Nas arenas e, sobretudo, nas piscinas, todos se despem, revelando o que Marcel Mauss — num ensaio de 1935, quando 11 jogos olímpicos já haviam sido realizados, chamou de “técnicas de corpo”. Essas posturas que, a despeito de nossas motivações, manifestam-se involuntariamente, já que nos foram impostas de fora para dentro.
São exemplares dessas técnicas o comer parcimonioso mesmo morto de fome; o soltar um “ai” quando se sente dor, como se faz no Brasil, e não um ouch, como faz um americano. Você jamais vai deixar o seu “ai!”, do mesmo modo que o abraço será contido pelos americanos. Ele é caloroso, e calvinistas são treinados para abolir o calor humano. Santa Joana d’Arc, que se vestia de soldado para lutar, foi desmascarada quando a tropa assava castanhas. Joana pediu sua porção, um soldado atirou-lhe as castanhas e ela abriu, em vez de — como fazem os homens — fechar as pernas. As técnicas de corpo denunciaram sua condição.
Em todos os esportes notam-se práticas que, por trás do “atleta universal”, desvendam o membro de um grupo particular. Já falei do “drible” que abrasileirou o futebol no Brasil. No basquete, impressiona-me o “enterrar” veemente dos americanos negros como — quem sabe? — ajustar contas com odioso e perene preconceito vigente nos oficialmente igualitários Estados Unidos. Pois, como se sabe, o basquetebol foi roubado pelos negros, que deram a esse esporte uma elegância de balé russo.
O mesmo ocorre nas comemorações nas quais os atletas se despem de suas contenções olímpicas e choram ao ouvir o hino dos seus países. Nesse momento, o esporte é englobado pela terra onde nasceram. O ideal olímpico de competir, e não de ganhar ou perder, é permanentemente desmentido pelo humano concreto e festivo quando pulamos na vitória ou abaixamos a cabeça na derrota. Na efusão e no luto, as técnicas de corpo de cada sistema cultural mostram a sua força, burlando as regras gerais.
E como ninguém — e muitos menos, como americanos e franceses explicitaram fora e dentro das picadeiros — é feito somente de ética, os gestos fazem com que o tal “espírito olímpico” ganhe, paradoxalmente, um corpo.
Os corpos são biologicamente iguais, mas diferem nas suas expressões. Tornar-se humano comporta um uniforme. Seja uma fatiota completa, um suspiro ou um sensual soltar de cabelo — esse sinal que produz jogos corporais melhores do que os olímpicos, os quais, no entanto, também motivam medalhas de ouro, prata e bronze ou simplesmente desqualificam os contendores.
A propósito disso, vale lembrar o que, em 1905, dizia Mark Twain: “Não há poder sem roupa. É isso que governa a raça humana. Deixem os poderosos nus em pelo, e nenhum estado poderia ser governado. Governantes pelados não poderiam exercer autoridade alguma — eles pareceriam e seriam como todo mundo”.
Talvez por isso as piscinas americanas foram por tanto tempo segregadas. Tal como comer junto, o nadar junto despe papéis sociais e revela por meio de corpos. Negro ou branco, gordo ou magro, feio ou atraente. O despir coletivo das piscinas sugere familiaridade fluidez e mistura. No meio líquido, o desejo flutua e pode superar a norma. Trata-se do que Moneygrand chama do “efeito praia”. Nadar é a modalidade esportiva que mais contraria a moral burguesa.
Findos os Jogos, chega o peso de chumbo da realidade, com seus problemas e dilemas. E como os esportes coletivos são mais importantes no Brasil do que os individuais, ganhamos os Jogos com as medalhas do futebol e do vôlei. Mais uma prova de que, no Brasil, o todo é mais importante do que a parte com quem mantém um instável equilíbrio.
A rotina pós-olímpica vai dizer se vamos confirmar a farsa dos nadadores americanos ou se vamos ser — como os medalhistas olímpicos — fiéis ao melhor de nós mesmos. Essa regra de ouro que faz a glória das disputas nas quais reis e canoeiros tornam-se iguais!
Roberto DaMatta
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