quarta-feira, 28 de agosto de 2019

De Fordlândia a 'bem comum': as contradições na história do interesse estrangeiro

Criticado pelos incêndios na Amazônia, o governo Jair Bolsonaro diz ser vítima de uma campanha no exterior, na qual o discurso ambientalista serviria de pretexto para interesses econômicos de outros países na região e buscaria enfraquecer o agronegócio brasileiro diante de competidores.

Um dos objetivos dessa campanha, segundo o governo, seria questionar a soberania do Brasil sobre a Amazônia, abrindo o caminho para a sua internacionalização ou para a criação de Estados autônomos em terras indígenas.

A tese, que ecoa antigas preocupações das Forças Armadas, teve bastante projeção na ditadura militar (1964-85). Ela se ampara, em parte, em momentos históricos em que estrangeiros cobiçaram as riquezas da Amazônia e nos discursos de agricultores europeus e americanos que defendem a preservação da floresta por temerem a expansão da produção brasileira.

Mas o argumento não leva em conta as várias ocasiões em que estrangeiros investiram na Amazônia com a concordância do Brasil – como o próprio governo Bolsonaro tem estimulado – e o crescente movimento que vê a proteção de florestas tropicais como crucial para mitigar o aquecimento global.

A posição também tende a ignorar o papel que brasileiros - entre os quais indígenas e geólogos - tiveram no arranjo legal que resultou na demarcação de grandes terras indígenas na Amazônia, várias delas em áreas ricas em minérios.

Na tese de doutorado "Amazônia: pensamento e presença militar", a cientista política Adriana Aparecido Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conta que os temores das Forças Armadas quanto à cooptação de indígenas por estrangeiros remontam à época em que a Amazônia teve suas fronteiras demarcadas, no Brasil Colônia.

Marques diz que "os fardados temem que os indígenas contemporâneos ajam como alguns de seus antepassados, que, no passado, aliaram-se a ingleses, holandeses e franceses que pretendiam conquistar terras na região".

Há ainda o receio de que indígenas busquem alianças com grupos não estatais que queiram mudar a ordem política local, como a que uniu indígenas Mura a revoltosos na Cabanagem (1835-1840), no Pará.

"A percepção de que a soberania brasileira sobre a região está ameaçada", escreve Marques, "não é recente e nem pode ser reduzida a uma mera resposta dos militares brasileiros aos constrangimentos impostos pelo sistema internacional".

"Fordlândia", a cidade fantasma de Henry Ford na Amazônia
"A ameaça à soberania brasileira na Amazônia de fato existe e, de vez em quando, ela floresce", diz à BBC News Brasil o general de reserva Humberto Madeira, hoje chefe de gabinete do deputado federal Coronel Armando (PSL-RJ).

O general, que passou a maior parte de sua carreira militar na região, diz que os temores se justificam pelos conflitos e revoltas do passado e por declarações de líderes estrangeiros que veem a floresta como um bem global. "Isso nos deixa bastante preocupados", afirma.

Quando foi presidente da França, entre 1981 e 1995, François Miterrand defendeu a visão de que a Amazônia era um "patrimônio da humanidade". A tese foi reciclada pelo atual presidente francês, Emmanuel Macron, que se referiu à Amazônia como "nosso bem comum" ao criticar os incêndios na floresta nas últimas semanas.

Macron lembrou que a França também é um país amazônico por meio da Guiana Francesa – território francês que faz fronteira com o Brasil. No domingo, ao retomar o tema na reunião do G7, o presidente francês disse respeitar a soberania dos demais países amazônicos.

Segundo Anthony Pereira, diretor do Brazil Institute da Universidade King's College, em Londres, a tese de que a Amazônia "pertence ao mundo" não é nova.

"No livro a Diplomacia na Construção do Brasil 1750-2016, o ex-embaixador Rubens Ricupero escreve sobre o conflito entre Brasil, de um lado, e Estados Unidos, França e Reino Unido, do outro, sobre o acesso ao rio Amazonas nas décadas de 1850 e 1860. Essas três potências argumentavam que, sob o espírito do livre comércio e do liberalismo, suas embarcações deveriam ter o direito de navegar pelo rio. O governo brasileiro finalmente abriu o rio à navegação internacional em 1866", disse.

Adriana Aparecido Marques, da UFRJ, afirma em sua tese que os militares brasileiros se veem como sucessores dos colonizadores portugueses em relação à Amazônia e compartilham da crença de que a região precisa ser ocupada por não indígenas para que o país não a perca.

Porém, a destruição causada por essa ocupação – que historicamente inclui a abertura de estradas, a construção de hidrelétricas e a expansão da agropecuária e da mineração – acaba alimentando no exterior a polêmica tese de que a Amazônia deve ser tratada como um "bem comum" da humanidade, e não apenas um território do Brasil.

Christopher Sabatini, especialista em América Latina no centro de pesquisas Chatham House, em Londres, disse à BBC que países ricos tratam a Amazônia com "arrogância".

"Os países que, em seu processo de desenvolvimento, contribuíram com as emissões de gás carbônico agora querem proteger a Amazônia. Eles poluíram nos últimos dois séculos. É uma visão colonialista", afirmou à BBC News Brasil.

A visão de que a estratégia de colonização da Amazônia segue válida ainda tem defensores nas Forças Armadas.

Em 2008, o então comandante militar da Amazônia e hoje ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, general Augusto Heleno, disse que a política indigenista brasileira deveria ser revista por estar "completamente dissociada do histórico de colonização do nosso país".

Heleno se referia à demarcação de terras indígenas, que impediria a ocupação de partes do território nacional por não índios. "Como um brasileiro não pode entrar numa terra porque é terra indígena?", questionou o general.

É preciso de autorização da Funai para entrar em uma das 567 terras indígenas, embora nem sempre a norma seja respeitada. Entre as principais justificativas estão impedir o contágio por doenças que poderiam dizimar as comunidades e evitar invasões por grileiros. A restrição não vale para as Forças Armadas, que podem entrar em qualquer terra indígena. Muitos pelotões do Exército ficam inclusive dentro dessas áreas.

Apesar da persistência dessas visões, Marques afirma que a desconfiança das Forças Armadas em relação às comunidades nativas vem diminuindo nas últimas décadas à medida que o Exército passou a recrutar mais indígenas como soldados. Hoje vários pelotões do Exército em regiões de fronteira são compostos, em sua maioria, por indígenas.

"A necessidade de aprender com os nativos para combater um possível invasor estrangeiro faz com que o Exército procure incorporar, cada vez mais, indígenas em seu efetivo (...). O fato é que o desempenho dos soldados de origem indígena nos exercícios de sobrevivência na selva fez com que os militares revissem algumas de suas visões acerca da cultura nativa", escreve a professora.

Os temores quanto à soberania brasileira sobre a Amazônia cresceram no século 20, ao longo do qual várias comissões parlamentares foram criadas para investigar o tema, segundo um artigo do cientista social João Roberto Martins, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar-SP).

Na primeira metade do século, governos e investidores estrangeiros passaram a mirar o potencial da região para a produção de borracha, cuja principal matéria-prima advinha de uma árvore local, a seringueira.

Atento ao interesse, o governo Getúlio Vargas negociou com os EUA em 1940 um acordo para fornecer látex para as Forças Armadas americanas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45) e interromper as exportações para os países do Eixo (Alemanha, Japão e Itália).

Anos antes, em 1927, o empresário americano Henry Ford havia fechado um acordo com o então governador do Pará para a construção de um complexo agroindustrial que suprisse a demanda da montadora por pneus. O empreendimento, batizado de Fordlândia, quebrou e foi abandonado em 1945.

Outra tentativa estrangeira com aval governamental de instalar um complexo industrial na Amazônia foi o projeto Jari, que ocupava uma área equivalente à de Sergipe em partes do Pará e do Amapá. Liderado pelo empresário americano Daniel Keith Ludwig, o empreendimento envolvia atividades industriais, agrícolas e a extração de minérios e madeira.

O projeto começou em 1967 com o apoio da ditadura militar, mas os fracos resultados fizeram Ludwig abandoná-lo em 1982.

A Amazônia foi cobiçada também pelo magnata Nelson Rockefeller, que posteriormente se tornaria vice-presidente dos EUA e via na floresta uma "reserva gigante de matérias-primas" para suas indústrias.

Mas ele abriu mão dos planos de investir na região após ser desencorajado pela Casa Branca, para quem o empreendimento poderia incomodar o governo Vargas e prejudicar a relação entre os dois países.

O caso, narrado no livro "Thy Will Be Done: The Conquest of the Amazon" (Seja feita a Vossa vontade: a conquista da Amazônia, de Gerard Colby e Charlotte Dennett), indica que o governo dos EUA sabe há muito tempo que a Amazônia é um tema sensível para brasileiros.

Em 2009, o então embaixador americano no Brasil, Clifford Sobel, disse em um telegrama diplomático revelado pelo Wikileaks que militares brasileiros têm o que ele chamou de "paranoia" em relação a ONGs que atuam na região, vendo-as "como ameaças potenciais à soberania" do país.

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