".
Contra essa empreitada de apagamento, a memória universal se ergue. Imre Kertész nos lembrou que algumas tragédias excedem a linguagem comum; Gaza agora impõe tal provação ao discurso humano. Charlotte Delbo ensinou que a agonia dos vivos — fome, sede, extinguindo corpos e espíritos — pode ser mais cruel que a própria morte.
Primo Levi levantou uma questão devastadora: ainda é humano aquele privado de pão, água e dignidade? Em Gaza, não são apenas algumas almas, mas dois milhões de seres humanos que imploram diariamente pelo direito básico de existir. Simone Veil, sobrevivente do extermínio, sabia que o crime supremo é relegar os sobreviventes ao deserto da indiferença.
Hoje, Gaza corre o risco de morrer — não apenas sob bombas, mas também enterrada no esquecimento.
Depois de Auschwitz, escreveu Adorno, a poesia parecia bárbara. Depois de Gaza, até a fala vacila. Como podemos falar de direitos humanos sem profanar o que resta da dignidade humana? Como erguer tratados, pronunciamentos, quando as cinzas de um povo sufocam nossas vozes? Cada discurso oco, silêncio educado e indignação fingida se tornam, depois de Gaza, mais uma cumplicidade, mais uma abdicação assinada com sangue. Não basta mais lamentar: é preciso condenar. Não basta mais comemorar: é preciso se levantar.
Há crimes contra o corpo. Há crimes contra a alma. Há crimes contra a memória.
Permanecer em silêncio, virar as costas, recusar-se a nomear — é assassinar duas vezes.
Nosso dever não é lamentar, mas declarar; não desviar o olhar, mas nomear com clareza; não sobreviver na vergonha, mas testemunhar com dignidade. Se Gaza for apagada pela indiferença, então "Nunca Mais" se tornará apenas um epitáfio mentiroso na vala comum de nossas traições.
Enquanto isso, os propagandistas sionistas zombam, alheios ao seu próprio naufrágio moral. Encurralados pelos fatos, oprimidos por todos os lados, nada lhes resta nas redes sociais além de emojis risonhos — caretas pálidas de uma causa decadente. Desprovidos de linguagem e coragem, recrutam soldados rasos anônimos da Nigéria e da Índia, cuja mediocridade reflete a decadência de suas mentiras.
Eles riem, mas é o grotesco estertor dos derrotados, o último suspiro de uma fraude completamente exposta.
Será que as nações ocidentais — principalmente os Estados Unidos — ainda terão a audácia de denunciar violações de direitos humanos em outros lugares, pontuando sua hipocrisia com os intermináveis chavões do Departamento de Estado? Seu descrédito está selado; sua palavra está desonrada.
E o que dizer dos regimes árabes cúmplices — Egito, Jordânia, Arábia Saudita, Emirados — especialmente o Egito e os Emirados, os verdadeiros arquitetos do estrangulamento de Gaza? O que dirão perante o tribunal da história? Esses regimes da vergonha carregarão para sempre a marca da infâmia. Pensaram em trocar sua honra pela proteção dos poderosos; em vez disso, ganharam apenas o desprezo de seus povos e as maldições de gerações ainda por nascer.
A terrível palavra genocídio não é pronunciada levianamente, nem movida pela emoção; ela foi cuidadosamente ponderada por aqueles cuja vocação é o rigor. Omer Bartov , eminente historiador do Holocausto e ex-soldado israelense, descreve Gaza como o teatro do extermínio deliberado. Raz Segal, especialista israelense em genocídios modernos, a identifica como um " caso clássico " de apagamento étnico em plena luz do dia. Amos Goldberg , professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, declara sem rodeios: "Isso é genocídio". Gregory Stanton, fundador do Genocide Watch, denuncia o "genocídio à vista de todos". Até mesmo instituições internacionais, tipicamente tão relutantes em nomear o irreparável, confirmaram esse diagnóstico condenatório.
Em 26 de janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça reconheceu solenemente a plausibilidade das acusações de genocídio contra Israel, exigindo medidas imediatas para impedir novos danos irreparáveis. O Tribunal Penal Internacional, ultrapassando um limiar histórico, emitiu mandados de prisão para os principais líderes israelenses por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A Anistia Internacional, a Human Rights Watch e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos — todos agora falam abertamente em extermínio, genocídio e destruição sistemática de um povo.
Israel impôs um bloqueio total a Gaza, cortando a alimentação, a eletricidade e a água potável, tornando impossível a sobrevivência física. A última usina de dessalinização cessou a operação, condenando a população à sede e à doença. Mais da metade do território está militarmente ocupada.
Dois terços dos habitantes de Gaza enfrentam ordens de deslocamento forçado, forçados a se deslocar em direção a uma fronteira fechada em um êxodo orquestrado. O Ministro da Defesa de Israel admite abertamente que Israel usará todas as formas de pressão, militar e civil, para impor esse deslocamento, em consonância com as ambições do plano de Trump.
O número de vítimas humanas é sem precedentes. Entre 7 e 31 de outubro de 2023, quase 1.900 crianças foram mortas, segundo a Airwars — o equivalente proporcional a trezentas vezes a taxa de mortalidade infantil observada na Ucrânia. No pior ano da Síria, foram necessários doze meses para atingir esse número. Em Gaza, três semanas foram suficientes. Trabalhadores humanitários assassinados, médicos alvejados, jornalistas executados, hospitais destruídos: Gaza se tornou o epicentro de uma tragédia sem precedentes na história contemporânea. Até mesmo a tonelagem de bombas lançadas supera a de Dresden em 1945.
A escala da destruição desafia qualquer justificativa militar; ela personifica o instinto genocida em sua forma mais pura. Até Moshe Ya'alon , ex-ministro da Defesa israelense, acusou abertamente Israel de cometer crimes de guerra e limpeza étnica em Gaza — uma acusação extraordinária vinda de dentro do establishment de segurança israelense em meio ao conflito em curso.
Essa avaliação terrível é amplamente compartilhada. O Projeto de Direitos Humanos Lowenstein da Faculdade de Direito de Yale afirma inequivocamente: "Israel cometeu atos genocidas, nomeadamente matando, ferindo gravemente e impondo condições de vida calculadas e destinadas a provocar a destruição física dos palestinos em Gaza."
O Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio acrescenta sem rodeios: "Israel está cometendo genocídio, e os EUA são cúmplices". Michael Fakhri, Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, denunciou as táticas de fome de Israel como genocidas. Tlaleng Mofokeng, Relator Especial da ONU para o Direito à Saúde, concorda, condenando a imposição deliberada de fome, desnutrição prolongada, desidratação e genocídio.
O método segue uma lógica glacial: aterrorizar, matar de fome, deslocar e, então, sem ter para onde fugir, tornar Gaza inabitável, aniquilando sua infraestrutura vital. Transformar esta terra em um deserto. O próprio Benjamin Netanyahu admitiu: o objetivo é " reduzir a população ".
Contra essa empreitada de apagamento, a memória universal se ergue. Imre Kertész nos lembrou que algumas tragédias excedem a linguagem comum; Gaza agora impõe tal provação ao discurso humano. Charlotte Delbo ensinou que a agonia dos vivos — fome, sede, extinguindo corpos e espíritos — pode ser mais cruel que a própria morte.
Primo Levi levantou uma questão devastadora: ainda é humano aquele privado de pão, água e dignidade? Em Gaza, não são apenas algumas almas, mas dois milhões de seres humanos que imploram diariamente pelo direito básico de existir. Simone Veil, sobrevivente do extermínio, sabia que o crime supremo é relegar os sobreviventes ao deserto da indiferença.
Hoje, Gaza corre o risco de morrer — não apenas sob bombas, mas também enterrada no esquecimento.
Depois de Auschwitz, escreveu Adorno, a poesia parecia bárbara. Depois de Gaza, até a fala vacila. Como podemos falar de direitos humanos sem profanar o que resta da dignidade humana? Como erguer tratados, pronunciamentos, quando as cinzas de um povo sufocam nossas vozes? Cada discurso oco, silêncio educado e indignação fingida se tornam, depois de Gaza, mais uma cumplicidade, mais uma abdicação assinada com sangue. Não basta mais lamentar: é preciso condenar. Não basta mais comemorar: é preciso se levantar.
Há crimes contra o corpo. Há crimes contra a alma. Há crimes contra a memória.
Permanecer em silêncio, virar as costas, recusar-se a nomear — é assassinar duas vezes.
Nosso dever não é lamentar, mas declarar; não desviar o olhar, mas nomear com clareza; não sobreviver na vergonha, mas testemunhar com dignidade. Se Gaza for apagada pela indiferença, então "Nunca Mais" se tornará apenas um epitáfio mentiroso na vala comum de nossas traições.
Enquanto isso, os propagandistas sionistas zombam, alheios ao seu próprio naufrágio moral. Encurralados pelos fatos, oprimidos por todos os lados, nada lhes resta nas redes sociais além de emojis risonhos — caretas pálidas de uma causa decadente. Desprovidos de linguagem e coragem, recrutam soldados rasos anônimos da Nigéria e da Índia, cuja mediocridade reflete a decadência de suas mentiras.
Eles riem, mas é o grotesco estertor dos derrotados, o último suspiro de uma fraude completamente exposta.
Trump 2.0: ídolo ou espantalho?
Até recentemente, muitos analistas previam que a volta de Donald Trump ao poder facilitaria a ascensão de líderes semelhantes mundo afora – políticos que buscam se promover com base em discursos antissistema, “anti-globalistas” e com ataques às instituições democráticas. Não faltam precedentes: desde 2016, Trump influenciou líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria e Matteo Salvini na Itália. No entanto, a realidade do segundo mandato de Trump está mostrando nuances inesperadas – e até contraditórias.
Dois dos aliados históricos mais próximos dos EUA – Canadá e Austrália – responderam de forma a desafiar essa narrativa dominante. No Canadá, a postura hostil de Trump, com tarifas unilaterais e a insinuações de anexação, provocou uma reação nacionalista que enfraqueceu a oposição conservadora, vista como alinhada demais ao trumpismo. O resultado foi uma virada eleitoral histórica:
Mark Carney, um tecnocrata moderado e ex-presidente do Banco da Inglaterra, foi eleito primeiro-ministro com um mandato robusto em 28 de abril. Sua imagem de estabilidade e preparo contrastou com o radicalismo associado à direita pró-Trump, revertendo uma tendência que parecia consolidada meses antes da eleição.
A Austrália viveu um fenômeno semelhante. O primeiro-ministro Anthony Albanese, de centro-esquerda, surfou uma onda de sentimento antiTrump para triunfar nas eleições neste 3 de maio, poucos meses depois de as pesquisas indicarem que ele enfrentaria uma derrota humilhante. O líder conservador Peter Dutton, que apostava em uma retórica nacionalista e em ataques culturais semelhantes aos de Trump, sofreu o mesmo destino que o líder conservador canadense – uma consequência direta do efeito Trump.
O cenário britânico, porém, revela que a influência de Trump se manifesta de formas diferentes. Nigel Farage, veterano do Brexit e líder do Reform UK, está importando abertamente o estilo MAGA: ataques contra as elites e o “estado profundo”, discursos inflamados sobre imigração e promessas de “recuperar o país”. Seu partido avançou de forma contundente nas recentes eleições locais em 1º de maio. Tudo indica que não se trata apenas de protesto momentâneo: Farage está construindo, passo a passo, uma base nacional que desafia o duopólio partidário britânico.
Seu êxito revela que o trumpismo, longe de ser universalmente tóxico, encontra terreno fértil em sociedades que atravessam desafios econômicos, desilusão política e insegurança cultural. Se em alguns países Trump serve de espantalho, capaz de unir eleitores moderados contra o radicalismo; em outros, ele segue como referência para lideranças populistas.
A volta de Trump não significa, portanto, uma nova onda global de adesão automática ao trumpismo. Em muitos países, o republicano pode acelerar a rejeição a seu estilo de governar e até consolidar lideranças moderadas. Mas em outros ele continua sendo um símbolo poderoso para populistas “anti-globalistas” com tendências antidemocráticas que se apresentam como salvadores em tempos de incerteza.
Ainda é cedo para saber se o impacto de Trump no Brasil será semelhante ao observado no Canadá e na Austrália ou similar ao modelo britânico. No caso brasileiro, os sinais são ambíguos. Por um lado, Trump continua sendo uma figura de enorme visibilidade no debate público, e sua reemergência vem encorajando atores como Jair Bolsonaro e seus aliados. Desde 2018, o Brasil tem espelhado diversos aspectos da política norteamericana: da retórica antissistema à recusa em aceitar resultados eleitorais e à invasão de prédios públicos por apoiadores radicais. Eduardo Bolsonaro mudou-se para os EUA recentemente para reforçar vínculos com grupos trumpistas no país. Caso Trump ou figuras de alto perfil como Elon Musk tentem influenciar o processo eleitoral brasileiro no ano que vem, como o dono da Tesla fez recentemente na Alemanha, o impacto político pode ser profundo, seja fortalecendo, seja enfraquecendo seu candidato preferido.
A pergunta central para os próximos anos será: em quais países Trump funcionará como exemplo do que não se fazer e em quais continuará sendo visto como receita de sucesso político?
Dois dos aliados históricos mais próximos dos EUA – Canadá e Austrália – responderam de forma a desafiar essa narrativa dominante. No Canadá, a postura hostil de Trump, com tarifas unilaterais e a insinuações de anexação, provocou uma reação nacionalista que enfraqueceu a oposição conservadora, vista como alinhada demais ao trumpismo. O resultado foi uma virada eleitoral histórica:
Mark Carney, um tecnocrata moderado e ex-presidente do Banco da Inglaterra, foi eleito primeiro-ministro com um mandato robusto em 28 de abril. Sua imagem de estabilidade e preparo contrastou com o radicalismo associado à direita pró-Trump, revertendo uma tendência que parecia consolidada meses antes da eleição.
A Austrália viveu um fenômeno semelhante. O primeiro-ministro Anthony Albanese, de centro-esquerda, surfou uma onda de sentimento antiTrump para triunfar nas eleições neste 3 de maio, poucos meses depois de as pesquisas indicarem que ele enfrentaria uma derrota humilhante. O líder conservador Peter Dutton, que apostava em uma retórica nacionalista e em ataques culturais semelhantes aos de Trump, sofreu o mesmo destino que o líder conservador canadense – uma consequência direta do efeito Trump.
O cenário britânico, porém, revela que a influência de Trump se manifesta de formas diferentes. Nigel Farage, veterano do Brexit e líder do Reform UK, está importando abertamente o estilo MAGA: ataques contra as elites e o “estado profundo”, discursos inflamados sobre imigração e promessas de “recuperar o país”. Seu partido avançou de forma contundente nas recentes eleições locais em 1º de maio. Tudo indica que não se trata apenas de protesto momentâneo: Farage está construindo, passo a passo, uma base nacional que desafia o duopólio partidário britânico.
Seu êxito revela que o trumpismo, longe de ser universalmente tóxico, encontra terreno fértil em sociedades que atravessam desafios econômicos, desilusão política e insegurança cultural. Se em alguns países Trump serve de espantalho, capaz de unir eleitores moderados contra o radicalismo; em outros, ele segue como referência para lideranças populistas.
A volta de Trump não significa, portanto, uma nova onda global de adesão automática ao trumpismo. Em muitos países, o republicano pode acelerar a rejeição a seu estilo de governar e até consolidar lideranças moderadas. Mas em outros ele continua sendo um símbolo poderoso para populistas “anti-globalistas” com tendências antidemocráticas que se apresentam como salvadores em tempos de incerteza.
Ainda é cedo para saber se o impacto de Trump no Brasil será semelhante ao observado no Canadá e na Austrália ou similar ao modelo britânico. No caso brasileiro, os sinais são ambíguos. Por um lado, Trump continua sendo uma figura de enorme visibilidade no debate público, e sua reemergência vem encorajando atores como Jair Bolsonaro e seus aliados. Desde 2018, o Brasil tem espelhado diversos aspectos da política norteamericana: da retórica antissistema à recusa em aceitar resultados eleitorais e à invasão de prédios públicos por apoiadores radicais. Eduardo Bolsonaro mudou-se para os EUA recentemente para reforçar vínculos com grupos trumpistas no país. Caso Trump ou figuras de alto perfil como Elon Musk tentem influenciar o processo eleitoral brasileiro no ano que vem, como o dono da Tesla fez recentemente na Alemanha, o impacto político pode ser profundo, seja fortalecendo, seja enfraquecendo seu candidato preferido.
A pergunta central para os próximos anos será: em quais países Trump funcionará como exemplo do que não se fazer e em quais continuará sendo visto como receita de sucesso político?
Raça é uma construção social?
Quando os cientistas revelaram o primeiro rascunho do Projeto Genoma Humano, há 25 anos, ele parecia dar a palavra final em relação a alguns mitos ultrapassados sobre raça.
O projeto forneceu evidências definitivas de que os grupos raciais não têm base biológica. Na verdade, há mais variação genética dentro dos grupos raciais do que entre eles. A raça, como a iniciativa mostrou, é uma construção social.
Apesar desta descoberta fundamental, que só foi reforçada com o avanço da pesquisa sobre genomas humanos, a raça e a etnia ainda são usadas com frequência para categorizar as populações humanas como grupos biológicos distintos.
São visões que podem ser encontradas circulando na pseudociência das redes sociais, mas também ainda se infiltram na pesquisa científica e nos sistemas de saúde.
É ainda mais preocupante quando este pensamento chega aos corredores do poder.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seu governo não escondem sua rejeição a vários aspectos da visão científica do mundo.
Desde que retornou à Casa Branca, ele fez cortes drásticos no financiamento científico para pesquisas biomédicas e climáticas, mas em uma ordem executiva recente, Trump mirou no que a maioria dos cientistas agora considera como uma realidade biológica.
Intitulado "Restaurando a verdade e a sanidade na história americana", o decreto presidencial, assinado por Trump, teve como alvo uma exposição chamada A forma do poder: histórias de raça e escultura americana no Museu de Arte Americana do Instituto Smithsonian.
A ordem executiva faz parte de uma tentativa mais ampla de moldar a cultura americana, eliminando "ideologias impróprias, divisivas ou antiamericanas" dos museus do instituto.
Ela afirma: "Os museus da capital da nossa nação devem ser lugares onde as pessoas vão para aprender — não para serem submetidas a doutrinação ideológica ou narrativas divisivas que distorcem nossa história compartilhada."
A exposição em si é criticada no texto por promover a ideia de que "a raça não é uma realidade biológica, mas uma construção social, afirmando que 'a raça é uma invenção humana'".
A ordem executiva apresenta a exposição como um exemplo de uma mudança "prejudicial e opressiva" na narrativa que retrata os valores americanos.
Este é o ponto em que pessoas como eu, um geneticista especializado na história da ciência racial, ficam um pouco irritadas.
A questão aqui é que a frase citada pelo Instituto Smithsonian está 100% correta.
Isso não é controverso nem na ciência nem na história.
A variação humana é, obviamente, bastante real. As pessoas são diferentes, e podemos ver essas diferenças na pigmentação da pele, na cor e na textura do cabelo e em outras características físicas.
Essas diferenças se agrupam em locais ao redor do mundo: pessoas da mesma região, em média, são mais parecidas entre si do que com pessoas de outras áreas — até aí, tudo óbvio.
No século 18, estas características foram os principais fatores determinantes de uma nova forma de categorizar os seres humanos em termos supostamente científicos.
O botânico sueco Karl Linnaeus é considerado legitimamente como o pai da biologia moderna, uma vez nos forneceu o sistema de classificação que usamos até hoje: gênero e espécie.
Todo ser vivo é nomeado de acordo com este sistema — por exemplo, a bactéria Escherichia coli, o leão, Panthera leo, ou o Gorilla gorilla, que provavelmente dispensa apresentações. Nós somos Homo sapiens — pessoas sábias.
Mas em sua obra fundamental, intitulada Systemae Naturae, Linnaeus introduziu outro nível de classificação para nós, designado principalmente pela mais visível das características humanas: a pigmentação.
Linnaeus estabeleceu quatro tipos de seres humanos, agrupados por massas terrestres continentais: Asiaticus — pessoas com "pele amarela" e cabelo liso preto; Americanus — indígenas americanos, com "pele vermelha", e também cabelo liso preto; Africanus — pessoas de "pele preta" e cabelo crespo; e Europaeus — de "pele branca" com olhos azuis.
Estas designações são claramente absurdas — nenhuma das cores é precisa, mesmo se você adotasse a visão obviamente incorreta de que milhões de pessoas compartilham os mesmos tons de pele, inclusive dentro destas categorias.
Mas as raízes das designações raciais que usamos ainda hoje são visíveis nesses rótulos.
Alguns destes termos deixaram de ser aceitos socialmente, e são considerados racistas. Mas ainda usamos "negro" e "branco" para descrever milhões de pessoas, nenhuma das quais realmente tem pele negra ou branca.
Mesmo que esse esquema de cores fosse verdadeiro, as descrições originais de Linnaeus apenas começaram com características físicas.
O que ele incluiu em edições posteriores do Systemae Naturae, que se tornou a base do racismo científico, foram retratos de comportamentos.
Os Asiaticus foram descritos como "arrogantes, gananciosos e regidos por opiniões", enquanto os Americanus foram rotulados como "teimosos, fervorosos e regidos pelos costumes".
As mulheres Africanus foram descritas como "sem vergonha", enquanto ambos os sexos foram considerados "astutos, preguiçosos e regidos pelo capricho".
Ele descreveu os Europaeus como "gentis, perspicazes, inventivos e regidos por leis".
Por qualquer definição e em qualquer época, estas afirmações são racistas e totalmente incorretas.
É claro que, ao examinar a história, devemos ter cuidado ao julgar as pessoas do passado com base em nossos próprios padrões.
Mas, como texto fundamental da biologia moderna, a introdução de um sistema de classificação para os seres humanos que é absurdo, racista e, acima de tudo, hierárquico, deixaria uma marca indelével nos séculos seguintes.
Nos 200 anos seguintes, muitos homens buscaram refinar essas categorias com novas métricas, incluindo interpretações pseudocientíficas da craniometria, ou medidas do crânio.
Eles nunca chegaram a uma resposta definitiva sobre quantas raças existem — nenhuma das características que estavam sendo usadas é imutável nem exclusiva das pessoas para as quais elas eram supostamente essenciais.
Chamamos esta ideologia de "essencialismo racial". Mas todos os vários esquemas colocavam os europeus brancos como superiores a todos os outros.
Foi o biólogo Charles Darwin quem primeiro começou a desconstruir essas ideias, reconhecendo em seu livro de 1871, A Origem do Homem, que havia muito mais continuidade nas características entre pessoas que haviam sido designadas como raças distintas.
No início do século 20, a biologia molecular entrou em cena, e a era da genética desmantelou o conceito biológico de raça.
Quando começamos a analisar como os genes são compartilhados em famílias e populações, vimos que as semelhanças de fato se aglomeram em grupos, mas esses agrupamentos não se alinham com as tentativas de longa data de classificar as raças. A verdadeira métrica da diferença humana é a nível genético.
No século 20, quando começamos a desvendar nossos genomas, e a observar como as pessoas são semelhantes e diferentes em relação ao DNA, vimos que os termos em uso há vários séculos tinham pouca relação significativa com a genética subjacente.
Embora apenas uma pequena porcentagem do nosso DNA seja diferente entre os indivíduos, o genoma é tão grande e complexo que há uma grande diversidade.
Os geneticistas ainda estão trabalhando para desvendar como isso altera a saúde das pessoas, por exemplo.
Mas essas diferenças genéticas não se definem de acordo com o que chamamos de raça. Elas seguem linhagens ancestrais, podem diferir de acordo com a localização geográfica e podem ser rastreadas por meio de padrões históricos de migração.
O que sabemos agora é que há mais diversidade genética em pessoas de ascendência africana recente do que no resto do mundo junto.
Pegue duas pessoas, por exemplo, da Etiópia e da Namíbia, e elas serão mais diferentes entre si a nível genético do que uma delas é em relação a um europeu branco, ou até mesmo um japonês, um inuíte ou um indiano.
Isso inclui os genes que estão envolvidos na pigmentação.
No entanto, por razões históricas, continuamos a nos referir tanto aos etíopes quanto aos namíbios sob a definição de raça "negra".
Vejamos o exemplo dos afro-americanos, pessoas que descendem em grande parte de africanos escravizados levados para o Novo Mundo.
O sequenciamento dos genomas dos negros americanos revela ecos da história da escravidão transatlântica.
Eles não só misturaram a ascendência genética de alguns países da África Ocidental de onde seus ancestrais foram retirados, mas também quantidades significativas de DNA de europeus brancos.
Isso reflete o fato de que os proprietários de pessoas escravizadas mantinham relações sexuais — muitas das quais não eram consensuais — com escravizados.
Portanto, a simples categorização dos descendentes dos escravizados como "negros" também não faz sentido do ponto de vista biológico.
Eles são geneticamente diversos por si só, e diferentes dos ancestrais africanos dos quais descendem. Colocá-los juntos não faz sentido do ponto de vista científico.
Portanto, é por consenso, uso e história que continuamos a usar o termo "negro". Isso é o que queremos dizer com uma construção social.
O conceito de raça tem pouca utilidade como taxonomia biológica. Mas é extremamente importante do ponto de vista social e cultural.
As construções sociais são a forma como o mundo funciona: dinheiro e tempo também são construídos socialmente.
O valor de uma libra ou dólar é aplicado em relação a bens e serviços. O tempo passa de forma infalível, mas horas e minutos são unidades totalmente arbitrárias.
Portanto, embora a raça não seja biologicamente significativa, ela tem consequências biologicamente significativas.
O impacto da maioria das doenças está relacionado à pobreza. Como as pessoas com ascendência de minorias étnicas tendem a apresentar níveis mais baixos de status socioeconômico, as doenças tendem a afetá-las de forma mais grave.
Isso é verdade em todas os aspectos, mas ficou evidente logo no início da pandemia de covid-19. Negros, sul-asiáticos e, nos Estados Unidos, hispânicos foram desproporcionalmente infectados e morreram em decorrência da doença.
A imprensa imediatamente começou a procurar um motivo que materializasse a versão biológica da raça, às vezes com foco no metabolismo da vitamina D, que está ligado à produção de melanina e tem efeitos sobre infecções virais.
Alguns estudos mostraram que níveis mais baixos de vitamina D estavam de fato associados à suscetibilidade à infecção por covid-19 entre os negros. Mas isso é uma correlação, não uma causa.
Por trás de qualquer pequena diferença biológica, estão causas muito mais fortes: enquanto muitos de nós estávamos confinados em casa, os trabalhadores da linha de frente do NHS (sistema público de saúde britânico), as pessoas que limpam nosso lixo e dirigem nossos ônibus tinham maior probabilidade de pertencer a minorias étnicas.
Elas simplesmente tinham um risco maior de serem expostas e, portanto, infectadas pelo vírus. Combine isso com o fato de que os grupos minoritários têm maior probabilidade de viver em moradias urbanas densas e multigeracionais, e a suposta suscetibilidade biológica desaparece.
É por isso que a genética desempenha um papel tão importante no desmantelamento de uma justificativa científica da raça e na compreensão do próprio racismo.
E é por isso que a recente declaração da Casa Branca está preocupando muitos na comunidade científica.
Trump fala com frequência sobre aspectos da genética para defender argumentos políticos. Uma opinião que ele manifestou repetidamente é que algumas pessoas, e de forma previsível, ele próprio, são geneticamente superiores.
"Vocês têm bons genes, vocês sabem disso, certo?", ele disse em setembro de 2020 durante um comício em Minnesota, estado americano com mais de 80% de população branca.
"Vocês têm bons genes. Muito disso tem a ver com os genes, não é, vocês não acreditam? Vocês têm bons genes em Minnesota."
Da mesma forma, na bem-sucedida campanha de 2024, ele denunciou os imigrantes como tendo "genes ruins".
É difícil para alguém que estuda genes — e a estranha e, às vezes, perturbadora história da genética — entender até mesmo o que pode constituir um gene "bom" ou "ruim".
Nossa história pode ser perniciosa, mas a trajetória da genética tem sido uma que tende ao progresso e à equidade para todos, conforme consagrado na Declaração de Independência dos Estados Unidos.
O projeto forneceu evidências definitivas de que os grupos raciais não têm base biológica. Na verdade, há mais variação genética dentro dos grupos raciais do que entre eles. A raça, como a iniciativa mostrou, é uma construção social.
Apesar desta descoberta fundamental, que só foi reforçada com o avanço da pesquisa sobre genomas humanos, a raça e a etnia ainda são usadas com frequência para categorizar as populações humanas como grupos biológicos distintos.
São visões que podem ser encontradas circulando na pseudociência das redes sociais, mas também ainda se infiltram na pesquisa científica e nos sistemas de saúde.
É ainda mais preocupante quando este pensamento chega aos corredores do poder.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seu governo não escondem sua rejeição a vários aspectos da visão científica do mundo.
Desde que retornou à Casa Branca, ele fez cortes drásticos no financiamento científico para pesquisas biomédicas e climáticas, mas em uma ordem executiva recente, Trump mirou no que a maioria dos cientistas agora considera como uma realidade biológica.
Intitulado "Restaurando a verdade e a sanidade na história americana", o decreto presidencial, assinado por Trump, teve como alvo uma exposição chamada A forma do poder: histórias de raça e escultura americana no Museu de Arte Americana do Instituto Smithsonian.
A ordem executiva faz parte de uma tentativa mais ampla de moldar a cultura americana, eliminando "ideologias impróprias, divisivas ou antiamericanas" dos museus do instituto.
Ela afirma: "Os museus da capital da nossa nação devem ser lugares onde as pessoas vão para aprender — não para serem submetidas a doutrinação ideológica ou narrativas divisivas que distorcem nossa história compartilhada."
A exposição em si é criticada no texto por promover a ideia de que "a raça não é uma realidade biológica, mas uma construção social, afirmando que 'a raça é uma invenção humana'".
A ordem executiva apresenta a exposição como um exemplo de uma mudança "prejudicial e opressiva" na narrativa que retrata os valores americanos.
Este é o ponto em que pessoas como eu, um geneticista especializado na história da ciência racial, ficam um pouco irritadas.
A questão aqui é que a frase citada pelo Instituto Smithsonian está 100% correta.
Isso não é controverso nem na ciência nem na história.
A variação humana é, obviamente, bastante real. As pessoas são diferentes, e podemos ver essas diferenças na pigmentação da pele, na cor e na textura do cabelo e em outras características físicas.
Essas diferenças se agrupam em locais ao redor do mundo: pessoas da mesma região, em média, são mais parecidas entre si do que com pessoas de outras áreas — até aí, tudo óbvio.
No século 18, estas características foram os principais fatores determinantes de uma nova forma de categorizar os seres humanos em termos supostamente científicos.
O botânico sueco Karl Linnaeus é considerado legitimamente como o pai da biologia moderna, uma vez nos forneceu o sistema de classificação que usamos até hoje: gênero e espécie.
Todo ser vivo é nomeado de acordo com este sistema — por exemplo, a bactéria Escherichia coli, o leão, Panthera leo, ou o Gorilla gorilla, que provavelmente dispensa apresentações. Nós somos Homo sapiens — pessoas sábias.
Mas em sua obra fundamental, intitulada Systemae Naturae, Linnaeus introduziu outro nível de classificação para nós, designado principalmente pela mais visível das características humanas: a pigmentação.
Linnaeus estabeleceu quatro tipos de seres humanos, agrupados por massas terrestres continentais: Asiaticus — pessoas com "pele amarela" e cabelo liso preto; Americanus — indígenas americanos, com "pele vermelha", e também cabelo liso preto; Africanus — pessoas de "pele preta" e cabelo crespo; e Europaeus — de "pele branca" com olhos azuis.
Estas designações são claramente absurdas — nenhuma das cores é precisa, mesmo se você adotasse a visão obviamente incorreta de que milhões de pessoas compartilham os mesmos tons de pele, inclusive dentro destas categorias.
Mas as raízes das designações raciais que usamos ainda hoje são visíveis nesses rótulos.
Alguns destes termos deixaram de ser aceitos socialmente, e são considerados racistas. Mas ainda usamos "negro" e "branco" para descrever milhões de pessoas, nenhuma das quais realmente tem pele negra ou branca.
Mesmo que esse esquema de cores fosse verdadeiro, as descrições originais de Linnaeus apenas começaram com características físicas.
O que ele incluiu em edições posteriores do Systemae Naturae, que se tornou a base do racismo científico, foram retratos de comportamentos.
Os Asiaticus foram descritos como "arrogantes, gananciosos e regidos por opiniões", enquanto os Americanus foram rotulados como "teimosos, fervorosos e regidos pelos costumes".
As mulheres Africanus foram descritas como "sem vergonha", enquanto ambos os sexos foram considerados "astutos, preguiçosos e regidos pelo capricho".
Ele descreveu os Europaeus como "gentis, perspicazes, inventivos e regidos por leis".
Por qualquer definição e em qualquer época, estas afirmações são racistas e totalmente incorretas.
É claro que, ao examinar a história, devemos ter cuidado ao julgar as pessoas do passado com base em nossos próprios padrões.
Mas, como texto fundamental da biologia moderna, a introdução de um sistema de classificação para os seres humanos que é absurdo, racista e, acima de tudo, hierárquico, deixaria uma marca indelével nos séculos seguintes.
Nos 200 anos seguintes, muitos homens buscaram refinar essas categorias com novas métricas, incluindo interpretações pseudocientíficas da craniometria, ou medidas do crânio.
Eles nunca chegaram a uma resposta definitiva sobre quantas raças existem — nenhuma das características que estavam sendo usadas é imutável nem exclusiva das pessoas para as quais elas eram supostamente essenciais.
Chamamos esta ideologia de "essencialismo racial". Mas todos os vários esquemas colocavam os europeus brancos como superiores a todos os outros.
Foi o biólogo Charles Darwin quem primeiro começou a desconstruir essas ideias, reconhecendo em seu livro de 1871, A Origem do Homem, que havia muito mais continuidade nas características entre pessoas que haviam sido designadas como raças distintas.
No início do século 20, a biologia molecular entrou em cena, e a era da genética desmantelou o conceito biológico de raça.
Quando começamos a analisar como os genes são compartilhados em famílias e populações, vimos que as semelhanças de fato se aglomeram em grupos, mas esses agrupamentos não se alinham com as tentativas de longa data de classificar as raças. A verdadeira métrica da diferença humana é a nível genético.
No século 20, quando começamos a desvendar nossos genomas, e a observar como as pessoas são semelhantes e diferentes em relação ao DNA, vimos que os termos em uso há vários séculos tinham pouca relação significativa com a genética subjacente.
Embora apenas uma pequena porcentagem do nosso DNA seja diferente entre os indivíduos, o genoma é tão grande e complexo que há uma grande diversidade.
Os geneticistas ainda estão trabalhando para desvendar como isso altera a saúde das pessoas, por exemplo.
Mas essas diferenças genéticas não se definem de acordo com o que chamamos de raça. Elas seguem linhagens ancestrais, podem diferir de acordo com a localização geográfica e podem ser rastreadas por meio de padrões históricos de migração.
O que sabemos agora é que há mais diversidade genética em pessoas de ascendência africana recente do que no resto do mundo junto.
Pegue duas pessoas, por exemplo, da Etiópia e da Namíbia, e elas serão mais diferentes entre si a nível genético do que uma delas é em relação a um europeu branco, ou até mesmo um japonês, um inuíte ou um indiano.
Isso inclui os genes que estão envolvidos na pigmentação.
No entanto, por razões históricas, continuamos a nos referir tanto aos etíopes quanto aos namíbios sob a definição de raça "negra".
Vejamos o exemplo dos afro-americanos, pessoas que descendem em grande parte de africanos escravizados levados para o Novo Mundo.
O sequenciamento dos genomas dos negros americanos revela ecos da história da escravidão transatlântica.
Eles não só misturaram a ascendência genética de alguns países da África Ocidental de onde seus ancestrais foram retirados, mas também quantidades significativas de DNA de europeus brancos.
Isso reflete o fato de que os proprietários de pessoas escravizadas mantinham relações sexuais — muitas das quais não eram consensuais — com escravizados.
Portanto, a simples categorização dos descendentes dos escravizados como "negros" também não faz sentido do ponto de vista biológico.
Eles são geneticamente diversos por si só, e diferentes dos ancestrais africanos dos quais descendem. Colocá-los juntos não faz sentido do ponto de vista científico.
Portanto, é por consenso, uso e história que continuamos a usar o termo "negro". Isso é o que queremos dizer com uma construção social.
O conceito de raça tem pouca utilidade como taxonomia biológica. Mas é extremamente importante do ponto de vista social e cultural.
As construções sociais são a forma como o mundo funciona: dinheiro e tempo também são construídos socialmente.
O valor de uma libra ou dólar é aplicado em relação a bens e serviços. O tempo passa de forma infalível, mas horas e minutos são unidades totalmente arbitrárias.
Portanto, embora a raça não seja biologicamente significativa, ela tem consequências biologicamente significativas.
O impacto da maioria das doenças está relacionado à pobreza. Como as pessoas com ascendência de minorias étnicas tendem a apresentar níveis mais baixos de status socioeconômico, as doenças tendem a afetá-las de forma mais grave.
Isso é verdade em todas os aspectos, mas ficou evidente logo no início da pandemia de covid-19. Negros, sul-asiáticos e, nos Estados Unidos, hispânicos foram desproporcionalmente infectados e morreram em decorrência da doença.
A imprensa imediatamente começou a procurar um motivo que materializasse a versão biológica da raça, às vezes com foco no metabolismo da vitamina D, que está ligado à produção de melanina e tem efeitos sobre infecções virais.
Alguns estudos mostraram que níveis mais baixos de vitamina D estavam de fato associados à suscetibilidade à infecção por covid-19 entre os negros. Mas isso é uma correlação, não uma causa.
Por trás de qualquer pequena diferença biológica, estão causas muito mais fortes: enquanto muitos de nós estávamos confinados em casa, os trabalhadores da linha de frente do NHS (sistema público de saúde britânico), as pessoas que limpam nosso lixo e dirigem nossos ônibus tinham maior probabilidade de pertencer a minorias étnicas.
Elas simplesmente tinham um risco maior de serem expostas e, portanto, infectadas pelo vírus. Combine isso com o fato de que os grupos minoritários têm maior probabilidade de viver em moradias urbanas densas e multigeracionais, e a suposta suscetibilidade biológica desaparece.
É por isso que a genética desempenha um papel tão importante no desmantelamento de uma justificativa científica da raça e na compreensão do próprio racismo.
E é por isso que a recente declaração da Casa Branca está preocupando muitos na comunidade científica.
Trump fala com frequência sobre aspectos da genética para defender argumentos políticos. Uma opinião que ele manifestou repetidamente é que algumas pessoas, e de forma previsível, ele próprio, são geneticamente superiores.
"Vocês têm bons genes, vocês sabem disso, certo?", ele disse em setembro de 2020 durante um comício em Minnesota, estado americano com mais de 80% de população branca.
"Vocês têm bons genes. Muito disso tem a ver com os genes, não é, vocês não acreditam? Vocês têm bons genes em Minnesota."
Da mesma forma, na bem-sucedida campanha de 2024, ele denunciou os imigrantes como tendo "genes ruins".
É difícil para alguém que estuda genes — e a estranha e, às vezes, perturbadora história da genética — entender até mesmo o que pode constituir um gene "bom" ou "ruim".
Nossa história pode ser perniciosa, mas a trajetória da genética tem sido uma que tende ao progresso e à equidade para todos, conforme consagrado na Declaração de Independência dos Estados Unidos.
Impetuosidade dos cem primeiros dias de Trump começa a mostrar rachaduras
Final de julho de 1980, Aeroporto Internacional Sheremetyevo, em Moscou. O empresário Roberto Civita, editor das revistas da Editora Abril, estava entre os milhares de estrangeiros atraídos pela oportunidade de cruzar a Cortina de Ferro e assistir aos Jogos Olímpicos na União Soviética. Além de gostar de esportes, Civita queria observar como o colosso comunista lidaria com o evento. Desembarcou despreocupado com meia dúzia de exemplares da revista Veja na bagagem. Era uma edição sobre os Jogos, fresquinha da gráfica, que trazia a imagem do líder soviético Leonid Brejnev na capa. Estava orgulhoso e pretendia mostrá-la aos jornalistas que faziam a cobertura olímpica em Moscou.
Péssima ideia. As revistas estampavam a caricatura de Brejnev com feições de urso feroz, e o tempo fechou com os agentes da imigração. Não só confiscaram o material e mais alguns extras, como retiveram o viajante para explicações. Segunda ideia péssima de Civita: argumentou não ser mero leitor, mas representante do maior grupo editorial brasileiro que publicava aquelas revistas. Para ouvidos soviéticos, um capitalista incontrito. O não diálogo foi bastante tenso, contaria depois.
Nesta semana, o episódio de 45 anos atrás saltou do baú da memória. Isso porque, em julho de 2026, a nação americana celebrará os 250 anos da assinatura da Declaração de Independência, festança que pretende ter impacto comparável ao que foram os Jogos de Moscou para a URSS. A julgar pelo clima de suspeição e arbítrio já demonstrado neste início de governo, a recepção a visitantes de determinadas origens, posições políticas ou ideológicas, currículo ou profissões, pode não ser do gosto das autoridades trumpistas. Dias atrás o site da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil e sua página no X de Elon Musk fizeram a seguinte postagem bilíngue:
— TODOS devem estar de sobreaviso. Se você é um visitante em nosso país, comporte-se como tal. Nosso rigoroso programa de verificação em redes sociais para identificar riscos à segurança nacional e à segurança pública nunca para. O U.S. Citizenship and Immigration Services está atento para encontrar qualquer coisa on-line que represente uma ameaça à nossa nação e a nosso modo de vida. Green cards e vistos são um privilégio, e não um direito.
Logo nos primeiros dias como presidente, Trump já demonstrou sua capacidade e determinação em fazer desaparecer pessoas que cometeram ou não algum crime, sendo ou não cidadãos legalmente documentados. Convém, portanto, mesmo para viajantes desavisados, não desembarcar nos Estados Unidos com o celular recheado de opiniões mordazes sobre o reinado trumpista.
Uma segunda postagem no site da embaixada, do mesmo dia 30 de abril, surpreendeu pelo tema. Ela informa que uma equipe do Departamento de Estado no consulado americano em Porto Alegre (RS) realizou um exercício de treinamento sobre armas de destruição em massa contra “uma possível ameaça química, biológica, nuclear ou explosiva”. Caramba. Talvez seja melhor nem se interessar pelos festejos de 2026 e, assim, evitar sobressaltos.
Trump, convenhamos, é único. Em 2021, foi enxotado de Washington pelo voto, com dois impeachments no currículo, abandonado por aliados e banido de suas plataformas sociais preferidas. Um pária, em suma. Sua ressurreição política, alvo de exaustiva, invejável (e saborosa) reportagem da revista The Atlantic (“I run the country and the world”), explica por que ele, hoje, se sente invencível. A ponto de desmantelar, com voracidade e velocidade inauditas, quase todos os anteparos de proteção à integridade pública do governo federal. Dezenove agências reguladoras foram evisceradas, abrindo caminho para um caminhão de conflitos de interesses, reversão de políticas voltadas ao bem comum e negociatas sem escrutínio, privadas, da Organização Trump com seletos governos estrangeiros.
A noção de governo como bem público democratizante e instituição de responsabilidade social vem sendo metodicamente destruída, constata Henry Giroux, acadêmico distinto Paulo Freire em Pedagogia Crítica na Universidade McMaster, do Canadá. No Estado trumpista, o bem público passou a ser tratado como inimigo, sustenta.
Mas a impetuosidade dos cem primeiros dias já começa a mostrar as primeiras rachaduras. Segundo dados de 191 pesquisas sobre a popularidade de Trump desde a posse, 119 apontam crescimento de quase dois dígitos na desaprovação — a média de aprovação caiu para 44% segundo o levantamento, feito pelo laboratório de dados do New York Times.
Para Giroux, diante da apatia comatosa do Partido Democrata, seria imperativo uma ação da sociedade civil. “O fascismo se alimenta de desespero, cinismo e silêncio, mas a História ensina o contrário”, diz ele. É quando pessoas comuns se recusam a ficar em silêncio, quando ensinam, criam, marcham e falam com clareza feroz, que os alicerces do poder indevido começam a ruir.
Faltam 1.536 dias para o término do mandato regulamentar de Trump.
Péssima ideia. As revistas estampavam a caricatura de Brejnev com feições de urso feroz, e o tempo fechou com os agentes da imigração. Não só confiscaram o material e mais alguns extras, como retiveram o viajante para explicações. Segunda ideia péssima de Civita: argumentou não ser mero leitor, mas representante do maior grupo editorial brasileiro que publicava aquelas revistas. Para ouvidos soviéticos, um capitalista incontrito. O não diálogo foi bastante tenso, contaria depois.
Nesta semana, o episódio de 45 anos atrás saltou do baú da memória. Isso porque, em julho de 2026, a nação americana celebrará os 250 anos da assinatura da Declaração de Independência, festança que pretende ter impacto comparável ao que foram os Jogos de Moscou para a URSS. A julgar pelo clima de suspeição e arbítrio já demonstrado neste início de governo, a recepção a visitantes de determinadas origens, posições políticas ou ideológicas, currículo ou profissões, pode não ser do gosto das autoridades trumpistas. Dias atrás o site da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil e sua página no X de Elon Musk fizeram a seguinte postagem bilíngue:
— TODOS devem estar de sobreaviso. Se você é um visitante em nosso país, comporte-se como tal. Nosso rigoroso programa de verificação em redes sociais para identificar riscos à segurança nacional e à segurança pública nunca para. O U.S. Citizenship and Immigration Services está atento para encontrar qualquer coisa on-line que represente uma ameaça à nossa nação e a nosso modo de vida. Green cards e vistos são um privilégio, e não um direito.
Logo nos primeiros dias como presidente, Trump já demonstrou sua capacidade e determinação em fazer desaparecer pessoas que cometeram ou não algum crime, sendo ou não cidadãos legalmente documentados. Convém, portanto, mesmo para viajantes desavisados, não desembarcar nos Estados Unidos com o celular recheado de opiniões mordazes sobre o reinado trumpista.
Uma segunda postagem no site da embaixada, do mesmo dia 30 de abril, surpreendeu pelo tema. Ela informa que uma equipe do Departamento de Estado no consulado americano em Porto Alegre (RS) realizou um exercício de treinamento sobre armas de destruição em massa contra “uma possível ameaça química, biológica, nuclear ou explosiva”. Caramba. Talvez seja melhor nem se interessar pelos festejos de 2026 e, assim, evitar sobressaltos.
Trump, convenhamos, é único. Em 2021, foi enxotado de Washington pelo voto, com dois impeachments no currículo, abandonado por aliados e banido de suas plataformas sociais preferidas. Um pária, em suma. Sua ressurreição política, alvo de exaustiva, invejável (e saborosa) reportagem da revista The Atlantic (“I run the country and the world”), explica por que ele, hoje, se sente invencível. A ponto de desmantelar, com voracidade e velocidade inauditas, quase todos os anteparos de proteção à integridade pública do governo federal. Dezenove agências reguladoras foram evisceradas, abrindo caminho para um caminhão de conflitos de interesses, reversão de políticas voltadas ao bem comum e negociatas sem escrutínio, privadas, da Organização Trump com seletos governos estrangeiros.
A noção de governo como bem público democratizante e instituição de responsabilidade social vem sendo metodicamente destruída, constata Henry Giroux, acadêmico distinto Paulo Freire em Pedagogia Crítica na Universidade McMaster, do Canadá. No Estado trumpista, o bem público passou a ser tratado como inimigo, sustenta.
Mas a impetuosidade dos cem primeiros dias já começa a mostrar as primeiras rachaduras. Segundo dados de 191 pesquisas sobre a popularidade de Trump desde a posse, 119 apontam crescimento de quase dois dígitos na desaprovação — a média de aprovação caiu para 44% segundo o levantamento, feito pelo laboratório de dados do New York Times.
Para Giroux, diante da apatia comatosa do Partido Democrata, seria imperativo uma ação da sociedade civil. “O fascismo se alimenta de desespero, cinismo e silêncio, mas a História ensina o contrário”, diz ele. É quando pessoas comuns se recusam a ficar em silêncio, quando ensinam, criam, marcham e falam com clareza feroz, que os alicerces do poder indevido começam a ruir.
Faltam 1.536 dias para o término do mandato regulamentar de Trump.
Assinar:
Postagens (Atom)