terça-feira, 5 de novembro de 2024

Por que apoiadores de Trump também devem ter cautela se ele voltar ao poder

Não sei quem vencerá a eleição presidencial. Ninguém sabe. Mas há, obviamente, uma chance substancial de que Donald Trump retorne ao poder. Estou preocupado com o nosso país e com o que minha própria vida seria sob um segundo mandato de Trump. E você também deveria estar.

O primeiro mandato de Trump, no qual nossa democracia permaneceu relativamente intacta, é um mau modelo para o que acontecerá se ele conseguir um segundo. As barreiras que o contiveram da última vez desapareceram. Se ele recuperar o poder, esta pode muito bem ser a última eleição mais ou menos livre e justa da América por um longo tempo.

E então? Alguns sugeriram que podemos estar caminhando para uma "autocracia suave" como a de Viktor Orban na Hungria, na qual o partido governante mantém o poder manipulando eleições, controlando os tribunais e silenciando a mídia, em vez de através de repressão violenta.

Deveríamos ter tanta sorte.


Há muitas razões para pensar que Trump e seus apoiadores mais fervorosos estão ansiosos para usar a violência contra seus oponentes: Quase quatro anos atrás, uma multidão violenta desceu sobre o Capitólio dos Estados Unidos e tentou reverter os resultados da última eleição presidencial. Mais recentemente, Trump, que chamou seus adversários políticos de "vermes", sugeriu usar nosso exército contra "o inimigo interno".

Na semana passada, ele criticou as visões belicistas de Liz Cheney —que endossou Kamala Harris— e então fantasiou: "vamos colocá-la com um rifle ali" e ver como ela se sentiria "quando as armas estivessem apontadas para o rosto dela". No domingo, em um comício, ele declarou que alguém tentando pegá-lo "teria que atirar através das notícias falsas e eu não me importo tanto com isso."

Também é importante perceber que Trump não precisaria usar o exército contra cidadãos americanos para criar um clima de medo e repressão. Tudo o que ele teria que fazer é tacitamente conceder permissão aos muitos extremistas que estão entre seus apoiadores para agir como vigilantes.

Ainda assim, você pode imaginar que, mesmo se a América se tornar "Magafield", você não estará pessoalmente em risco. Se é isso que você acredita, talvez queira reconsiderar.

No final, não importará se você não está vivendo ilegalmente nos EUA ou se é porto-riquenho ou um democrata vocal.

Você trabalha para uma organização de notícias? A menos que seu veículo tenha sido um torcedor fervoroso dele e de sua agenda, Trump considera você um "inimigo do povo". E o apoio deve ter sido alto; Trump até acusou a Fox News de ser "fraca e suave com os democratas."

Você trabalha em uma agência estatística do governo? Alegações falsas de que números que o Maga não gosta são fraudulentos agora são prática padrão republicana. Se, como sugerem pesquisas de economistas, as políticas de Trump se mostrarem altamente inflacionárias, eu não ficaria nem um pouco surpreso se houver uma purga no Bureau of Labor Statistics, com funcionários civis profissionais sendo forçados a sair e substituídos por leais que produzirão números mais favoráveis.

Você é bibliotecário? Não precisamos especular aqui: uma vez membros universalmente amados de suas comunidades, muitos bibliotecários já enfrentaram assédio e ameaças de direitistas que querem banir livros que não gostam. Espere que isso piore muito se Trump assumir o poder.

Você é médico? Agora que Trump diz que dará a Robert Kennedy Jr. um papel importante na política de saúde —"Vou deixá-lo enlouquecer na saúde", ele disse— em algum momento você pode estar se colocando em risco se, por exemplo, administrar vacinas ou até mesmo dar conselhos aos pacientes com base na melhor ciência médica.

Você é um empresário que tenta se manter fora da política? Mesmo que eu esteja errado ao supor que Trump seria pior que Orban, considere que grande parte da economia da Hungria foi tomada por capitalistas de compadrio com laços com o partido governante.

Você é bilionário? Você pode pensar que sua riqueza o protegerá. Na verdade, no entanto, isso o torna um alvo, e um alvo fácil, dada a amplitude de seus interesses comerciais. Alguns dos ultra-ricos parecem estar percebendo isso; minha impressão é que pelo menos alguns passaram da ganância (Trump vai cortar meus impostos) para o medo (é melhor não criticá-lo, ou ele pode retaliar).

Finalmente, você é um apoiador de longa data de Trump? Movimentos radicais que tomam o poder muitas vezes acabam devorando os seus próprios. Às vezes isso acontece porque eles não eram radicais o suficiente —eram como John Kelly, que foi um dos secretários de Segurança Interna de Trump e um de seus chefes de gabinete da Casa Branca, mas agora descreve Trump como "um autoritário" que "certamente se enquadra na definição geral de fascista."

Às vezes, no entanto, antigos apoiadores acabam punidos simplesmente porque estavam do lado errado de uma luta interna pelo poder.

Em suma, a América pode estar prestes a se tornar um lugar muito sombrio. E aqueles que imaginam que suas vidas simplesmente continuariam como antes, intocadas de qualquer maneira significativa pelo potencial medo e caos, estão cometendo um grande erro.

Pensamento do Dia

 


Breve nota sobre a idolatria

A idolatria foi condenada por três religiões diferentes – e nem sempre convergentes – como um dos piores pecados que um ser humano pode cometer. A Bíblia, a Tora e o Alcorão convergem nisso sem a mais pequena reserva. O homem que idolatra não admira com fundamento: adora com fanatismo e vê, nos que ponham reservas a tão aquecida paixão, um inimigo arrogante, um desmancha-prazeres e um convencido. Quiçá um herético ou um infiel a abater. A idolatria renega o equilíbrio, a saúde mental e o sentido crítico.

Sobre a idolatria, o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, disse várias coisas saborosas, entre elas, esta: “O selvagem dobra-se diante ídolos de madeira e de pedra, o homem civilizado, diante de ídolos de carne e osso.”

A nossa vida intelectual, depois de quarenta e seis anos de democracia e de muitas décadas de saudável pedagogia libertadora de um António Sérgio, vive ainda no comprimento de onda da mais provinciana e infecunda idolatria, como se torna evidente com a histeria obituária que por aí se despenha, de cada vez que se assinala o passamento de um vulto de algum modo mais destacado, no nosso meio cultural. A falta de perspectiva e de aconselhável comedimento que então nos assola é simplesmente assustadora. Uma avaliação honesta, modesta, comedida, e fora das ejaculações mais intemperadas é considerada inveja, mau feitio e desmancha-prazeres. O cronista A, o romancista B, o poeta C, o filósofo D são, no mínimo, verdadeiros gigantes, só que ninguém dá por eles, nos verdadeiros areópagos. Há nesta loucura não tão mansa como isso algo de muito doentio: uma espécie de sobrecompensação para a nossa pequenez e relativa pouca relevância internacional. Debita-se para aí uma ladainha de Bandarra, com promessas férvidas de triunfos que nos compensem de infortúnios pretéritos. Escrevemos então o melhor romance dos últimos cem anos, um poema tão grande como os Lusíadas e temos, entre nós, o melhor filósofo dos últimos três séculos ou mesmo de sempre. E fazemos uma festa com grande espalhafato, que só não nos torna mais ridículos porque ninguém, lá fora, dá por isso.

Na África do Sul, na língua Afikander, há uma palavra capitosa que significa um peixe considerado grande porque habita num lago pequeno. Se eu fosse linguista, inventava, em português, um vocábulo que se ajustasse a este conceito. Teríamos bom uso para ele.

O pior das idolatrias é que são um terrível entrave ao progresso do conhecimento. Este sempre se fez de um necessário acolhimento à contradição e ao encontrar sucessivo de melhores respostas para as nossas perplexidades. A admiração não faz mal, mas o embevecimento é de mau aviso. Além do mais, o idólatra tende a reduzir o diâmetro do foco da sua atenção: só vê o idolatrado e nada mais à sua volta ou para trás, numa espécie de “criacionismo” que a ciência de há muito rejeita.

Para terminar, direi que o Portugal de Bento Caraça, de Aniceto Monteiro, de Aurélio Quintanilha, de Tiago Oliveira, de António Sérgio, de Sílvio Lima, de Jaime Cortesão, de Raul Proença, de José Régio, de Rui Luis Gomes, de Abel Salazar, de Jorge de Sena e de tantos bons argonautas da Seara Nova não merece que lhe suceda um Portugalinho idólatra, provinciano, unânime e contente. Alguém dizia que um Professor é um cavalheiro de opinião diferente. Um verdadeiro pensador, um verdadeiro investigador, um verdadeiro artista criador é também isso mesmo: um cavalheiro de opinião diferente A idolatria não acolhe a opinião diferente e é sempre um triste sinal de atraso. Por mim, enquanto o vigor me não abandonar, terei sempre muito orgulho em pertencer à tribo dos cavalheiros de opinião diferente. Até porque, mesmo com a minha provecta idade, não quero ficar parado.

Eugénio Lisboa

Educar para a paz

É muito mais fácil educar os povos para a guerra do que para a paz. Para educar dentro do espírito bélico, basta apelar para os seus instintos mais primitivos. Educar para a paz implica ensinar a reconhecer o outro, a ouvir seus argumentos, a entender suas limitações, a negociar com ele, a fazer acordos. Essa dificuldade explica por que os pacifistas nunca contam com a força suficiente para ganhar… as guerras
José Saramago, "As palavras de Saramago"

A primeira classe também cai

A tortura de quem escreve para o público é a véspera, quando bate o fantasma da repetição. Desde anos atrás, toda a imprensa do mundo discorreu sobre um confuso conceito de “populismo” todos os dias do ano. Nomes como Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia) e Narendra Modi (Índia) se espicharam nos sofás de nossas salas e nada faz crer que tão cedo consigamos apontar-lhes o caminho da rua. A tentativa russa de massacrar a Ucrânia e a guerra de Israel contra os grupos terroristas mantidos pelo Irã vieram complementar e elevar à enésima potência a tortura do “populismo”.


No Brasil, temos vivido sob o fantasma da “crise fiscal”. Fantasma, sandice, dê-se-lhe o nome que se quiser, mas no fundo a questão é muito simples. É uma batalha diária para equilibrar a receita e a despesa, proeza quase irrealizável, uma vez que enchemos um prato da balança com gastança e desperdício e o outro com irresponsabilidade, miopia e falta de coragem para reformar a máquina do Estado. Esse quadro infesto, praticamente sinônimo de estagnação, já deveria ser suficiente para meter medo, não fora toda a tragédia que ele oculta. Discorrer sobre o sistema de ensino, a quase metade das residências sem conexão com as redes públicas de esgoto, e a chusma de quase desocupados que recebem supersalários em Brasília é perda de tempo. Nesta semana o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) afirmou que, no frigir dos ovos, “o tributo é o mesmo para assalariados e ultrarricos” ( Estadão, 30/10). Divulgou-se também que cerca de 1,5 milhão de habitantes da maior cidade do Brasil e da América do Sul mal consegue comer.

Crise fiscal: o termo indica que estamos nos contorcendo para obrigar a receita e a despesa a andarem juntas. Nossas autoridades, com as exceções de praxe, odeiam o capital privado, doméstico ou internacional, e se recusam a adotar um modelo econômico mais aberto ao exterior. Já seria surrealista se elas se desapegassem da fixação, originária da Revolução de 1930 e da ditadura varguista, de que um país só é autônomo e digno de respeito se conseguir promover o crescimento valendo-se basicamente de empresas públicas. No mês passado, o economista Maílson da Nóbrega e João Pedro Leme, ambos da Tendências Consultoria, publicaram neste jornal um primoroso artigo mostrando que nas condições atuais, e principalmente com as regras orçamentárias plantadas na Constituição de 1988, poderemos chegar a uma “severa crise fiscal” num prazo relativamente curto. Com essa formulação relativamente branda, os autores, consciente ou inconscientemente, indicaram que a crise decorrente de uma “crise severa” pode ser uma catástrofe social. Foi seguramente para nos trazer algum alívio que o economista Gustavo Franco, um dos pais do Real, sugeriu que a situação de médio prazo pode melhorar se devotarmos quantias bem maiores à área do saneamento. Así lo quiera Dios! O que não podemos é fugir de uma verdade que qualquer criança de 12 anos conhece: a primeira classe também cai. Não há notícia de uma aeronave cuja parte anterior tenha despencado sem levar consigo a da frente, com o piloto no seu lugar, conduzindo-a como sempre faz, voando lépido e fagueiro.

Parece-me essencial acrescentar uma consideração mais ampla ao que acima vai exposto. Existem fortes indícios de que nós, brasileiros, estamos perdendo uma parte importante de nossa capacidade de pensar. Em tempos idos, podíamos nos dar o direito de sermos ingênuos, pois toda a nossa mediocridade parecia ter aqui aportado nos porões das caravelas portuguesas. A lavoura canavieira produzia praticamente todo o açúcar de que o mundo demandava, os senhores de engenho constituíam uma primeira classe inexpugnável. Com o ouro foi um pouco diferente, mas depois o café reeditou o enredo canavieiro. Supriu café suficiente para satisfazer quase todo o mundo, mas não teve fôlego para sustentar a competição com outros centros produtores que surgiam por toda parte. O jeito foi o Estado bancar o estrago e encaixar os proprietários daqueles magníficos palacetes da Avenida Paulista nos altos escalões do Estado. Fórmula de pouca duração que deixou em seu rastro um grave conflito entre regiões produtoras e não produtoras e, finalmente, a contrafação batizada como Revolução de 1930.

Hoje, tentar compreender a mentalidade que emergiu de tudo isso parece nos causar tédio. Caminhando para lá e para cá como sonâmbulos, nós hoje nem nos damos conta de que o cenário externo não é reconfortante. Embora tenhamos escapado de uma recessão global em 2024-2025, o Panorama Econômico Global do Fundo Monetário Internacional (FMI) faz um enérgico alerta quanto aos riscos de baixar a guarda: ao contrário, afirma, é hora de fortalecer os fundamentos para o crescimento futuro.

O fecho destas reflexões só pode ser a radicalização política nos Estados Unidos e a possível reeleição de um senhor já unanimemente condenado por golpismo político e obcecado pelo protecionismo.

E se o racista for seu filho ou sua filha?

Esse é um texto que eu ensaiei escrever algumas vezes. A vontade ficou latente quando estourou um caso de racismo em uma escola de classe média alta de São Paulo. O caso ganhou especial repercussão, pois a vítima era filha de uma atriz brasileira. E, mesmo assim, a questão central foi menos sobre os cuidados que a menina discriminada deveria receber e mais sobre o que fazer com as jovens que cometeram o ato racista.

Não há dúvidas que é fundamental questionar e balizar como o papel educativo e pedagógico de uma escola deve funcionar em situações como essa. Mas é também de um racismo atroz constatar que, no frigir dos ovos, o debate público passou da saúde mental e emocional da menina negra para ficar totalmente centrado na intensidade da sanção que as meninas brancas deveriam (ou não) receber.

Poucos meses depois, um jovem negro estudante de outra escola da elite paulista cometeu suicídio por não ter conseguido suportar os inúmeros bullyings que sofria por ser quem era: um menino negro, homossexual e pobre, que havia entrado na escola por conta de ações afirmativas. Ao invés dessa tragédia ajudar a fomentar um debate mais aprofundado sobre saúde mental na adolescência, e suas interseções de raça, classe e sexualidade, o que vimos foi o silêncio costumaz da escola – que, na época, sequer fez um pronunciamento digno – e a oportunidade espúria para criticar as políticas de ação afirmativa, mais especificamente as cotas raciais. O recado dado por importantes representantes da elite paulistana foi: o apartheid racial, social e econômico da cidade mais rica do Brasil deve ser mantido.


Mas foi agora, quando minha filha chegou com queixas da escola, que resolvi escrever. Isso porque há algumas semanas me vi obrigada a sentar com uma menina de 7 anos – que há pouquíssimo tempo começou a questionar a existência de Papai Noel – e explicar que, sim, ela foi vítima de racismo. Em meio à violência da qual o racismo se alimenta, eu tive que explicar para ela que o cabelo dela não é feio, e que ela não foi a primeira (e infelizmente, não será a última) criança a ser zombada por seus colegas por conta do seu cabelo.

Confesso que, apesar de achar que conheço relativamente bem o modo como o racismo se expressa, não esperava que ela passasse por essa situação. Como o cabelo dela é muito menos crespo que o meu, acreditei que ela estaria a salvo dessa discriminação.

Inocência a minha.

Num universo marcado por crianças brancas de cabelos lisos ou anelados, o cabelo da minha filha é suficientemente crespo para ser alvo de racismo. Então, para tentar apaziguar o choro e a indignação dela, falei justamente isso: "você não é a primeira menina negra a viver isso". Eu mesma passei pela mesma situação, exatamente na mesma idade e num contexto muito semelhante: ser uma das poucas alunas negras numa escola branca da classe média alta e progressista. E para ela entender o que aconteceu e acontece com outras muitas meninas (e meninos) negras, peguei um pacote de bombril e disse: "era isso que diziam que meu cabelo parecia".

Obviamente eu fiquei muito tocada e afetada pela repetição das nossas histórias, a minha e da minha filha. E cheguei a ensaiar um texto para os pais da escola, porque não considero justo que a bomba do racismo estoure apenas no meu colo. Afinal de contas, se a minha filha está sofrendo esse tipo de racismo, é porque crianças estão sendo racistas com ela. Só que o problema é que esse cenário descrito não é exceção, mas a regra. E uma regra de história longa.

Essa situação me fez lembrar do início do livro Almas da Gente Negra, no qual um dos mais proeminentes sociólogos do mundo, o estadunidense W.E.B Du Bois, conta que foi na infância, interagindo com crianças brancas, que ele foi apresentado ao racismo. Uma situação que atravessou o século 19, o século 20 e chegou ao 21, como bem demonstra um vídeo feito pelo Criança Esperança, no qual, em meio a uma dinâmica, meninas e meninos negros são "convidados" a dizer frases abertamente racistas. Eles recusam o convite não só por acharem as frases erradas, mas também porque aquelas frases os faziam lembrar de situações racistas que passaram junto a seus pares, crianças brancas.

Esse é um ponto sobre o qual devemos falar: crianças podem sim ser racistas. E isso pode acontecer independentemente da consciência racial dos pais dessa criança. E, embora o racismo não esteja inserido no código genético de ninguém, ele é ensinado e aprendido desde a mais tenra infância. Como sabemos, as crianças são excelentes observadoras e absorvem conhecimento de uma maneira invejável. Então, se elas vivem num mundo racista (e sim, todos nós vivemos), o racismo será algo que elas vão aprender.

Geralmente o primeiro passo dessa aprendizagem começa com um estranhamento das desigualdades (algo bonito de ver): "por que só vejo famílias negras pedindo dinheiro nas ruas? ", ou "por que na minha escola tem poucos negros?", "como é que deixaram a escravidão existir?". Essas são frases que alguns dos meus amigos brancos já tiveram que responder para seus filhos e filhas.

No entanto, mesmo com as respostas que reforcem que "somos todos iguais e devemos ser tratados da mesma forma" não é isso que o mundo informa às nossas crianças. E, aos poucos, a diferença vai sendo naturalizada como desigualdade, e o racismo vai turvando nosso olhar.

Tudo isso para dizer aos pais e mães de crianças brancas que vocês têm um desafio enorme nas mãos. E por mais que esse seja mais um trabalho dentro das inúmeras tarefas da maternidade/paternidade, não se furtem, porque ele valerá à pena. Também cabe a vocês a construção de uma sociedade menos racista. E isso pode começar com seus filhos e filhas.

O post-it do momento nos Estados Unidos é dirigido às mulheres

Uma mulher colou um bilhete na porta de seu salão de cabeleireiro na Carolina do Norte. Outra pressionou-o na parte de trás de uma caixa de absorventes no Arkansas. Uma terceira pendurou o bilhete no espelho de um banheiro feminino em um aeroporto de Ohio. “De mulher para mulher”, diz o bilhete. “Ninguém vê seu voto nas urnas.”


Em estados indecisos, em redutos republicanos, em campus universitários e em arenas esportivas, post-its surgiram lembrando às mulheres que seus votos são secretos, mantidos em sigilo até mesmo e especialmente dos homens de suas vidas, conta o jornal The Washington Post.

Nos últimos dias da corrida presidencial, o que começou como uma campanha de sussurros feita por mulheres e para mulheres, tornou-se assunto de um anúncio de 30 segundos, amplificado por gigantes democratas como Michelle Obama.

Pesquisas mostram uma divisão entre como homens e mulheres planejam votar, e em uma eleição que provavelmente será decidida nas margens, Harris precisa que as mulheres — mesmo as que estão namorando ou são casadas com apoiadores Donald Trump — compareçam em massa para votar nela.

“Seu voto é uma questão privada, independentemente das visões políticas de seu parceiro”, disse a ex-primeira-dama Michelle Obama no final do mês passado em Kalamazoo, Michigan. “Você pode usar seu julgamento e votar.”

“Você pode votar de acordo com sua consciência e nunca ter que dizer uma palavra a ninguém”, disse a ex-deputada republicana Liz Cheney, que apoia Harris, em um evento nos arredores de Detroit em 21 de outubro. “E haverá milhões de republicanos que farão isso em 5 de novembro.”

Um anúncio digital de 30 segundos sobre o assunto atraiu o desprezo particular da direita. Narrado pela atriz Julia Roberts, o anúncio mostra uma mulher chegando às urnas com um homem que parece ser seu marido. Ela entra em uma cabine sozinha, olha nos olhos de outra mulher e sorri. Então, vota em Harris.

“Você fez a escolha certa?” – o homem pergunta enquanto ela se afasta. “Claro que sim, querido”, responde a mulher, usando um chapéu com uma bandeira americana. “Lembre-se: o que acontece na cabine, fica na cabine”, conclui o anúncio.

Muitos conservadores proeminentes acharam o anúncio ofensivo. Charlie Kirk, que lidera o grupo jovem pró-Trump “Turning Point USA”, chamou-o de “a personificação da queda da família americana”. O apresentador da Fox News, Jesse Watters, disse que sua mulher votar secretamente em Harris seria o equivalente a ela “ter um caso”.

“É questionável, é um insulto”, afirma Jayme Franklin, cofundadora do Conservateur, uma marca de mídia e estilo de vida para mulheres conservadoras. “Como uma mulher casada, entendo o quão importante é a união e a confiança dentro de um casamento, e a campanha de Kamala promovendo mentiras é decepcionante”.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Pensamento do Dia

 


Educar para a democracia

Os olhos do mundo estão voltados para a eleição de amanhã na maior economia do planeta e a possibilidade de vitória de um candidato que já demonstrou nenhum apreço pelas regras do jogo democrático causa temores de que a agenda populista e autoritária ganhe ainda mais impulso global.

Relatório deste ano do instituto V-Dem, vinculado à Universidade de Gotemburgo (Suécia), mostrou que a parcela da população mundial vivendo em países que se autocratizaram superou aquela habitando em nações que se democratizaram nos últimos 15 anos. Não se trata, portanto, de um fenômeno local, e para combatê-lo é fundamental refletir sobre o papel da educação na construção e preservação de uma cultura de convivência democrática.

Uma primeira constatação a ser feita é que a ampliação dos níveis de instrução não é garantia suficiente de que um país se torne mais democrático e tolerante. Apenas para ficar em um óbvio exemplo histórico, o nazismo foi germinado no início do século passado numa das sociedades mais escolarizadas da Europa à época. E o trauma da experiência do nazismo parece não ter gerado um aprendizado categórico da sociedade.


Hoje, seguindo uma receita similar — com ingredientes como a desinformação, discursos de ódio, enfraquecimento da confiança na ciência e no progresso e atitudes antiestablishment — a extrema direita recrudesceu tanto em países desenvolvidos quanto em nações pobres.

Com efeito, precisamos discutir sobre qual modelo educacional pode ser eficaz para garantir o desenvolvimento pleno de cada pessoa, incluindo tanto a formação para uma cidadania ativa e convicta dos valores democráticos como a preparação para o mercado de trabalho, em acelerada transformação.

O livro de François Dubet e Marie Duru-Bellat, “A escola pode salvar a democracia?”, de 2020, afirma que “a confiança na educação de massas não diz respeito apenas ao progresso na igualdade e ao aumento das competências dos estudantes. Diz respeito, também, à transmissão da cultura e dos valores democráticos. (...) Essa confiança baseia-se na crença de que a escola, ao mesmo tempo, educa e instrui”. Hoje, precisamos avaliar, enquanto sociedade, em que medida essa confiança está abalada.

Para além disso, supomos que a equidade no ambiente escolar é também parte importante dessa estratégia, pois altos níveis de desigualdade são prejudiciais às sociedades democráticas, por dificultarem, entre outros fatores, a construção de confiança mútua, a participação social, o respeito e a valorização da diversidade.

Como afirmou a professora e ativista norte-americana bell hooks, “temos de trabalhar para encontrar maneiras de ensinar e compartilhar conhecimento de modo a não reforçar estruturas existentes de dominação (hierarquias de raça, gênero, classe e religião). A diversidade de discursos e de presenças pode ser bastante valorizada como um recurso que intensifica qualquer experiência de aprendizado”.

Estratégias em que a educação contribua para o fortalecimento de uma sociedade democrática não deveriam ser conflitantes com o desenvolvimento de capital humano. A princípio, a economia tende a ganhar com o fortalecimento da democracia, como demonstraram, em artigo de 2019, os pesquisadores Daron Acemoglu, James A. Robinson, Pascual Restrepo e Suresh Naidu, ao constatarem que a democratização aumenta o PIB per capita em cerca de 20% no longo prazo. Os dois primeiros autores foram laureados neste ano, junto com Simon Johnson, com o Nobel de Economia.

No livro “O Corredor Estreito” (2020), Acemoglu e Robinson também argumentam que, se é verdade que o Estado precisa ser forte para manter a paz e fomentar o crescimento, é igualmente fundamental uma sociedade forte e mobilizada para controlar e limitar seus excessos. Isso só se faz com uma cidadania crítica e ativa.

A aquisição de conhecimentos essenciais básicos e o desenvolvimento de habilidades mais sofisticadas — como o pensamento crítico e o raciocínio analítico dedutivo — são fundamentais para que os cidadãos sejam mais capazes de entender fenômenos complexos e façam melhores escolhas individuais e coletivas. Mas a formação para a democracia exige mais do que isso. É preciso praticar a resolução de conflitos, a habilidade para conviver com argumentos divergentes e o debate qualificado desde cedo.

Isso não se faz por transmissão de conhecimento. Por definição, a escola pública é o local do convívio com as diferenças. Conflitos vão sempre existir, mas a maneira como os processamos é que pode diferenciar experiências autoritárias das democráticas.

Felizmente, temos experiências pelo Brasil de escolas que conseguiram melhorar seus indicadores de convivência e aprendizagem sem apelar para falsas soluções autoritárias. Precisamos que a escola seja uma instituição que fortaleça a democracia, assegure o desenvolvimento cognitivo, emocional e social e promova a cidadania. O caminho passa por aqui.

'Não somos militares. Por que estamos sendo atingidos?'

Quando o ataque aéreo aconteceu, Mohammed estava distribuindo comida quente para vizinhos idosos — algo que ele e seus amigos vinham fazendo desde a última invasão israelense ao Líbano, em 1º de outubro.

O engenheiro civil, de 29 anos, estava a cerca de 5 metros da explosão, que destruiu uma casa em sua aldeia no sul do Líbano.

Camadas de pele foram queimadas de sua testa e bochechas, deixando seu rosto cru e rosado. Suas mãos estavam carbonizadas. Seu abdômen tem queimaduras de terceiro grau. Duas semanas depois, ele irradia dor e trauma, mas quer contar sua história.

“Estava tudo preto, fumaça por todo lado”, ele diz em voz baixa. “Demorou cerca de um minuto. Então comecei a reconhecer o que estava ao meu redor. Percebi que meus dois amigos ainda estavam vivos, mas sangrando muito. Demorou cerca de cinco minutos para as pessoas nos tirarem de lá.”

Mohammed relata os horrores de sua cama no hospital governamental Nabih Berri, que fica no topo de uma colina em Nabatieh. É uma das maiores cidades do sul, e fica a apenas 11 km (sete milhas) da fronteira com Israel, em linha reta. Antes da guerra, era o lar de cerca de 80.000 pessoas.

Mohammed diz que não houve nenhum aviso antes do ataque – “de forma alguma, nem para nós, nem para nossos vizinhos, nem para a pessoa dentro da casa que foi atingida”.

Essa pessoa era um policial, ele diz, que foi morto no ataque.

“Não somos militares”, ele diz, “não somos terroristas. Por que estamos sendo atingidos? As áreas que estão sendo atingidas são todas áreas civis.”

Mohammed retornará para casa, para sua aldeia, Arab Salim, quando for liberado, embora ela continue sob fogo. “Não tenho mais para onde ir”, ele diz. “Se eu pudesse [sair], eu iria. Não há lugar.”

Enquanto circulamos pelo hospital, outro ataque aéreo faz com que a equipe corra para uma sacada, para verificar o que foi atingido dessa vez. O hospital oferece uma vista panorâmica da fumaça cinza saindo de um terreno alto a cerca de 4 km de distância.

Pouco depois, alguns andares abaixo, na sala de emergência, o lamento de uma sirene avisa sobre a chegada de vítimas – daquele ataque aéreo. Ele atingiu a vila de Mohammed, Arab Salim.

Uma mulher é levada às pressas em uma maca, com sangue escorrendo pelo rosto. Ela é seguida pelo marido, que bate na parede em frustração antes de cair em choque. Os médicos desaparecem atrás de portas fechadas para examiná-la.

Em poucos minutos, o diretor do hospital, Dr. Hassan Wazni, informa à equipe que ela tem uma artéria rompida e deve ser transferida para um centro vascular especializado em um hospital mais ao norte.

"Ela precisa disso imediatamente", ele diz, enquanto gritos de dor vêm da sala de exames. "Fale com Saida [uma cidade próxima]. Se estiver tudo bem, vamos levá-la imediatamente, porque ela não pode esperar."

O hospital recebe de 20 a 30 vítimas de ataques aéreos israelenses por dia. A maioria são civis, mas ninguém é mandado embora. “Aceitamos todos os pacientes, todos os feridos e todos os mártires que vêm”, ele diz. “Não fazemos discriminação entre eles.”

O Dr. Wazni não saiu do hospital desde que a guerra começou. Atrás de sua mesa em seu escritório, ele abre um maço de cigarrilhas. “Acho que é OK quebrar algumas regras em uma guerra”, ele diz com um sorriso de desculpas.

Ele está lutando para pagar salários e conseguir 1.200 litros de combustível por dia para acionar os geradores que abastecem o hospital. “Não recebemos nada do governo”, ele diz. “Ele não tem.”

Seu combustível é o expresso, que ele nos oferece repetidamente.

Com 170 leitos, o Nabih Berri é o principal hospital público da cidade, mas agora tem apenas uma equipe mínima e 25 pacientes. Os doentes e feridos trazidos para cá são transferidos rapidamente para hospitais em áreas mais seguras mais ao norte. A equipe diz que houve “muitos ataques” perto do Nabih Berri. Durante nossa visita, havia vidro quebrado dentro do saguão.

Nabatieh está sob fogo há mais de um mês.

Ataque aéreo destruiu o mercado de Nabatieh e edifícios municipais

O prédio da prefeitura foi explodido há duas semanas, matando o prefeito, Ahmad Kahil, e outras 16 pessoas. Na época, ele estava tendo uma reunião para coordenar a distribuição de ajuda. Quando passamos pelas ruínas, pacotes de pão achatado permanecem visíveis no chão de uma ambulância destruída.

A greve massiva derrubou vários prédios vizinhos – um quarteirão da cidade está faltando na paisagem.

Também está faltando um mercado da era otomana – o coração de Nabatieh – que foi destruído no mesmo dia. Séculos de história foram esmagados em escombros, a herança virou pó.

O antigo mercado, ou souk, era estimado por Hussein Jaber, 30, que faz parte dos serviços de emergência do governo. Ele e seus homens, alguns deles voluntários, nos levam até lá para uma breve visita. Eles dirigem em alta velocidade - a única maneira de viajar em Nabatieh.

“Nós nascemos e fomos criados aqui”, diz Hussein, gesticulando em volta de lajes de concreto e metal retorcido. “Estamos aqui desde que éramos crianças. O souk significa muito para nós. É muito triste vê-lo assim. Ele guarda memórias do passado e dos lindos dias que passamos com as pessoas desta cidade.”

Assim como o Dr. Wazni, Hussein e seus colegas permaneceram com o povo, apesar dos riscos. Mais de 110 paramédicos e socorristas foram mortos em ataques israelenses no Líbano no ano passado, de acordo com números do governo libanês — a maioria deles no mês passado. Alguns ataques envolvem “aparentes crimes de guerra”, de acordo com o grupo de campanha internacional, Human Rights Watch.

Hussein perdeu um colega e um amigo neste mês, em um ataque aéreo a 50m de sua estação de defesa civil, onde eles dormem com colchões contra as janelas. O homem morto, Naji Fahes, tinha 50 anos e dois filhos.

“Ele era entusiasmado e forte e amava ajudar os outros”, Hussein me conta. “Mesmo sendo mais velho do que nós, ele era o que corria para ir em missões, para estar com as pessoas e resgatá-las.”

Ele morreu, como viveu.

Quando o ataque aéreo aconteceu, Naji Fahes estava do lado de fora da estação, pronto para partir em uma missão.

Enquanto Hussein fala, temos companhia. Um drone israelense circula nos céus, depois fica mais baixo e mais alto. O zumbido insistente do drone compete com sua voz. “Nós o ouvimos 90% do tempo”, ele diz. “Achamos que ele está diretamente acima de nós agora. Muito provavelmente ele está nos observando.”

Quanto ao Hezbollah, sua presença na cidade está fora de vista.

As Forças de Defesa de Israel (IDF) nos disseram que estão “operando somente contra a organização terrorista Hezbollah, não contra a população libanesa”.

Israel diz que sua luta é “contra a organização terrorista Hezbollah, inserida na população civil e na infraestrutura”.

Um porta-voz disse que “toma muitas medidas para mitigar os danos civis, incluindo avisos antecipados”, embora não tenha havido nenhum aviso sobre o ataque aéreo que feriu Mohammed, ou o ataque que matou o prefeito.

Em cinco horas e meia nesta cidade outrora movimentada, vimos duas pessoas ao ar livre, a pé. Ambas saíram correndo, sem vontade de falar. Durante nossa visita, um drone estava transmitindo mensagens do exército israelense – instruindo as pessoas a saírem imediatamente.

Estima-se que apenas algumas centenas permanecem aqui, sem vontade ou incapazes de se mudar para outro lugar. São principalmente os velhos e os pobres, e eles viverão ou morrerão com sua cidade.

E Hussein e sua equipe estarão aqui, para ajudá-los. “Somos como uma rede de segurança para o povo”, ele diz. “Ficaremos e continuaremos. Estaremos ao lado dos civis. Nada nos deterá.”

SOS

Estamos presos em um ciclo vicioso em que os problemas econômicos reduzem o foco político no meio ambiente, enquanto a destruição da natureza custa bilhões à economia.

Até que tenhamos líderes mundiais com a sabedoria e a coragem de colocar a natureza como prioridade política máxima, os riscos relacionados à natureza continuarão a aumentar.
Tom Oliver, professor de biodiversidade na Universidade de Reading

Sociedade americana prestes a acertar contas com seus fantasmas

Onze horas da manhã em Nova York. Dias atrás, numa escola pública da Rua 56, entre a Segunda e Terceira avenidas de Manhattan, as aulas seguiam seu curso normal. Os alunos em aula nem sequer levantavam a cabeça para observar, através da porta envidraçada, as idas e vindas de estranhos em direção à quadra da esportes. Eram na maioria mulheres indo votar antecipadamente. Do portão de entrada até o local das urnas, dezenas de voluntários — novamente mulheres, na maioria — agradeciam o comparecimento de quem chegava e forneciam a absurda cédula em papel, trilíngue (inglês, espanhol, chinês), que mais parece um cardápio de vinho metido a chique. Tudo na maior calmaria, pontuado por discretos acenos de cabeça indicando esperança na sororidade pró-Kamala Harris.

Não longe dali, a livraria Barnes & Noble da Quinta Avenida expunha em espaço nobre um best-seller que fez barulho sete anos atrás: “On tyranny”, do historiador Timothy Snyder. Nele, o professor de Yale e Prêmio Hannah Arendt elenca 20 lições sobre tirania no século XX a ser aprendidas em tempos presentes. Escrito pouco depois da traumática vitória de Donald Trump à Presidência em 2016, a obra voltou a ganhar urgência e relevância. Ensinamento do primeiro capítulo desse chamamento à razão e guia de preservação de liberdades em tempos de incerteza: “Não obedeça antecipadamente”.

Faltando menos de cem horas para o fatídico acerto de contas da sociedade americana com seus fantasmas, até mesmo o venerado Jon Stewart, mais influente comediante político do país, admite estar tenso. Ele diz procurar se preservar do ritmo circadiano das redes sociais, da torrente de pesquisas de opinião e do noticiário partidário:

— É difícil escapar da compulsão neurótica de checar a milésima adivinhação eleitoral do dia.

Mais difícil ainda, senão impossível, tem sido para a democrata Kamala tocar uma campanha convencional contra um adversário propositalmente desvairado e instável. Deveria ela ignorar ou vilipendiar os insistentes elogios de Trump à genitália de um famoso campeão de golfe? Como competir com as encenações ostensivamente falsas (porém fotogênicas) do candidato republicano, que ora se fantasia de atendente de McDonald’s, ora se apresenta como motorista fake de um caminhão de lixo fake? Tudo surreal e altamente eficaz, destinado a manter em suspenso a questão-chave: o resultado da eleição será respeitado?

Quatro anos atrás, brotara da mente privilegiadamente trevosa de Steve Bannon a recomendação para que Trump declarasse vitória já na noite da eleição, independentemente da apuração e do resultado. Assim foi feito, em 6 de janeiro de 2021 a horda de trumpers tentou impedir pela força a certificação da vitória de Joe Biden, e o negacionismo da derrota perdura até hoje.

Pois bem, eis que na terça-feira passada o mesmo Steve Bannon ressurge bronzeado e desenvolto da prisão federal de Danbury, Connecticut, e convoca uma entrevista coletiva em endereço de prestígio e poder — 540 Park Avenue — para a mesma tarde. Ele havia cumprido seus quatro meses de prisão por desacato a uma convocação do Congresso, declarou-se ex-prisioneiro político e garantiu que desta vez a campanha de Trump está mais bem preparada para travar qualquer tipo de batalha. Embora não faça mais parte do círculo persuasivo de Trump — esse espaço foi ocupado de braçada por Elon Musk —, Bannon mantém o estilo rombudo, espaçoso e combativo de antes.

Coube ao analista político Bill Kristol comparar a realidade ficcional de Trump ao superestado Oceânia, criado por George Orwell em “1984”. Enquanto na imaginária edificação sem janelas havia luzes internas permanentemente acesas do repressivo “Ministério do Amor”, na vida real de 2024 Trump descreveu nos seguintes termos seu assustador comício no Madison Square Garden do domingo anterior:

— O amor naquela arena foi de tirar o fôlego. Nunca houve evento tão lindo. Foi uma festa de amor. Amor pelo país.

Na verdade, o que se viu e se ouviu por horas a fio foi um desfilar de ódio, racismo, xenofobia e fascismo. Sim, fascismo — desta vez a palavra é inescapável.

Em 1935, quando Sinclair Lewis publicou sua seminal distopia “It can’t happen here”, recebida como ficção de regime totalitário, um pedaço real do inimaginável já havia, de fato, acontecido. Foi num domingo ensolarado de fevereiro de 1931 que policiais de Los Angeles cercaram um parque público frequentado por latinos, prenderam 400 pessoas ao acaso, todos de pele escura, enquanto o mesmo se repetia em hospitais, mercados, igrejas, clubes e associações. Em pouco tempo, mais de 1,8 milhão de mexicanos foram deportados por ordem do governo de Herbert Hoover —60% deles tinham cidadania americana. Passado quase um século, Trump e seus aliados discutem abertamente a deportação em massa de 10 milhões de imigrantes.

Quando realidade e ficção se misturam, e a civilização fica à deriva, leva vantagem quem proclama certezas simples para problemas enroscados.

— Preciso dizer que me orgulho de votar em Kamala Harris, escreveu Kristol. — Tenho certeza de que, se eleita, ela me desapontará, é sempre assim. Mas pelo menos terá conseguido ficar à altura do momento.

Dorrit Harazim

A 'máquina de preconceitos': Google diz o que você quer ouvir

"Estamos à mercê do Google." Eleitores indecisos nos EUA que recorrem ao Google podem ter visões de mundo dramaticamente diferentes – mesmo quando estão fazendo exatamente a mesma pergunta.

Digite "Kamala Harris é uma boa candidata democrata", e o Google pinta um quadro otimista. Os resultados da pesquisa mudam constantemente, mas na semana passada, o primeiro link foi uma pesquisa do Pew Research Center mostrando que "Harris energiza os democratas". O próximo é um artigo da Associated Press intitulado "A maioria dos democratas acha que Kamala Harris seria uma boa presidente", e os links seguintes eram semelhantes. Mas se você tem ouvido coisas negativas sobre Harris, você pode perguntar se ela é uma "má" candidata democrata. Fundamentalmente, essa é uma pergunta idêntica, mas os resultados do Google são muito mais pessimistas.

"Tem sido fácil esquecer o quão ruim Kamala Harris é", disse um artigo da Reason Magazine no primeiro lugar. Então o US News & World Report ofereceu uma interpretação positiva sobre como Harris não é "a pior coisa que poderia acontecer à América", mas os resultados a seguir são todos críticos. Um artigo da Al Jazeera explicou "Por que não estou votando em Kamala Harris", seguido por um tópico interminável no Reddit sobre por que ela não é boa.


Você pode ver a mesma dicotomia com perguntas sobre Donald Trump, teorias da conspiração, debates políticos contenciosos e até mesmo informações médicas. Alguns especialistas dizem que o Google está apenas repetindo suas próprias crenças de volta para você. Pode estar piorando seus próprios preconceitos e aprofundando as divisões sociais ao longo do caminho.

"Estamos à mercê do Google no que diz respeito às informações que conseguimos encontrar", diz Varol Kayhan, professor associado de sistemas de informação na Universidade do Sul da Flórida, nos EUA.

"A missão do Google é dar às pessoas as informações que elas querem, mas às vezes as informações que as pessoas acham que querem não são as mais úteis", diz Sarah Presch, diretora de marketing digital da Dragon Metrics , uma plataforma que ajuda empresas a ajustar seus sites para melhor reconhecimento do Google usando métodos conhecidos como " otimização de mecanismos de busca " ou SEO.

É um trabalho que exige uma análise meticulosa dos resultados do Google e, alguns anos atrás, Presch percebeu um problema. "Comecei a observar como o Google lida com tópicos em que há debates acalorados", diz ela. "Em muitos casos, os resultados foram chocantes."

Alguns dos exemplos mais gritantes analisaram como o Google trata certas questões de saúde. O Google frequentemente extrai informações da web e as mostra no topo dos resultados para fornecer uma resposta rápida, que ele chama de Featured Snippet . Presch pesquisou por "link entre café e hipertensão". O Featured Snippet citou um artigo da Mayo Clinic, destacando as palavras "A cafeína pode causar um aumento curto, mas dramático, na sua pressão arterial". Mas quando ela pesquisou "nenhuma ligação entre café e hipertensão", o Featured Snippet citou uma linha contraditória do mesmo artigo da Mayo Clinic: "A cafeína não tem um efeito de longo prazo na pressão arterial e não está associada a um risco maior de pressão alta".

A mesma coisa aconteceu quando Presch pesquisou por "o TDAH é causado pelo açúcar" e "o TDAH não é causado pelo açúcar". O Google apresentou Featured Snippets que argumentam que apoiam ambos os lados da questão, novamente retirados do mesmo artigo. (Na realidade, há pouca evidência de que o açúcar afeta os sintomas do TDAH, e ele certamente não causa o transtorno.)

Ela encontrou o mesmo problema com questões políticas. Pergunte "o sistema tributário britânico é justo", e o Google cita uma citação do deputado conservador Nigel Huddleston, argumentando que de fato é. Pergunte "o sistema tributário britânico é injusto", e o Featured Snippet do Google explica como os impostos do Reino Unido beneficiam os ricos e promovem a desigualdade.

"O que o Google fez foi retirar pedaços do texto com base no que as pessoas estão procurando e alimentá-las com o que elas querem ler", diz Presch. "É uma grande máquina de preconceitos."

Por sua vez, o Google diz que fornece aos usuários resultados imparciais que simplesmente combinam as pessoas com o tipo de informação que elas estão procurando. "Como um mecanismo de busca, o Google visa apresentar resultados de alta qualidade que sejam relevantes para a consulta que você inseriu", diz um porta-voz do Google. "Nós fornecemos acesso aberto a uma variedade de pontos de vista de toda a web, e damos às pessoas ferramentas úteis para avaliar as informações e fontes que elas encontram."

Segundo uma estimativa, o Google lida com cerca de 6,3 milhões de consultas a cada segundo, totalizando mais de nove bilhões de pesquisas por dia. A grande maioria do tráfego da internet começa com uma Pesquisa do Google, e as pessoas raramente clicam em qualquer coisa além dos cinco primeiros links — muito menos se aventuram na segunda página. Um estudo que rastreou os movimentos oculares dos usuários descobriu que as pessoas geralmente nem olham para nada além dos primeiros resultados. O sistema que ordena os links na Pesquisa do Google tem um poder colossal sobre nossa experiência do mundo.

De acordo com o Google, a empresa está lidando bem com essa responsabilidade. "Pesquisas acadêmicas independentes refutaram a ideia de que o Google Search está empurrando as pessoas para bolhas de filtro", diz o porta-voz.

A questão das chamadas "bolhas de filtro" e "câmaras de eco" na internet é um tema quente, embora algumas pesquisas tenham questionado se os efeitos das câmaras de eco online foram exagerados .

Mas Kayhan – que estudou como os mecanismos de busca afetam o viés de confirmação , o impulso natural de buscar informações que confirmem suas crenças – diz que não há dúvidas de que nossas crenças e até mesmo nossas próprias identidades políticas são influenciadas pelos sistemas que controlam o que vemos online. "Somos dramaticamente influenciados por como recebemos informações", ele diz.

O porta-voz do Google diz que um estudo de 2023 concluiu que a exposição das pessoas a notícias partidárias se deve mais ao fato de que é nisso que elas clicam, do que ao Google fornecer notícias partidárias em primeiro lugar. Em certo sentido, é assim que o viés de confirmação funciona: as pessoas procuram evidências que apoiam suas opiniões e ignoram evidências que as desafiam. Mas mesmo naquele estudo, os pesquisadores disseram que suas descobertas não implicam que os algoritmos do Google não sejam problemáticos. "Em alguns casos, nossos participantes foram expostos a notícias altamente partidárias e não confiáveis ​​no Google Search", disseram os pesquisadores, "e trabalhos anteriores sugerem que mesmo um número limitado dessas exposições pode ter impactos negativos substanciais".

De qualquer forma, você pode escolher se envolver com informações que o mantêm preso em sua bolha de filtro, "mas há apenas um certo buquê de mensagens que são colocadas na sua frente para você escolher em primeiro lugar", diz Silvia Knobloch-Westerwick, professora de comunicação mediada na Technische Universität Berlin, na Alemanha. "Os algoritmos desempenham um papel substancial neste problema."

O Google não respondeu à pergunta da BBC sobre se há uma pessoa ou uma equipe especificamente encarregada de abordar o problema do viés de confirmação.

"Na minha opinião, todo esse problema decorre das limitações técnicas dos mecanismos de busca e do fato de que as pessoas não entendem quais são essas limitações", diz Mark Williams-Cook, fundador do AlsoAsked , outra ferramenta de otimização de mecanismos de busca que analisa os resultados do Google.

Um caso antitruste recente dos EUA contra o Google revelou documentos internos da empresa onde funcionários discutem algumas das técnicas que o mecanismo de busca usa para responder suas perguntas. "Nós não entendemos documentos – nós os fingimos", escreveu um engenheiro em um slideshow usado durante uma apresentação de 2016 na empresa. "Um bilhão de vezes por dia, as pessoas nos pedem para encontrar documentos relevantes para uma consulta... Além de algumas coisas básicas, dificilmente olhamos para documentos. Olhamos para pessoas. Se um documento recebe uma reação positiva, achamos que é bom. Se a reação é negativa, provavelmente é ruim. Simplificando grosseiramente, esta é a fonte da mágica do Google."

Em outras palavras, o Google observa para ver no que as pessoas clicam quando inserem um determinado termo de busca. Quando as pessoas parecem satisfeitas com um certo tipo de informação, é mais provável que o Google promova esse tipo de resultado de busca para consultas semelhantes no futuro.

Um porta-voz do Google diz que esses documentos estão desatualizados e que o sistema usado para decifrar consultas e páginas da web se tornou muito mais sofisticado.

"Essa apresentação é de 2016, então você tem que encarar com uma pitada de sal, mas o conceito subjacente ainda é verdadeiro. O Google cria modelos para tentar prever o que as pessoas gostam, mas o problema é que isso cria um tipo de loop de feedback", diz Williams-Cook. Se o viés de confirmação empurra as pessoas a clicar em links que reforçam suas crenças, ele pode ensinar o Google a mostrar às pessoas links que levam ao viés de confirmação. "É como dizer que você vai deixar seu filho escolher sua dieta com base no que ele gosta. Ele vai acabar comendo junk food", diz ele.

Williams-Cook também se preocupa que as pessoas podem não entender que quando você pergunta algo como "Trump é um bom candidato", o Google pode não necessariamente interpretar isso como uma pergunta. Em vez disso, ele geralmente apenas puxa documentos relacionados a palavras-chave como "Trump" e "bom candidato".

Ele diz que isso dá às pessoas expectativas equivocadas sobre o que elas encontrarão quando fizerem uma pesquisa, e isso pode levá-las a interpretar mal o que os resultados da pesquisa significam.

Se os usuários fossem mais claros sobre as deficiências do mecanismo de busca, Williams-Cook acredita que eles poderiam pensar sobre o conteúdo que veem de forma mais crítica. "O Google deveria fazer mais para informar o público sobre como a Busca realmente funciona. Mas eu não acho que eles farão, porque para fazer isso você tem que admitir algumas imperfeições sobre o que não está funcionando", ele diz. ( Para saber mais sobre o funcionamento interno dos mecanismos de busca, leia este artigo sobre como as atualizações do algoritmo do Google estão mudando a internet).

O Google é aberto sobre o fato de que a Busca nunca é um problema resolvido, diz um porta-voz da empresa, e a empresa trabalha incansavelmente para lidar com os profundos desafios técnicos no campo conforme eles surgem. O Google também aponta para recursos que oferece que ajudam os usuários a avaliar informações, como a ferramenta " Sobre este resultado " e avisos que permitem que os usuários saibam quando os resultados sobre um tópico relacionado a notícias de última hora estão mudando rapidamente.

O porta-voz do Google diz que é fácil encontrar resultados que refletem uma variedade de pontos de vista de fontes por toda a web, se é isso que você quer fazer. Eles argumentam que isso é verdade mesmo com alguns dos exemplos que Presch apontou. Role mais para baixo com perguntas como "Kamala Harris é uma boa candidata democrata" e você encontrará links que a criticam. O mesmo vale para "o sistema tributário britânico é justo" - você encontrará resultados de pesquisa que dizem que não é. Com a consulta "ligação entre café e hipertensão", o porta-voz do Google diz que a questão é complicada, mas o mecanismo de busca traz à tona fontes confiáveis ​​que se aprofundam na nuance.

Claro, isso depende de as pessoas explorarem além dos primeiros resultados – quanto mais abaixo na página de resultados você for, menor a probabilidade de os usuários se envolverem com os links. No caso da hipertensão relacionada ao café e do sistema tributário britânico, o Google também resume os resultados e dá sua própria resposta de forma proeminente com Featured Snippets – o que pode tornar menos provável que as pessoas sigam links mais abaixo nos resultados da pesquisa.

Por muito tempo, observadores descreveram como o Google está em transição de um mecanismo de busca para um "mecanismo de resposta", onde a empresa simplesmente fornece a informação, em vez de apontar para fontes externas. O exemplo mais claro é a introdução do AI Overviews , um recurso em que o Google usa IA para responder a consultas de busca para você, em vez de exibir links em resposta. Como a empresa colocou, agora você pode " Deixar o Google fazer a busca para você ".

"No passado, o Google mostrava algo que outra pessoa havia escrito, mas agora ele mesmo está escrevendo a resposta", diz Williams-Cook. "Isso agrava todos esses problemas, porque agora o Google tem apenas uma chance de acertar. É uma jogada difícil."

Mas mesmo que o Google tivesse a capacidade técnica de lidar com todos esses problemas, não está necessariamente claro quando ou como eles devem intervir. Você pode querer informações que respaldem uma crença específica e, se for o caso, o Google está fornecendo um serviço valioso ao entregá-lo a você.

Muitas pessoas se sentem desconfortáveis ​​com a ideia de uma das empresas mais ricas e poderosas do mundo tomar decisões sobre qual é a verdade, diz Kayhan. "É trabalho do Google consertar isso? Podemos confiar que o Google vai consertar a si mesmo? E isso é mesmo consertável? Essas são perguntas difíceis, e não acho que alguém tenha a resposta", diz ele. "A única coisa que posso dizer com certeza é que não acho que eles estejam fazendo o suficiente."

sábado, 2 de novembro de 2024

Pensamento do Dia



Foi um erro supor que a eleição em São Paulo seria um embate entre direita e esquerda

Se estivermos em busca do que esteve em disputa nas eleições municipais de 27 de outubro, em São Paulo, descobriremos que foi o nada protagonizado pelo ninguém. Somados os “votos” brancos e nulos aos “votos” dos que votaram abstendo-se de votar, que de fato é voto, veremos que o grande vencedor foi o “ninguém”. Não só pela incerteza que caracterizou essa eleição, mas também pelas características da situação eleitoral em relação a eleições passadas.

Dizer que a zona leste da cidade era petista e de esquerda, tornou-se reduto do forasteiro Marçal e de um Nunes, que ainda se pensa como vice-prefeito ou mesmo subprefeito de Parelheiros, nada diz além do fato de que ninguém é dono do eleitorado. Nem a esquerda nem a direita, até porque esquerda e direita não têm sido, de fato, protagonistas primários do processo político. O são meramente adjetivos.

É preciso reconhecer que a cidade já não é propriamente uma cidade fabril nem operária. Sua periferia e seu subúrbio são espaços de vaivém cotidiano dos que moram num lugar e trabalham em outro.


As cidades do subúrbio, que foram cidades industriais e proletárias, tornaram-se cidades-dormitório. O crescimento econômico e a decorrente especulação imobiliária empurraram os trabalhadores para fora. O espaço proletário transformou-se em espaço de classe média.

A reestruturação produtiva da indústria e a migração das indústrias para espaços distantes, onde a terra é muito mais barata do que na região metropolitana de São Paulo, mudou radicalmente a territorialidade paulistana.

Hoje é possível prever que os municípios da Grande São Paulo, nos próximos dez a vinte anos, estarão muito próximos do desaparecimento, subsumidos por uma nova territorialidade, a da metrópole, com nova configuração político-administrativa.

Esse processo teve início no governo de Mário Covas, quando ele reconheceu a necessidade de aglutinação em consórcios de municípios da área metropolitana para atendimento conjunto de demandas e necessidades que isoladamente já não tinham condições de atender.

A complexa rede de transporte sobre trilhos, vislumbrada pelo então governador José Serra, com a possibilidade de que moradores da Baixada Santista pudessem morar em Santos e trabalhar em São Paulo, está sendo implantada. A área metropolitana se estenderá, em pouco tempo, a Campinas, Santos e Sorocaba. Com o futuro trem-bala, chegará a São José dos Campos.

O transporte sobre trilhos recriará a metrópole e seu centro. Os órgãos do governo do Estado devem retornar ao centro velho e histórico, completamente refuncionalizado.

Nessas mudanças, há muita coisa que a direita não vê nem tem competência para compreender e implementar. Mas a esquerda está ideologicamente atrasada. Conhece rótulos e conceitos não necessariamente científicos para definir a realidade, e não para compreendê-la nem para desenvolver uma práxis condizente com as radicais mudanças sociais e políticas que estão acontecendo.

Quero estar acordado quando morrer

Parabenizo as professoras Arlene Clemesha, Adma Fadul Muhana e todos os que se empenharam em criar o Centro de Estudos Palestinos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A existência deste centro é um acontecimento, e certamente vai estreitar as relações acadêmicas e culturais entre a USP e as universidades da Palestina.

Em 1982, quando o Estado ocupante bombardeou Beirute, o general israelense Rafael Eytan declarou que os palestinos eram “baratas drogadas numa garrafa”. No dia 9 de outubro de 2023, o ministro da Defesa de Israel disse que ia combater “animais humanos”. Com essas mesmas palavras os personagens brancos e racistas de um conto de James Baldwin nomeiam os afro-americanos; depois torturam e queimam até a morte o corpo de um homem negro, como vem ocorrendo com muitos palestinos de Gaza, incluindo crianças.


Como se sabe, James Baldwin, um norte-americano negro e homossexual, foi não apenas um grande escritor e ensaísta, mas também um incansável ativista antirracista e defensor da causa palestina.

Eu me lembrei desse conto enquanto lia o livro Quero estar acordado quando morrer, de Atef Abu Saif (Ed. Elefante). Atef, ex-ministro da Cultura da Palestina, é autor de vários romances, peças de teatro, reportagens e diários.

Os bons livros de ficção dão vida perene às imagens do passado. O jornalismo, quando visceralmente honesto e verdadeiro, dá vida perene às imagens e à catástrofe do tempo presente. O livro de Atef, publicado recentemente, é o testemunho de uma agressão monstruosa, covarde e extremamente cruel que ocorre há mais de um ano.

Como diz o título, Atef quer estar acordado quando morrer. Inúmeras vezes, em dias seguidos ou alternados, ele sentiu ou intuiu que ia morrer. Felizmente sobreviveu. Atef fala dessa sobrevivência, sempre precária, tantas vezes em suspenso, como se a vigília e o pesadelo fossem um estado permanente, ou uma linha tênue, quase invisível, que separa a vida da morte.

Durante quase 90 dias, o escritor foi testemunha do horror dos bombardeios por terra, ar e mar; viu corpos mutilados e desfigurados de amigos, parentes e de tantos outros palestinos que ele conhece, ou que conhecia, pois muitos foram assassinados. Atef narra brevemente a história dessas pessoas, invoca outros bombardeios contra Gaza ao longo deste século, e a primeira Intifada (1987-93), quando perdeu amigos de infância, foi ferido três vezes e preso por vários meses. Ele também nos lembra que esse pesadelo diuturno a que é submetido seu povo tem origem na Nakba, a catástrofe de 1948, quando 750 mil palestinos foram expulsos de suas casas e terras, e centenas de vilarejos e aldeias foram destruídos.

Segundo o saudoso romancista libanês Elias Khoury, a Nakba não acabou. De fato, a catástrofe iniciada antes mesmo de 1948 atravessou a segunda metade do século passado e culminou nesse genocídio executado pelo Estado ocupante, mas que só se tornou possível com a ajuda direta, maciça e incondicional do governo dos Estados Unidos e, em grau menor, de alguns países árabes e europeus.

Atef escreveu em seu diário:

“Todos os dias olho para o futuro como um cego contemplando a noite”.

Edward Said assinalou que todas as ações do poder ocupante visam ao extermínio dos palestinos. Em seguida, acrescentou: “Mas os palestinos não vão desaparecer”.

Penso que Atef e todos nós concordamos com o autor de Orientalismo.

Os palestinos não vão desistir de viver, nem de lutar pela liberdade; não vão desistir de escrever, imaginar, sonhar. O Estado ocupante e racista vem matando poetas, artistas, atores, atrizes, músicos, jornalistas, fotógrafos e cineastas. Mas essa barbárie não é recente. Em 8 de julho de 1972, agentes israelenses mataram em Beirute o escritor palestino Ghassan Kanafani, cuja novela notável Umm Saad é citada no livro de Atef. Em 6 de dezembro de 2023, assassinaram o professor e poeta Refat Alareer, autor do poema Se eu tiver de morrer, traduzido em 30 idiomas e lido nas redes sociais por mais 30 de milhões de pessoas. As bombas calaram o poeta, mas não o poema, cujo título premonitório refere-se à morte do autor, mas os versos aludem liricamente à vida, à infância, à liberdade. Refat Alareer vive e viverá nesse poema, que se tornou um dos símbolos mais potentes da resistência: um canto universal escrito em árabe por um jovem professor de literatura de língua inglesa de uma das 19 universidades de Gaza que foram destruídas, juntamente com livrarias, escolas, museus, teatros e centros culturais.

Mahmud Darwich, outro grande poeta palestino, escreveu no livro Memória para o esquecimento: “os fatos devem falar”. Atef Abu Saif deu voz aos fatos, que a maior parte da grande imprensa oculta, manipula ou distorce.

No posfácio de seu livro, Atef Abu Saif dirige-se ao leitor:

O que você tem nas mãos não foi planejado como um diário. Quando comecei, escrevia esses textos diariamente porque queria que as pessoas soubessem o que estava acontecendo. Queria que existisse um relato de eventos caso eu morresse. Senti a presença da morte tantas vezes… Conseguia senti-la pairando sobre mim, em meu ombro, e escrevi como uma maneira de resistir a ela, de desafiá-la – se não para derrotá-la, ao menos para não pensar nela. Como a guerra continua, só consigo pensar em sobrevivência. Não consigo lamentar. Não consigo me recuperar. Minha dor teve de ser adiada. Meu luto postergado. Agora não é hora de pensar nisso. Neste livro, porém, consigo ver todos que amei e perdi, e posso continuar conversando com eles. […] Ainda posso ainda posso acreditar que eles estão aqui comigo.

Nós, neste auditório, estamos com você e com o povo palestino, Atef.
Milton Hatoum

Um defeito de pele que está nos nossos olhos

“Nós nascemos com uma deficiência”, disse-lhe o pai. “A deficiência é a nossa cor”. E, por isso, explicou, “temos de trabalhar mais, de nos esforçarmos mais”. Cresceu com essa certeza e com a marca de ser “do bairro”, de vir das barracas. Há demasiadas crianças a aprender cedo essa lição. A de que nascem com um defeito colado à pele, um problema que se manifesta nos lábios grossos, nos narizes achatados, nos cabelos crespos. Olham-nos de lado, as pessoas mudam de passeio quando se aproximam em ruas escuras, os seguranças perseguem-nos instintivamente nas lojas, as mulheres agarram-se às malas quando os veem. São suspeitos.

Demorei demasiado tempo a percebê-lo. Para lá chegar, foram precisos muitos relatos como este sobre o que uma rapariga ouviu do pai, ainda criança. Histórias como esta esbarraram demasiadas vezes na minha incredulidade. Seria possível? Somos cegos ao que não sentimos. Para quem nasce branco, o racismo pode ser invisível. Porque o racismo é uma coisa que se sente na pele. Crava-nos as unhas sem deixar marcas que se possam ver.



A discriminação faz-se num jogo de sombras. As coisas não são evidentes. O mundo tem demasiados matizes de cinzento. E das outras cores todas. “Não existe cor de pele”, corrijo pela enésima vez, enquanto o meu filho mais novo me pede um lápis bege. Uma e outra vez, é preciso corrigir o que nos parece natural, mas não é. Houve um momento em que aprendemos aquilo que repetimos sem pensar.

Somos parte de uma engrenagem. Muitos dos nossos movimentos nasceram muito antes de nós. É preciso um esforço enorme para travar essa máquina e perceber como nos impele a triturar os outros.

Os outros são sempre outros. Nunca somos nós. Nós somos diferentes. E há tantos matizes e tantas maneiras de não as vermos, de não nos vermos.

Encontro um homem vestido com uma djellaba azul clara e um pequeno hijab kippah de crochet branco no topo da cabeça, longas barbas pretas apenas abaixo do queixo e pele escura, que faz questão de me mostrar que fala Português enquanto me conduz num Uber. É simpático, bem-disposto, fala-me das notícias do dia e de quanto o impressionaram as histórias de tumultos e autocarros queimados à volta de Lisboa.

O carro ainda mal entrou na estrada principal que há de levar-me ao meu destino e já o simpático motorista sentencia: “A culpa é dos africanos. Portam-se muito mal”. E, antes que eu tenha tempo de responder, conta-me que mora na Reboleira, onde teve problemas com vizinhos africanos.

Hesito. “O que devo dizer a este homem?”, pergunto-me, enquanto cravo os olhos na sua pele escura. “Já alguma vez foi maltratado por ser muçulmano?”, arrisco. Detém-se, como se não percebesse a pergunta. Não percebe. Insisto.

Aos poucos, vou tentando confrontá-lo com a forma como o vê quem olha para a maneira como está vestido e o entende como uma ameaça. Um outro. Ele que olha para os africanos como “outros”, todos iguais, é cego à ideia de que também ele pode ser um “outro” ameaçador.

Pergunta após pergunta, vejo-o a perceber o que lhe estou a tentar dizer. E é, então, ele que me pergunta por Odair Moniz, pelo homem que morreu baleado pela polícia. A cada resposta, a cada detalhe, faz um esgar, abana a cabeça. “Não é justo”, repete.

O carro para, cheguei ao meu destino. “É uma mulher muito inteligente e o que diz é justo”, diz-me com o sorriso sincero de quem chegou a algum lugar. Comovo-me com a ideia de que o levei até ali, quando é tão difícil sair do lugar de onde estamos.

Às vezes, é difícil ver. É quase sempre difícil ver. Mas a empatia é uma lente de aumentar que ajuda muito. Perceber que o “outro” também podemos ser nós ajuda muito.

Ninguém nasce com uma deficiência. O mundo é que não tem capacidade para nos acolher a todos da mesma maneira. Não há defeitos de pele. Há olhos que não sabem ver. Mas estamos sempre a tempo de aprender.

O fantasma da Saúde na era da IA

Nos últimos anos, a proliferação de desinformação na área da saúde atingiu proporções alarmantes, especialmente nas plataformas digitais. João Henrique Rafael Junior, analista de Comunicação do Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto (IEA-RP) da USP, monitora essa situação desde 2019, quando começaram os trabalhos da União Pró-Vacina (UPVacina), observando como o ecossistema digital, em particular o Facebook, se tornou um terreno fértil para propagandas de remédios milagrosos. “Houve uma transição dessas propagandas do conteúdo orgânico para um modelo patrocinado, no qual muitos lucram com anúncios que colocam em risco a vida das pessoas”, destaca Rafael Junior.

Em um trabalho conjunto entre o IEA-RP e a Rádio USP Ribeirão, utilizando ferramentas da própria plataforma Meta, como a Biblioteca de Anúncios, foram mapeadas essas campanhas em dois dias do mês de setembro (25 e 29). A estratégia foi capturar e registrar manualmente esses anúncios, uma vez que, após a veiculação, eles são removidos sem deixar rastros. Com isso, foram coletadas 513 publicidades que promoviam produtos sem mostrar comprovação científica e muitas vezes sem autorização dos órgãos reguladores.

Entre os principais tópicos dessas propagandas estão tratamentos para diabete, saúde sexual, emagrecimento e problemas de visão. “O que vemos é uma mudança de paradigma proporcionada pela inteligência artificial (IA); conteúdos que antes eram restritos, na sua maioria, a textos e imagens estáticas, foram aprimorados para vídeos elaborados que manipulam imagem e voz de personalidades e autoridades. Também pode ser observado um aumento substancial em escala, com centenas e até milhares produzidos e impulsionados diariamente”, avalia Rafael Junior.




O professor Fernando Bellissimo Rodrigues, infectologista e chefe do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, alerta sobre os perigos da desinformação na saúde, que se intensificam com o uso crescente das redes sociais. Segundo o especialista, a internet está repleta de informações, algumas confiáveis, outras não, e cabe ao público separar o joio do trigo. “Alertamos as pessoas para confiar menos em informações oriundas de perfis individuais nas plataformas digitais e procurar fontes mais confiáveis, como associações de profissionais da saúde ou entidades, como a Sociedade Brasileira de Geriatria ou a Associação Brasileira de Nutrição, que são mais confiáveis do que opiniões divulgadas por influenciadores nas redes sociais”, afirma.

Rodrigues alerta, ainda, que a desinformação afeta de maneira desproporcional as pessoas com menor nível educacional. “A população com menor escolaridade tende a ser mais vulnerável a promessas milagrosas, embora pessoas de alta escolaridade também acabem sendo enganadas.”
Padrão perigoso

Essas campanhas patrocinadas, além de utilizarem imagens e logos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de maneira possivelmente fraudulenta, também exploram personalidades públicas para aumentar sua credibilidade.

O levantamento revelou que 27,5% dessas propagandas utilizam a imagem do médico Drauzio Varella, uma das figuras mais respeitadas na área da saúde no Brasil. Outras personalidades, como âncoras de telejornais e artistas renomados também aparecem.


As personalidades mais utilizadas nesses anúncios são, além de Drauzio Varella, o presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, a apresentadora Ana Maria Braga e âncoras de telejornais nacionais, que alcançam milhões de pessoas. Além delas, aparece o deputado Celso Russomano e figuras como Carlos Alberto de Nóbrega e Susana Vieira, também frequentemente usadas, muitas vezes em anúncios que simulam entrevistas e programas televisivos para conferir um ar de autenticidade.

Em entrevista à Rádio USP Ribeirão Preto, o médico Drauzio Varella fez duras críticas ao uso indevido de sua imagem e voz em propagandas manipuladas por inteligência artificial que circulam pela internet. Ele classificou essas práticas como um “crime contra a saúde pública”, destacando que muitas pessoas, especialmente as mais vulneráveis, acabam acreditando que ele está de fato promovendo os produtos. “Essas propagandas de supostos medicamentos com meu nome, algumas delas até com a minha voz montada por IA, são um crime”, afirmou.

Varella também mencionou o papel das plataformas de redes sociais na disseminação dessas informações falsas. Ele destacou a Meta como uma das principais responsáveis por permitir a circulação desses conteúdos. Para o médico, essas quadrilhas atuam em conivência com as plataformas, especialmente a Meta, que distribui isso para todos os lados, acrescentando que “as plataformas não têm interesse em remover os vídeos, já que lucram com a divulgação”.

O médico também revelou que está movendo uma ação contra a Meta, em função do uso da sua imagem, mas é cético quanto ao sucesso da iniciativa. “A chance de ganhar é muito pequena, porque, claro, eles são muito poderosos”, disse Varella. Apesar disso, ele mencionou uma denúncia ao Ministério Público que, segundo ele, já conseguiu identificar duas quadrilhas envolvidas nesse esquema. Para Varella, as plataformas são “tão criminosas quanto aqueles que divulgam essas falsidades”.

Já a especialista em Vigilância Sanitária da Gerência de Fiscalização da Anvisa, Alessandra Pessoa, também em entrevista à Rádio USP Ribeirão Preto,destacou que o monitoramento do comércio eletrônico e da publicidade de produtos de saúde na internet se intensificou após a pandemia. “A Anvisa iniciou em 2021 o monitoramento ativo de propaganda na internet, utilizando inteligência artificial para rastrear produtos fiscalizados em plataformas de comércio on-line 24 horas por dia, sete dias por semana. Com essa iniciativa, chamada Epinette, já foram rastreadas mais de 100 milhões de páginas, das quais mais de 200 mil continham algum tipo de conteúdo irregular”, informa a especialista.

Entre os principais desafios enfrentados pela Anvisa, Alessandra aponta a grande quantidade de sites e perfis que fazem publicidade de produtos regulados, além da dificuldade de caracterizar como publicidade alguns conteúdos postados nas redes sociais por figuras públicas, como artistas e esportistas, ou mesmo por profissionais de saúde de destaque.
Saúde em risco

Essas áreas são especialmente preocupantes, pois os produtos prometem soluções rápidas e fáceis para problemas sérios de saúde, desviando as pessoas dos tratamentos médicos apropriados. Além dessas categorias, outros temas incluem tratamentos para visão (7%), que prometem curas milagrosas para catarata e glaucoma; dermatologia (6%), com produtos que alegam reverter sinais de envelhecimento e eliminar cicatrizes; e medicamentos para gordura no fígado e dores nas articulações (6%), que geralmente têm como alvo os idosos. A análise mostra que algumas dessas propagandas chegam a afirmar, inclusive, que o produto cura o câncer.

Essa segmentação demonstra que as propagandas buscam atingir públicos vulneráveis, especialmente pessoas mais velhas, que podem ter mais dificuldade em verificar a veracidade das informações, e aquelas que estão enfrentando algum problema grave de saúde e enxergam no produto a solução para seu caso”, informa o analista João Rafael.

O professor Rodrigues lembra que também há um uso indiscriminado de polivitamínicos e suplementos que, segundo ele, são amplamente propagados como essenciais para a saúde geral, o que, em muitos casos, é enganoso. “Os polivitamínicos têm indicações específicas, como em casos de deficiência vitamínica ou dificuldades de absorção, mas não são indicados para uso generalizado”, critica. Ele destacou que muitos suplementos vendidos em academias não entregam o que prometem. “A proteína de um suplemento não é melhor do que a que vem do leite, do ovo ou da carne”, pontua.

O professor Rodolfo Borges dos Reis, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Urologia e professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, vê com preocupação o crescente uso de suplementos alimentares divulgados na mídia. Segundo ele, esses produtos, por não se enquadrarem na categoria de medicamentos, não passam pelos rigorosos testes de eficácia ou regulamentação da Anvisa, o que resulta na ausência de estudos científicos que comprovem seus benefícios. “A população muitas vezes se deixa fascinar por remédios naturais que, além de serem ineficazes, podem causar danos, já que não foram devidamente testados”, alerta o professor.

O professor, que é especialista em Urologia Oncológica, também destaca que a comercialização desses suplementos, muitas vezes feita por meio de plataformas digitais e impulsionada por ferramentas de inteligência artificial, seleciona grupos-alvo suscetíveis a determinadas doenças. Essa prática, segundo o professor, é preocupante, especialmente no caso de produtos que afetam o eixo hormonal e são vendidos como fitoterápicos. Ele reforça a importância de consultar um médico especialista, como um urologista, para obter orientações adequadas. “Existem medicamentos eficazes para tratar e aliviar os sintomas urinários da hiperplasia prostática benigna, além da necessidade de descartar o câncer de próstata em estágios iniciais ou avançados”, explica.
Máquina de desinformação

O levantamento mostra que 83% dessas propagandas estão no formato de vídeos e 17% utilizam imagens estáticas tradicionais. Em relação aos vídeos, fortes evidências indicam que 62% usam manipulação por IA com informações falsas. “Esses fatores revelam uma preferência clara pela produção de vídeos, que são mais eficazes para atrair e engajar o público. É um mecanismo sofisticado que se apropria da confiança depositada nas figuras públicas e no suposto selo de aprovação da Anvisa para vender produtos duvidosos e, muitas vezes, ineficazes”, destaca Rafael Junior.

A análise também revelou que 96% dos anúncios direcionam os usuários para conversas no WhatsApp, onde o vendedor mantém contato direto com a pessoa, aumentando a vulnerabilidade e a possibilidade de golpes. “Essa tática é extremamente perigosa porque o usuário é incentivado a fornecer seus dados pessoais e, muitas vezes, efetuar compras sem qualquer garantia de segurança ou qualidade”, afirma Rafael Junior.
Dados preocupantes

Dos 513 anúncios coletados, 73% foram veiculados simultaneamente no Facebook e no Instagram, mostrando que a Meta está diretamente envolvida em promover esses produtos. Apenas 26% dos anúncios ficaram restritos ao Facebook e 1% dos anúncios foram exclusivos do Instagram. Essa ampla distribuição é facilitada pela própria empresa, que fornece as ferramentas para segmentar e atingir diversos públicos, gerando lucros significativos com essas campanhas. O analista também chama a atenção para o fato de o Facebook, o Instagram e o WhatsApp serem produtos da empresa Meta.

Os dados evidenciam que o Facebook e o Instagram hospedam essas propagandas e lucram com elas, devido ao uso intensivo de suas ferramentas de publicidade. Rafael Junior destaca que, apesar das limitações impostas pela plataforma, como a restrição de anúncios de medicamentos, que exigem prescrição médica, essas regras são facilmente contornadas pelos anunciantes. Alguns desses produtos, anunciados como naturais ou cosméticos, escapam das regulações permitindo a proliferação de informações duvidosas.

Além disso, os dados também revelam que quase 80% das páginas que promovem essas propagandas são novas, criadas ainda em 2024, e cerca de 90% delas possuem menos de 2.500 seguidores, evidenciando que os responsáveis operam de maneira estratégica para evitar detecção. Caso uma página seja denunciada ou bloqueada, rapidamente outra é criada, mantendo o esquema ativo. “Esse perfil, de página pequena e recém-criada, de maneira alguma seria capaz de atingir um público mais amplo se o conteúdo não fosse impulsionado”, diz Rafael Junior.

Para o analista, a prática evidencia um problema sistêmico: “O próprio Facebook se beneficia ao permitir a criação de páginas, lucrando com as propagandas enquanto alega promover segurança e regulamentação”.

Apesar dos esforços de regulamentação nas plataformas digitais para conter anúncios enganosos, o professor Rodrigues acredita que tais medidas são insuficientes. “As notícias falsas continuam circulando impunemente e há uma dificuldade tanto jurídica quanto técnica para responsabilizar os autores dessas fraudes.”

A gerente de fiscalização da Anvisa alerta para os riscos associados ao consumo de produtos de saúde sem a devida orientação. “O primeiro ponto é não usar medicamentos ou produtos de saúde sem a orientação de um profissional habilitado. Outro ponto fundamental é desconfiar de produtos que prometem resultados milagrosos, como emagrecimento rápido ou cura de doenças crônicas, porque geralmente não passaram por testes ou comprovação científica”, ressalta Alessandra, enfatizando a importância de verificar se o produto está regularizado junto aos órgãos de vigilância sanitária. Essa verificação pode ser feita no site da Anvisa neste link.

Para combater essas práticas, a Anvisa estabeleceu uma aproximação com diversas plataformas de comércio eletrônico, orientando-as sobre como verificar a regularização de produtos antes de serem expostos para venda. “Essa parceria já permitiu melhorias nos critérios de exposição desses produtos nos sites”, afirma.
Consequências para a saúde pública

O impacto desse tipo de propaganda é profundo nas pessoas que abandonam tratamentos convencionais para adotar as soluções milagrosas apresentadas nos anúncios. Produtos que prometem cura para diabete incentivam pacientes a suspenderem o uso de insulina, enquanto remédios que alegam tratar a próstata são vendidos como alternativas aos procedimentos médicos aprovados. Em outro exemplo alarmante, medicamentos para cura de problemas de visão incentivam a suspensão de cirurgias oftalmológicas, o que pode resultar em complicações graves para os pacientes.

Sobre os tratamentos milagrosos para catarata e glaucoma, a professora Cássia Senger, do Departamento de Oftalmologia e Anomalias Craniofaciais da Faculdade de Medicina de Bauru (FMBRU) da USP, alerta para os perigos de confiar em promessas de cura rápida e soluções não comprovadas. “É fundamental que as pessoas entendam que não há uma cura milagrosa para as doenças crônicas degenerativas”, enfatiza. Ela destaca a importância de buscar informações seguras, consultando a literatura científica e verificando se o tratamento sugerido é regulamentado pelos órgãos de saúde.

A professora também chama a atenção para os riscos do abandono de tratamentos convencionais, especialmente no caso do glaucoma, uma doença degenerativa e irreversível. “O paciente que para o tratamento indicado e adota medidas alternativas acaba perdendo o acompanhamento adequado. O glaucoma é uma doença silenciosa, sem dor ou incômodo, e quando o paciente percebe, a perda da visão já ocorreu e é irreversível.”

Além disso, ela ressalta que, no caso da catarata, a única solução viável atualmente é a cirurgia. “Não existe colírio, exercício ou medicação oral que resolva a catarata. A cirurgia é o único tratamento eficaz, e o atraso na realização desse procedimento pode aumentar os riscos.”

A oftalmologista reforça a necessidade de campanhas de conscientização. “A comunidade oftalmológica busca colaborar e combater a desinformação, promovendo acesso a informações corretas e seguras sobre as doenças oculares, especialmente através do Conselho Brasileiro de Oftalmologia.”
Caminhos para o combate à desinformação

Pelos riscos que oferecem, as plataformas digitais precisam ser responsabilizadas e reguladas com maior rigor para impedir que continuem lucrando com anúncios que promovem desinformação e produtos duvidosos. “Além disso, campanhas de conscientização e verificação de informações, especialmente em temas relacionados à saúde, devem ser ampliadas”, enfatizam todos os entrevistados.

Sobre a importância de uma legislação mais rigorosa para combater a desinformação na área da saúde, a professora Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP e líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial do CNPq-USP, destacou que a disseminação de informações falsas, especialmente durante crises sanitárias como a pandemia da covid-19, motivou a apresentação de projetos de lei no Brasil. “Um exemplo é o PL 693/2020, que trata da responsabilidade sanitária das autoridades públicas e tipifica o crime de divulgação de informações falsas que coloquem em risco a segurança sanitária.”

Segundo a professora, embora já existam iniciativas como o Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como o “PL das Fake News”, que visa à responsabilização das plataformas digitais, a eficácia dessas medidas depende da conscientização da população. “Podemos criar leis rigorosas, mas, sem educação, o combate à desinformação será limitado, especialmente na área da saúde”, alerta a professora.

Cristina Godoy também ressaltou o papel das plataformas digitais na disseminação de informações falsas e como estas devem ser responsabilizadas ao serem notificadas judicialmente sobre conteúdos nocivos à saúde. Ela explicou que, além de remover o conteúdo prejudicial, as plataformas devem estar sujeitas a uma regulamentação mais rígida. “O debate sobre o papel dessas plataformas está presente em fóruns nacionais e internacionais, como exemplificado pela União Europeia, que já adotou medidas para impor responsabilidades mais severas às empresas digitais.”

A professora Cristina, que também coordena o Grupo de Estudos em Direito e Tecnologia (TechLaw) do Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto (IEA-RP) da USP, enfatizou que, além de uma legislação adequada, é essencial o desenvolvimento de estratégias educacionais para que a sociedade saiba identificar e evitar a desinformação, principalmente no campo da saúde. Ela citou, como exemplo, o guia virtual elaborado em parceria com a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, voltado para a capacitação de agentes de saúde no combate às notícias falsas.