domingo, 5 de fevereiro de 2017

Para que serve a verdade?

O primeiro efeito positivo da eleição de Donald Trump foi filosófico: fez com que imensa gente, um pouco por todo o mundo, começasse a discutir a verdade. O que é a verdade? Para que serve a verdade? Existe a verdade?

O segundo efeito positivo está diretamente relacionado com o primeiro, e aconteceu depois que Kellyanne Conway, conselheira de Donald Trump, justificou a descarada mentira de Sean Spicer, secretário de imprensa da Casa Branca, o qual afirmou que o novo presidente americano teve mais gente a assistir à sua tomada de posse do que qualquer outro antes dele na história do país; Spicer não mentiu, explicou Kellyanne — ele apenas defendeu “fatos alternativos”. Dezenas de comentadores notaram nos dias seguintes que a expressão poderia ter saído da pena genial de George Orwell, enquanto escrevia “1984”. Foi o suficiente para que os leitores se voltassem a interessar pelo romance de Orwell. O livro está há vários dias no topo da tabela de vendas da Amazon.


Orwell escreveu “1984” em 1948, na Ilha de Jura, na Escócia, enquanto lutava contra uma tuberculose tenaz. Publicado no ano seguinte, o livro conheceu um imenso sucesso. É sempre difícil explicar os motivos por detrás do triunfo de um livro. Acredito, contudo, que neste caso tem muito a ver com o desejo de compreender como se estrutura e se afirma uma sociedade totalitária, em pleno apogeu da distopia comunista. No romance de Orwell, o controle e a manipulação da informação assumem um papel essencial em todo o processo. No vasto país que Orwell imaginou, totalmente sujeito ao “Grande Irmão”, existem apenas quatro ministérios: o Ministério da Paz, responsável pela guerra; o Ministério do Amor, responsável por manter a todo o custo a lei e a ordem; o Ministério da Pujança, responsável pelas questões econômicas; e, finalmente, o todo poderoso Ministério da Verdade, que tem a seu cargo a informação, recriada a partir de “fatos alternativos”.

A obra suprema do Ministério da Verdade consiste na Novafala, um idioma que encolhe à medida que se expande: “É a única língua do mundo cujo vocabulário se reduz a cada ano”, lembra a certa altura um dos burocratas do partido. O objetivo, explica o mesmo burocrata, é estreitar o âmbito do pensamento: “No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo.”

A impressão com que fico sempre que escuto Donald Trump é que ele se comunica numa versão bastante avançada da Novafala. O atual presidente americano já está lá, em “1984”, ou mesmo além, tendo reduzido a língua inglesa a meia dúzia de adjetivos elementares — triste, grande, mau, horrível, fabuloso —, e a uns poucos e pobres verbos e substantivos, de tal forma que já não incorre no risco de manifestar, por descuido, um mínimo clarão de inteligência. Creio que nunca se viu, no mundo da política e do espetáculo, que, no caso, é a mesma coisa, uma indigência de pensamento tão sólida, tão loira, e tão contente de o ser.

Trump não leu “1984”. Trump não lê. Se lesse poderíamos ser levados a pensar que teria visto na distopia de Orwell não um alerta e uma denúncia dos sistemas totalitários, mas um manual de instruções para a destruição da democracia.

Voltemos à verdade. Afinal, por que importa distinguir a verdade de “fatos alternativos”? Ou não importa?

Desconfio da ideia de uma “verdade” única. Acredito que cada pessoa tem uma versão dos acontecimentos, e que a soma dessas versões nos aproxima da “verdade”. Convém, é claro, que as versões não sejam absolutamente desencontradas. O meu casaco pode ser verde para mim, verde escuro para outra pessoa, verde amarelado para uma terceira. Mas se alguém me vier dizer que esse mesmo casaco é cor-de-rosa desconfiarei ou da sua honestidade ou da sua capacidade em distinguir as cores. Por outro lado, convém que cada um de nós se mantenha fiel às respetivas versões. Ora, para Donald Trump o meu casaco verde não só é fabulosamente cor-de-rosa — se isso lhe convier — como pode passar a amarelo mal mudem as conveniências.

A ideia de que os políticos são naturalmente desonestos, da mesma forma que as lesmas são naturalmente gosmentas, é muitíssimo perigosa: implica uma capitulação da inteligência e da cidadania. A democracia está a falhar porque estamos a desistir dela. O grande desafio dos nossos dias é o de revitalizar a democracia. O de reinventar a democracia. Um dos primeiros passos é exigir mais de quem nos representa. É escolher melhor quem nos representa, de forma que a expressão “político desonesto” deixe de parecer uma redundância para se transformar num oxímoro.
José Eduardo Agualusa

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