sábado, 30 de setembro de 2023

A anomalia da religião na política

Neste momento, onde estão as vozes que falam pelo povo brasileiro e nos dizem o que ele se tornou, com os transtornos políticos dos últimos tempos e a ação de grupos reacionários que se empenham em criar um estado de baderna e de desorganização social e política para assegurar seu poder de toscos e incivilizados?

Entre 2003 e 2022, o lugar de referência da fala política brasileira deslocou-se de cenário. Passou lenta e ocultamente das classes sociais e subclasses para as corporações de interesses antissociais. Basicamente porque a mudança do lugar da fala foi também mudança do ator que fala.

Aqui, desde os anos da ditadura militar, a rua tornara-se o lugar de expressão dos que tinham o que falar mas não tinham lugares de dizer. Isso tem expressado a desigualdade da representação política e o decorrente fato de que nem todos estavam ou estão representados nas instituições destinadas a isso.

Nos últimos anos, há, no Congresso, uma bancada da Bíblia, empenhada no enquadramento dos outros em valores de sua crença em vez de enquadrar-se prioritariamente nos preceitos e valores da Constituição que legitima sua diferença.

Já me referi aqui que a República separou o Estado da religião. Com esse ato, legitimou o direito dos evangélicos à diferença, para serem e não para negarem a pluralidade da diferença e o direito dos outros a ela.

A República universalizou a individualidade do direito de crença e de opção religiosa. Democratizou o exercício da fé e até mesmo atenuou e relativizou, em vários casos, as doutrinas em relação à sua interpretação. Abriu caminho para a criatividade religiosa, embora tenha tornado cada vez mais evidente o oportunismo confessional como instrumento de manipulação política mais do que de expressão da fé, que anula a política e a desconstrói. Sobretudo porque veta a democracia ao vetar o direito à diferença religiosa.

A lenta e prudente disseminação do protestantismo no Brasil alterou as referências sociais de conduta de quem se converteu, mas também de quem não se converteu, na medida em que a sociedade é relacional e nesse sentido ressocializadora a partir das mudanças que admite para alguns. Transforma e inova ao modificar os termos do relacionamento social.

Apesar do autoritarismo protestante, tão acentuado e intolerante nos séculos iniciais, que, no essencial se conserva, o protestantismo disseminou a cultura do livre exame da Bíblia e, portanto, uma das bases do pensamento crítico e politicamente transformador.

É significativo que, quando da fundação da Universidade de São Paulo, em 1934, seu inventor e criador, Júlio de Mesquita Filho, diretor do jornal “O Estado de S. Paulo”, estabeleceu que ela deveria ser pública, laica e gratuita, isto é, democrática. Orientou o professor Teodoro Ramos, da Escola Politécnica, matemático e positivista, enviado à Europa para recrutar professores: nada de clericais.

Pude compreender melhor o sentido dessa opção na cultura uspiana quando, professor catedrático na Universidade de Cambridge, fui convidado pelo master de St. John’s College para as celebrações da festa de São João Batista, na capela.

O sermão teve como título “A contribuição do calvinismo no desenvolvimento da ciência em Cambridge”. É significativo que um dos cientistas que revolucionaram a ciência no século XIX foi um cientista com formação em teologia, Charles Darwin, o pai da teoria da evolução, com o livro “A origem das espécies”. Exatamente o contrário de tudo que se diz sobre ele e sua teoria, especialmente em igrejas evangélicas.

O fato de haver em nossas casas legislativas a esquisita presença de uma bancada da Bíblia não quer dizer que nossos políticos evangélicos perfilhem os valores e a cultura da verdadeira tradição protestante nem quer dizer que a conheçam.

Há exceções, como a da senadora Eliziane Gama, maranhense, evangélica e filha de pastor pentecostal, que tem uma límpida biografia de compromisso ético e político com os valores da democracia em nome de sua fé, o que se reflete nas orientações que adota em face das questões candentes dos embates parlamentares.

E há, também, a do Pastor Henrique Vieira, fluminense, da Igreja Batista do Caminho, com três bacharelados, em ciências sociais, teologia e história. Excepcional conhecedor da Bíblia, faz parte do grupo de ministros evangélicos que entrou na política para o confronto desconstrutivo com as insuficiências teológicas e bíblicas de ativistas do fundamentalismo. Sua veemente e erudita contestação da interpretação anticristã da Bíblia na recente questão dos costumes foi um momento memorável na presença de um evangélico como ele na Câmara: a de um civilizador da política.

Você está mais próximo de cair num esquema de pirâmide do que imagina

O roteiro é sempre o mesmo. Você recebe o convite de um amigo para um jantar. No encontro, mal tem comida, mas uma proposta de investimento com altíssimos rendimentos. Você só precisa dar uma taxa de entrada. Parece irresistível, mas fuja. É um esquema de pirâmide.

Esquema de pirâmide é um modelo de negócios que garante o lucro dos “investidores” com o recrutamento de novos “investidores”. Chega uma hora em que não há mais recrutados e a galera da base fica chupando o dedo.

Se você acha que nunca caiu em um, engano o seu. Hoje em dia, praticamente tudo é um gigantesco esquema de pirâmide.

Se um amigo te pergunta se você tem fritadeira elétrica, cuidado, é o esquema de pirâmide da air fryer. A ideia era só ter um frango saudável empanado. De repente você está comprando fritadeiras para a mãe, o irmão, para o escritório e convencendo outras 50 pessoas a comprarem uma. Todo o lucro vai para a companhia de energia elétrica.


Seu médico te indicou exercícios? Atenção. Você vai cair no esquema de pirâmide da academia. Em pouco tempo, estará comprando marmita fitness, whey protein, creatina, lookinho de academia e espalhando a palavra da vida, fitness.

As redes sociais são um enorme esquema de pirâmide. Os usuários postam fotos felizes para outras pessoas que também postam fotos felizes. No fundo, todos estão tristes e o Mark Zuckerberg mais rico.

Adotar um gato: você adota um, pega outro para o primeiro não ficar sozinho e adota outro para não ter briga. Aí adota outro para não ser número ímpar e adota outro porque não acredita em superstição. Em pouco tempo, estão te chamando de “velho dos gatos” e você adota mais três só de raiva.

Podcast também é esquema de pirâmide. O podcaster grava um para outras pessoas, que também querem gravar um podcast para outras pessoas. No fim, não há ouvidos suficientes para ouvir tantos podcasts lançados.

É assim como a própria vida, na qual você trabalha com a promessa de ter dinheiro, mas seu dinheiro vai para quem tem mais dinheiro e, por isso, você tem que trabalhar mais e continua pobre e infeliz.

O pouco dinheiro que resta é gasto com psicólogo, que também tem que fazer psicólogo para lidar com seus pacientes, em outro enorme esquema de pirâmide.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Pensamento do Dia

 


E como dói!

Me permita a gramática o pronome enclítico, me permita Vieira o verso fraco e direto, me permita Camões usar sua língua, me permita Homero a rima tão curta, me permita Bandeira os noves fora da vida, me permita Cardoso o encontro dos ventos. Me permita Cecília o motivo da rosa, me permita Vandré o esquecer das flores, me permita Cascudo o ocaso perdido. Me permita Pessoa a alma pequena, me permita Zé Régio o não vou por aí, me permita Quintana a verdade esquecida. E me permita o pensador poeta, arrependido nos versos da dor, ao ver o destino que deram à Pátria, substituir sua Espanha. Não me doem as pernas, não me doem os braços, não me dói o coração. É o Brasil que me dói.

François Silvestre

O convite é para estar no futuro. Agora?

A IA pode ajudar à salvação? A criação artística é também uma construção dessa salvação? É também uma consciência em si? A Arte torna-se uma intrusa ao procurar soluções, por essa consciência feita de invenções. O desafio é aliar natureza, ciência e imaginação. Em perpétuos movimentos e efémeros presentes, para criar futuros de vida

A sala clara e ampla, entre as janelas translúcidas e as brisas do mar, define o ambiente. As Conferências do Estoril, A Future of Hope, aconteceram para a partilha e reflexão sobre ciência, tecnologia e esperança. O ambiente é sereno, sintonizado com a concentração necessária para ver e ouvir algumas das pessoas mais interessantes do mundo. A audiência espera pela conversa sobre Inteligência Artificial entre quatro cientistas: Aaron Ciechanover, bioquímico, Prémio Nobel da Química em 2004; Anindya Ghose, professor de Análise Económica na New York University’s Stern School of Business; Ricardo Gil da Costa, neurocientista e fundador da Neroverse; Chen Zhiyu, presidente da Metro da China, com a moderação de Leid Zejnilovic da Nova SBE.


O futuro está a acontecer, diz-se. E estamos todos convidados. Para o Nobel de Química, a questão é: “Porque precisamos uns dos outros? Estarmos juntos, é fundamental para a natureza humana? Responde, o cientista israelita de 75 anos: a sociabilização é fundamental para a Paz no mundo. Sem empatia, não há Humanidade.

Para Ricardo Gil da Costa, neurocientista formado nos Estado Unidos da América, a IA é uma ferramenta, com vários métodos diferentes. A IA pode ser eficaz e uma tecnologia muito importante ao serviço da humanidade, mas só se o seu desenvolvimento for feito de uma forma pensada, planeada e devidamente estruturada. Se a integração for feita sem precauções, as consequências da utilização desta ferramenta tão poderosa, podem ser devastadoras. A IA pode contribuir para a eficácia e para a justiça da humanidade e ser um recurso, tal como todos os outros, a ser utilizada de forma democrática. Por exemplo, ser utilizada em telemedicina em regiões pobres do mundo, é uma forma de ajudar a essa democratização. Se a IA pode salvar o mundo, essa é outra questão.

Para Ricardo Gil da Costa, nós podemos destruir o mundo, com ou sem IA. Não é a IA que determina a nossa ação. Somos nós. A IA não é mais eficaz que o cérebro humano. O facto de não ter emoções é uma das falhas. Mas não se deve comparar um sistema biológico com um sistema tenológico. Não deve ser acontecer. Não há comparação, acrescenta Gil da Costa. Não se deve perder a liberdade de pensar. A IA nunca deve pensar por nós. É uma questão central ética.

O segundo romance de Margaret Atwood, Ressurgir (Relógio d’Água, 2014) é, supostamente, uma viagem à procura do pai. Torna-se num encontro bruto com a sobrevivência da Natureza. Escreve a autora canadiana:

“O embaraço que algumas pessoas sentem por serem alemãs, pensei, eu sinto-o por ser humana. Em certa medida era estúpido ficar mais perturbada com a morte duma ave do que com aquelas outras coisas, as guerras e os tumultos e os massacres nos jornais.”

Em 1972, quis a romancista escrever sobre a consciência de que, ao matar-se uma ave, morre também o Planeta Terra. É dessa premonição que, à partida é “apenas” literatura, que nos fala António Damásio. Em entrevista ao jornal Público, em 2017, diz o neurocientista: “Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área é Shakespeare.”

No livro Sentir e Saber (Temas e Debates, 2020) dá conta da importância dos sentimentos para a espécie humana, enquanto mecanismo essencial de sobrevivência, e acima de tudo, de evolução. Se os criadores da IA se baseiam em organismos vivos naturais para melhor eficácia da tecnologia, para Damásio, os cientistas omitiram os sentimentos. Enquanto a IA não for vulnerável à dor, ao frio, ao terror e à fantasia, não será IA suficientemente inteligente. Apenas simula. Não pensa. E sem alegria, não há poesia. Sem poesia, não há consciência. A consciência é a última fronteira entre a Máquina e a Humanidade?

Por coincidência, a autora e compositora Bjork veio a Lisboa, para apresentar a digressão Cornucopia. Em cada canção, em cada cenário, em cada tom, sublinhou a importância da tecnologia como ferramenta essencial para o combate às alterações climáticas. A IA pode ajudar à salvação? A criação artística é também uma construção dessa salvação? É também uma consciência em si? A Arte torna-se uma intrusa ao procurar soluções, por essa consciência feita de invenções. O desafio é aliar natureza, ciência e imaginação. Em perpétuos movimentos e efémeros presentes, para criar futuros de vida.

Apocalipse zumbi

Lembram da semana passada? Pois deu tudo certo. Fui num pé, voltei no outro e, no ínterim, passei três dias em San José, capital do Vale do Silício, terceira maior cidade da Califórnia (atrás de Los Angeles e San Diego) e uma das dez mais populosas dos EUA, lar de gigantes como Adobe, Cisco, eBay, PayPal, Zoom e várias outras de que não me lembro, maravilha do mundo ocidental. A parte de trabalho correu às mil maravilhas, mas a minha experiência pessoal com a cidade foi como abrir rapidamente uma janela e ver um pesadelo acontecendo ao vivo.

Não há ninguém nas ruas.

Há carros e, ocasionalmente, algumas bicicletas, mas viver a pé não é opção numa cidade onde cada empresa tem uma sede maior do que a outra no seu próprio campus. Ao mesmo tempo, nunca houve tanta gente na rua — em tendas, debaixo dos viadutos, em pequenas aglomerações precárias. Muitas dessas pessoas são dependentes químicas, mas outras tantas apenas não têm para onde ir.

A Califórnia vive uma crise de moradia sem precedentes, e San José não é exceção.


Para dar uma ideia: o aluguel de um conjugado não sai por menos de U$ 2 mil. Jovens desenvolvedores que precisam estar no coração do mundo da tecnologia pagam U$ 650 pelo aluguel mensal de cápsulas de dormir empilhadas, chamadas pods, que têm 1,20m de altura e onde cabe um colchão de solteiro (e acham bom negócio). Esses hostels supercompactos, onde é difícil conseguir vaga, têm áreas de convivência e banheiros compartilhados, exatamente como os hotéis cápsula de Tóquio ou os claustrofóbicos microapartamentos de Hong-Kong. Não cheguei a ver nenhum deles; descobri que existem ao pesquisar sobre a crise de moradia na cidade, que parece incongruente diante da vastidão dos espaços vazios.

O meu esquema de mala única falhou desta vez, e precisei comprar uma outra mala. O pessoal do hotel indicou um shopping a 15 minutos de Uber. Pois ele estava quase tão vazio quanto as ruas da cidade. Muitas lojas desoladas e caídas, quando não simplesmente fechadas.

Não achei nenhuma mala pequena e barata na gigantesca Macy’s, nem qualquer funcionário que pudesse me esclarecer os preços do que havia. Para não perder a viagem, resolvi comprar um jeans. São dezenas de marcas, centenas de modelos e tamanhos, milhares de unidades; quase todas já vêm rasgadas.

(Você sabe que está velha quando não consegue mais entender a moda.)

Um mar imenso e compacto de peças feias, cabide após cabide... para ninguém. Pensei em fugir correndo, mas encontrei três que poderiam servir; os provadores, porém, estavam fechados. Andei vários minutos com as peças na mão sem encontrar uma única pessoa.

Havia um provador aberto do outro lado da loja. Lá também não havia nenhuma funcionária, nem mesmo aquela clássica figura que costuma conferir, na entrada, quantas peças a gente está levando. As cabines pareciam todas ocupadas; na verdade estavam vazias, mas cheias de roupas que outras clientes haviam experimentado e deixado por lá mesmo.

Além da crise de moradia, a Califórnia vive também, desde a pandemia, uma tremenda crise de mão de obra.

Na Target havia um pouco mais de gente; em compensação, a seção de malas estava bastante desabastecida. Peguei a primeira que vi e pronto. O que havia em abundância eram produtos para o Halloween, um monte de bobagens que vão servir para um único dia e depois serão lixo até o fim dos tempos.

Ah, sim: havia uma funcionária na caixa. Ela não falava inglês.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Pensamento do Dia

 


Brasil de lixo

De um ato do nosso governo só a China poderá tirar lição. Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens cabe-nos perfeitamente. No que respeita à política nada temos a invejar ao reino de Lilipute.

Machado de Assis

A página do golpe só será virada depois da punição dos culpados

No passado, generais que falavam muito eram quase sempre da reserva que, à falta do que fazer, jogavam dominó em praças públicas do Rio e vestiam terno completo para frequentar a sede do Clube Militar, onde discutiam a situação do país.

Os generais calados eram da ativa, em comando de tropa. A esses, que de fato são os que decidem os rumos do Exército, junta-se agora um novo tipo de oficial: os Calados do B, da ativa, investigados por um golpe que falhou.

Cadê o general Freire Gomes, comandante do Exército até dezembro último? Oito oficiais-generais disseram ao repórter Cézar Feitosa que Freire Gomes relatou que Bolsonaro apelou às Forças Armadas por um golpe para impedir a posse de Lula.

À Polícia Federal, em delação premiada, o tenente-coronel Mauro Cid contou que Freire Gomes chegou a ameaçar prender Bolsonaro se ele insistisse com a proposta de golpe. Por que não o prendeu? Por que não o denunciou? Por que Freire Gomes está mudo?

Por que se calam o brigadeiro Baptista Júnior e o almirante Almir Garnier, à época comandantes da Aeronáutica e da Marinha, respectivamente? Dizem que o brigadeiro ouviu calado a proposta de Bolsonaro, e que a ela o almirante aderiu com entusiasmo.

Os dois e Freire Gomes são cúmplices de um crime. Bolsonaro não se reuniu com eles uma dezena de vezes apenas para trocar ideias sobre um golpe hipotético. Reuniu-se para avaliar se as Forças Armadas estariam dispostas a apoiá-lo no caso de um golpe.

Era o que mais desejavam os generais falantes da reserva, alguns também da ativa, além de oficiais de patente inferior, contrários à volta da esquerda ao poder, e que em 2018 votaram em Bolsonaro e em 2022 se frustraram com a sua derrota.


Os generais calados barraram o golpe. Em julho de 2022, o general Paulo Sérgio de Oliveira, ministro da Defesa, ouviu do secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, que seu país não apoiaria um golpe no Brasil, mas sim o presidente eleito.

Os encarregados de negócios dos Estados Unidos no Brasil, Douglas Knoff, e do Reino Unido, Melanie Hopkins, participaram de reuniões secretas com generais para sondá-los sobre a posição das Forças Armadas se Lula vencesse Bolsonaro.

Quantas vezes de janeiro para cá você não ouviu militares e seus porta-vozes dizerem que “é preciso virar a página”? Por “virar a página”, entenda-se: pôr um ponto final na discussão e nas investigações sobre as tentativas fracassadas de golpe.

Sim, tentativas. Porque foi mais de uma: a que se daria entre novembro e dezembro para impedir a posse de Lula, e a amadora e atabalhoada de 8 de janeiro que resultou na invasão do Palácio do Planalto, do Congresso e do prédio do Supremo Tribunal Federal.

Nas últimas 48 horas, em sucessivas declarações, o senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), ex-vice de Bolsonaro, recomendou que se passe uma borracha no que aconteceu. Quem já foi pego que se defenda. Por que correr atrás de mais gente?

Mourão chamou de “revanchismo” do governo do PT a convocação para depor à CPI do Golpe do general Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro:

“A CPI é para investigar o 8 de janeiro e essa turma aí já estava fora do governo, não teve nada a ver com esse processo. Então a minha visão é muito clara: isso é revanchismo. Não havia necessidade nenhuma (do depoimento de Heleno)”.

Na opinião de Mourão, a convocação de generais como Heleno e Braga Netto tensiona o ambiente com as Forças Armadas, “principalmente com o pessoal da reserva que pressiona, obviamente, o pessoal da ativa.”

Quanto a Bolsonaro, que corre o risco de ser indiciado pela CPI, Mourão afirma:

“É vergonhoso indiciar o Bolsonaro, com base em quê? Tem que aparecer uma prova concreta de que o Bolsonaro financiou, exortou, planejou e preparou os acontecimentos de 8 de janeiro. Ele não fez isso”.

Bolsonaro não é o foco das preocupações de Mourão, e sim seus colegas de farda. É com eles que também se preocupa o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, que diz que as “Forças estão cientes do seu papel de parceiras do governo”.

Parceiras, como assim? Os militares são servidores públicos, pagos por nós, obrigados a trabalhar com qualquer governo e a respeitar a lei acima de tudo. Os que não respeitarem, tanto mais porque andam armados, devem ser punidos com extremo rigor.

A corrente do esforço humano

Certo episódio como epígrafe


Faz pouco mais de um ano, em uma das minhas raras idas ao Rio, cidade sem tantas reservas e preconceitos como São Paulo, fui convidado por um amigo para comer rabada à moda da casa num restaurante típico, bem sujinho por sinal. Meu amigo se fez acompanhar então de um editor carioca especializado na publicação de obras científicas. Cara pálida, o editor, mal se sentou à mesa, começou a discorrer exasperado sobre a precariedade das nossas condições médico-cirúrgicas (soube depois que ele, gravemente enfermo, estava desenganado), passando daí, extensivamente, a invectivar contra o brasileiro. Como a rabada demorava, na primeira brecha arrisquei uma tímida explicação, cujo único pecado foi eu misturar uns parcos condimentos de sociologia e economia no meu papo, dizendo sempre, enquanto me referia à nossa suposta comunidade: “Nós… nós… nós…”. E não tinha desfiado mais do que três contas de um rosário sobejamente conhecido, quando o editor carioca, sempre abatido, me cortou com estranha vitalidade:

“Nós, não. Eu sou europeu!”

Me lembro que em Pindorama, pequena cidade do interior paulista onde nasci e passei a infância, me lembro que até as mínimas coisas de uso trivial, como agulhas de coser, fossem de mão (inglesas) ou de máquina (alemãs), as coisas todas do dia a dia só eram boas, como de fato eram, se fossem estrangeiras. Os produtos alemães gozavam naqueles anos 40 de um prestígio especial. A marca Solingen, de tesouras e outros artefatos de metal, era conhecida do mais remoto homem da área rural. Aos brasileiros, na época, era permitida uma autoconfiança na qualidade da sua produção agrícola e das matérias-primas em geral que eram exportadas para os países industrializados.

No campo da produção cultural, as coisas se passavam mais ou menos do mesmo modo. Apesar do movimento vigoroso, mas incipiente (como incipiente a indústria de manufatura), no sentido de se imprimir um caráter próprio ao que fazíamos, continuávamos importando ou copiando o que era feito lá fora, sobretudo na França. Os brasileiros, além de confiarem no seu futebol, podiam se sentir seguros da sua música popular, do seu Carnaval exuberante, quando as escolas de samba, compostas no grosso por pretos, com passistas e requebros admiráveis, rendiam inclusive homenagem à aristocracia, desfilando nas ruas com fantasias de reis e rainhas.

Podiam acreditar também na excelência de um samba que tematizasse a beleza da “mulata”, as crenças afro-brasileiras, ou a miséria descarnada das favelas, realidades fascinantes sobretudo para estrangeiros à procura de manifestações “exóticas”, no caso cuidadosamente patrocinadas pela classe dominante nacional.

Manufaturados ou cultura, preferíamos então quase tudo que viesse de fora, do estrangeiro, da Europa. E o reverso dessas preferências não era só o desprezo pelo que produzíamos aqui, o reverso era também grande desrespeito por nós mesmos: éramos um povo indolente, lasso de costumes, de pouca inventividade, e outras pechas que maliciosamente nos atribuíam e que aceitávamos em decorrência de uma mitologia racial e de uma mitologia dos trópicos. Aquelas preferências confirmavam pois essas mitologias concebidas por europeus e introduzidas aos poucos entre nós, desde os primórdios pela catequese dos colonizadores e, depois, pela mediação da classe dominante brasileira, que se fazia educar na metrópole. Tanto que ainda hoje, quando alguma cidade do Sul do país se cobre de branco, em um desses raros dias de frio intenso, o orgulho nacional sobe uns graus em certos corações, desaparecendo com a mesma rapidez com que a neve se funde. Com a mesma exorbitância em relação ao clima, ou à etnia, passava-se conclusivamente na época da qualidade do produto para a avaliação do homem: bom era o produto importado, bom era o homem estrangeiro (europeu); ruim era o produto nacional, ruim era o próprio brasileiro. Interpretávamos corretamente então o papel que nos destinavam no contexto internacional. Com sua indústria tosca, o Brasil, em cada cidade ou vila, respondia eloquentemente a certa concepção racial, sentindo-se inferior. Mesmo porque o Brasil, ao mesmo tempo branco, negro e indígena, mas sobretudo pardo, não podia atender aos discutíveis padrões somáticos dos povos brancos supostamente superiores. É claro que, revigorados nas suas tradições racistas, ou então contaminados pela ideologia racial em voga, muitos brasileiros brancos deveriam ora sofrer a nostalgia de uma geografia perdida ora afagar no íntimo (embora nem sempre tão discretamente) suas origens europeias. Mas isso já é uma outra história.

Naqueles anos 40, o mundo estava sendo sacudido, os velhos impérios se desmoronando, novos polos de poder emergindo, novos impérios se esboçando, mas para nós prevalecia a estrutura de costume: o centro do mundo era a Europa (Paris o seu umbigo), o Brasil era parte da periferia, devendo ter os olhos submissos sempre voltados para a matriz. Matriz ao mesmo tempo única e polivalente, qualquer coisa assim beirando uma entidade atemporal, com nada antes, nem depois.

Apesar das mudanças ocorridas no pós-guerra, fossem as transformações no plano interno brasileiro, sobretudo a implantação de um parque industrial, fundamentado numa siderurgia própria e na transferência de técnicas devidamente acompanhadas de capitais estrangeiros altamente recicláveis; fosse o deslocamento dos polos de poder no plano internacional (URSS e EUA, mesmo com suas características e idiossincrasias culturais, seriam percebidos como prolongamento e desdobramento europeus, respectivamente); fossem enfim as transformações ocorridas na própria Europa (perda de hegemonia, situação política um tanto a reboque, “modernização” do seu velho colonialismo através das multinacionais etc.), o prestígio europeu ainda é enorme. Seja pelo seu acervo cultural, mais respeitado talvez que qualquer outro, ou pela sua matreirice política, capaz de lhe emprestar uns ares de autonomia e maturidade, a Europa desenvolvida de hoje continua como um dos referenciais do nosso “atraso”. Ainda recentemente, o humorista brasileiro Henfil, relatando uma viagem de volta, afirmou que saiu da Europa em 1980 e chegou ao Brasil em 1935.

A distância é sem dúvida grande, provavelmente até maior que a sugerida, desde que não se questione a noção de “progresso”, e que se aceite candidamente a Europa como referência, daí que o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, aludindo ao potencial destruidor da tecnologia, afirmou: “Isso não é civilização, francamente; isso é uma porcaria”.


Seja como for, nossas atitudes mudaram ou continuaram mudando nessas quatro décadas. No Brasil tropical, é maior hoje o número de brasileiros que não levam a sério o preconceito quanto ao clima como fator impeditivo de realizações, pelo contrário. O Egito antigo, também tropical, construiu — da perspectiva europeia — uma “grande civilização”. E, note-se, o povo egípcio da Antiguidade não era branco, uma informação que nos foi sonegada pelos manuais escolares. Aliás, é maior hoje, no Brasil multirracial, o número de brasileiros que não se sentem inferiores com sua cor ou com sua mestiçagem, vislumbrando-se na miscigenação uma das nossas melhores contribuições. Sabemos que os europeus, quanto à etnia, são também formados por grupos híbridos, como certas espigas de milho; como de resto foram híbridos todos os grupos humanos das chamadas “grandes civilizações” anteriores. Inclusive a cultura europeia, impregnada de judaísmo e cristianismo, não é mais que o desenvolvimento de uma complexa mistura de elementos provenientes de várias fontes, ou seja, ideias de outras geografias migraram para lá como a migração das andorinhas. Se a imagem é muito lírica, não abarcando ideias inquietantes, digamos que houve também por muitos séculos uma dispersão de vespas em plagas europeias. É bom lembrar que o sucesso europeu, sobretudo nórdico, que não se confunde com as civilizações mediterrâneas da Antiguidade (a Grécia antiga tinha vínculos inclusive com culturas orientais), é fenômeno recente. Na Idade Média, que a ótica dos historiadores ocidentais insiste — com tanto mouro pela frente — em só ver uma idade de trevas, os nórdicos, hoje mencionados como protótipo de “civilizados”, eram povos que estavam se iniciando na história dos vencedores.

Nossas atitudes continuam mudando, embora essas mudanças não possam ser generalizadas, longe disso. O consumidor comum, que não faz turismo no exterior, se é que alguma vez faz pelo Brasil, não costuma pensar em produtos importados e adquire sem relutância o que é fabricado atualmente no país. E cada vez mais cidadãos brasileiros vão introduzindo componentes sociais e políticos nos critérios de avaliação do que é produzido aqui, em geral de qualidade inferior ao similar de lá fora, mesmo quando a marca é multinacional, e é quase sempre. Compreendemos cada vez mais essas diferenças de qualidade, e concluímos cada vez menos nossa suposta inferioridade humana, excluídas as elites brancas. Suspeita-se também cada vez mais que o florescimento cultural de uma nação — respeitado o seu próprio esforço — só acontece com o seu domínio sobre outros povos. É só virar a cabeça sobre o ombro e olhar para trás. Por sinal, a expressão civilized world, tão cara aos ingleses educados, e que inevitavelmente marca os discursos presidenciais americanos, tem muito a ver com sua atuação, não exatamente edificante, entre os povos da “periferia”. A esse propósito, muitos historiadores revelam uma irresistível vocação para o luxo ao exaltarem as realizações dos “grandes homens”, das “grandes civilizações”, sem passarem pelo “anonimato” e pela “periferia”. “Grandes em quê? Grandes por quê? Grandes em relação a quê?” questiona a pensadora brasileira Marilena Chaui. “Grandes e poderosos, isto é, os dominantes, cuja ‘grandeza’ depende sempre da exploração e dominação dos ‘pequenos’”, sem direito à História. Daí que o homem comum assim como os povos periféricos jamais tiveram seus nomes inscritos como vencedores. Entretanto, quando se entra em uma residência bem posta, é legítimo perguntar, diante do orgulho do dono da casa, onde estão os anônimos que assentaram os tijolos. Como seria legítimo perguntar, num giro pelos países desenvolvidos, onde estão os povos, humilhados e ofendidos, que concorreram para o seu brilho.

Dramatizando um pouco mais, mas nunca o suficiente, seria interessante inventariar o que propiciou os grandes surtos culturais, sempre percebidos como expressões maiores da inteligência e da sensibilidade. Quem levasse a cabo essa tarefa só haveria de ouvir gemidos.

Sem a menor dúvida, os colonizadores europeus poderiam realizar sua “tarefa histórica” sem maiores rodeios — a ferro e fogo — como efetivamente fizeram. Coube porém a intelectuais europeus, o que choca mas não surpreende, elaborar uma imagem dos povos que justificasse e legitimasse essa dominação, convertendo-a em “tarefa civilizatória”.

Já no século XVI, o reverendo pe. Sepúlveda justificava o Império Espanhol nas Américas, declarando que o estado de pecado dos nativos faria deles, por um lado, objetos de catequese e, por outro, “instrumentos dotados de voz” (nome dado por Aristóteles aos escravos). Depois do “bom selvagem” de Rousseau, houve o Sexta-Feira de Defoe, um nativo bem menor que o grande Robinson que “criou o mundo do nada”. Melhor que a teologia e o romance, a ciência europeia realizou o seu papel legitimador: além das teorias raciais que privilegiavam o homem branco, a sociologia alemã subestimou o homem dos trópicos ao trabalhar uma explicação sobre o desenvolvimento dos povos a partir das condições geográficas; a antropologia social francesa explicou a “mentalidade primitiva” como pré-lógica; e os pensadores liberais provaram, num passe de mágica, que o liberalismo era verdadeiro na Europa e falso nas colônias.

Para ficarmos bem perto dos nossos dias, não foram os psicólogos sociais americanos que demonstraram que os orientais — os vietnamitas, of course —, devido à grande densidade demográfica, não valorizam a vida, acham a morte algo banal, e desconhecem a dor por ela causada? É de se supor que essas ideias, e muitas outras, foram em parte concebidas pelo pietismo cristão dos europeus, em parte pelo humanismo renascentista, e em parte sob a luz do Iluminismo, cujo clarão permitiu aprimorar também a racionalidade do capitalismo. Sem se confundirem com vespas, menos ainda como andorinhas, aquelas ideias todas migraram até nós, desde os primórdios, como aves de mau agouro, mas sobretudo como aves de rapina. Quebraram o nosso moral, levando-nos a recusar nossas próprias potencialidades humanas, tornando-nos dóceis e servis diante da vontade do colonizador. Aliás, ainda hoje, apesar de mudanças de atitudes, brasileiros, inclusive letrados, continuam a interiorizar ideias colonialistas, não tão grosseiras quanto as ostensivamente racistas. “Este não é um país sério” repete-se com frequência de norte a sul, e quem sabe até com certa exorbitância semântica, o que De Gaulle disse por ocasião da “Guerra da Lagosta”, quando Brasil e França disputavam sobre a pesca em águas territoriais brasileiras.

Homem por excelência da “grandeur” (mereceu uma cama de tamanho especial quando visitou o Brasil), De Gaulle, além de uma envergadura de dois metros, e não obstante autêntico estadista, resvalou no piadismo: existiriam países sérios e países que não são sérios.

Seríamos contudo parciais se não reconhecêssemos que muitos dos antídotos contra a ideologia colonialista nos foram fornecidos por europeus. Nesse sentido, se antes falamos de um modo um tanto pejorativo em importação e cópia, seria agora o momento de falarmos — sem arremedos — em absorção do que interessaria à suposta comunidade brasileira e a que tem legitimamente “direito”, seja à reflexão, à pesquisa, ou às conquistas técnicas (já que certas opções não teriam retorno) realizadas na Europa. Afinal, descartáveis ou não, as ideias são universais, no sentido de que sua produção dependeu da “periferia”, dos “pequenos”, de onde o acervo cultural, pelo menos, não ser patrimônio só da “matriz”, dos “grandes”, pertencendo antes à corrente do esforço humano, marcado por tantos erros e alguns acertos, sempre comovente quando percebido no seu conjunto. Como comovente seria uma esteira ladeada por catadeiras de café, procurando deitar fora os grãos estragados e só deixando passar os sadios, reabastecendo-se no seu curso para repor os grãos sadios que porventura se estragassem com o tempo. Importaria então fazer uma triagem escrupulosa da “cultura europeia” para não se incorrer no cochilo do autor de Os sertões, marco do pensamento voltado para a terra e o homem brasileiros.

Mesmo com claras intenções científicas, afirmando inclusive que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, Euclides da Cunha deixou passar um grão virulentamente contagioso ao endossar a inferioridade racial da mestiçagem, confundido talvez por seus predecessores que escreviam a história do Brasil (Varnhagen, em especial), assim como por seus contemporâneos da imprensa, em geral porta-vozes eficientes dos preconceitos europeus.

***

“Brasil, país do futuro.” Num país de 120 milhões de habitantes, a mesma minoria, que domina no plano interno o grosso da população, se empenharia em reproduzir no plano externo o modelo de dominação. Tentando dar existência àquela profecia dos anos 40, enunciada por Stefan Zweig, um europeu, profecia que veio crescendo no mesmo ritmo da industrialização do país, os últimos governos de exceção acabaram por transferir suas obsessões a um suposto Brasil que, nas suas fantasias precoces de menino, vinha se apresentando sem qualquer pudor ao mundo como “potência emergente”. E quem fala em “potência”, segundo o jargão dos moralistas, está pensando na obscenidade do poder, investido de autoridade. A maioria dominante, por sinal, dividida, na medida em que é ameaçada, entre a cooperação com o capital estrangeiro e o posicionamento nacionalista, não só adotou a ideologia do desenvolvimentismo (o país tem de crescer a qualquer custo, conforme a concepção do “Brasil Grande”), mas ao mesmo tempo começou a incomodar, no plano externo, alguns humildes vizinhos sul-americanos, tentando por outro lado atravessar ousadamente o Atlântico, de olho numa fatia da África, exportando em manufaturados quase o equivalente ao que exporta em matérias-primas, vislumbrando até, no incipiente comércio de armas, uma galinha de ovos de ouro, sem falar que ensaia, de lápis sobre a orelha, uma meia dúzia de multinacionais. Dizem que o “milagre” acabou, mas o que não acabou e nem vai acabar é o sonho de grandeza: haverá com certeza novas arrancadas. E depois, é tudo tão imprevisível que até uma surpresa apocalíptica, aí pelo meio da década, pode dar uma ajuda generosa aos imediatistas da grandeza nacional.

No campo da produção cultural, a autoconfiança aumentou muito nas últimas décadas, fundamentada em parte nas atividades intelectuais, que se esforçam intensamente em esboçar a fisionomia brasileira, procurando descolonizar-se mentalmente, insistindo em que devemos nos voltar para a nossa realidade, tentando afirmar com decisão nossa própria personalidade, no que vêm conseguindo resultados realmente consideráveis. Mas, a longo prazo, tudo no fim converge, não importam os motivos: em meio à miséria de hoje, essas mesmas atividades, sobretudo as artísticas, mal suspeitam que já podem estar modelando a máscara de futuros homens arrogantes.

O pecado original. Pensando nas atuais hegemonias, ou nas futuras, e em como foram, são, ou serão transitórias tantas hegemonias ao longo da História (afinal, o que é um século, o que é um milênio, o que é qualquer medida como segmento de tempo?), somos remetidos para as inevitáveis relações de poder, sempre investidas de autoritarismo.

Supondo-se que todo homem seja portador de uma exigência ética, não há como estar de acordo com a dominação de uns sobre outros. Penso, como muitos, que seja possível imaginar caminhos diferentes para as relações entre indivíduos e entre povos, e penso mesmo que não existe nada mais belo e comovente do que perseguir utopias. Só que não seria fácil resistir à crença, como não se resiste a uma paixão, de que, em certo sentido, o homem é uma obra acabada, marcado não só pela sua experiência passada, mas marcado sobretudo — e definitivamente — pela sua dependência absoluta de valores, coluna vertebral de toda “ordem”, e encarnação por excelência das relações de poder. Incapaz de dispensá-los ao tentar organizar-se, é este o seu estigma; sempre às voltas com valores, vive aí sua grande aventura, mas também sua prisão. Pode ao reorganizar-se arrefecer desequilíbrios entre dominadores e dominados, pode inclusive subverter a “ordem” estabelecida, mas estaria sempre reproduzindo a estrutura de poder.

Se é assim, é também mais ou menos óbvio que, entre os dominados, só os tolos se comprometem com a “ordem” que os subjuga. Aos lúcidos, como sugeriu um pensador do século passado, tudo seria permitido.
Raduan Nassar, "Lateinamerikaner über Europa"

terça-feira, 26 de setembro de 2023

A defesa do golpista está pronta

Em 2022, o vereador Camilo Cristófaro usou em plenário a expressão "é coisa de preto" para se referir a sujeira nas calçadas. A frase foi captada pelo sistema de som e originou uma cassação por quebra de decoro. Esse tipo de fala é desgraçadamente comum no Brasil, todos sabemos. O que espanta é que só agora, pela primeira vez na história da Câmara Municipal de São Paulo, um parlamentar tenha perdido o mandato por ato de racismo. E antes, quantos casos passaram batido?


Também corriqueira no país foi a impostura adotada pelo advogado de Cristófaro, que comparou seu cliente a Adolf Eichmann, nazista responsável pela deportação de judeus para campos de concentração. Após a derrota na Segunda Guerra, ele fugiu, foi capturado em Buenos Aires pelo Mossad, serviço secreto israelense, e executado por enforcamento. "Eichmann não foi julgado, foi prejulgado", discursou o doutor, desqualificando o tribunal de Jerusalém.

Por desencargo, alguns vereadores reagiram aos argumentos falaciosos –os quais, igual ao racismo, estão assumindo um caráter estrutural e permanente no Brasil. No fundo, ninguém se surpreendeu com a peroração que, não por acaso, lembra a defesa dos réus no julgamento sobre os atos golpistas de 8 de janeiro pelo STF.

Mais do que o surgimento de um hábito jurídico –em que a regra é atacar, ofender, mentir e viralizar na internet com gafes tão absurdas que parecem propositais–, o método fortalece um novo direito, o de falar qualquer coisa no modo "pra lá de Marrakech", como na canção de Caetano Veloso. Porque alguém sempre há de concordar e aplaudir. Acontece que, hoje, esse alguém são multidões.

"Eu posso discutir qualquer coisa, posso pensar qualquer coisa, mas, se não botar em prática, não tem problema", disse Bolsonaro ao jornalista Lauro Jardim sobre o teor das conversas secretas no Palácio do Planalto. Está pronta a defesa do golpista.

Os 'corredores verdes' de Medellín para combater calor extremo

Moisés Castro trabalha vendendo frutas em uma banca na Avenida Oriental, na cidade colombiana de Medellín, há mais de 30 anos.

Ele se lembra de uma ocasião, décadas atrás, em que o governo local derrubou as árvores da avenida como parte de uma alteração de trânsito.

Atualmente, a Avenida Oriental continua a ser uma típica via repleta de tráfego e comércio local. Mas, revertendo as decisões anteriores sobre a arborização, a área também recebeu grandes árvores frutíferas, arbustos e flores.

Para Castro, a qualidade do ar e a temperatura do local melhoraram com a medida.

De fato, a temperatura parece agradável todo o ano. Aqui, é claramente mais fresco do que em outras partes da cidade que não contam com a cobertura verde. Ciclovias margeiam as ruas e os pedestres descansam em bancos na sombra.


Conhecida como a Cidade da Primavera Eterna, Medellín e seu clima temperado costumam atrair turistas por todo o ano, mas o aumento da urbanização expôs a cidade ao efeito ilha de calor das áreas urbanas, que causa a absorção e a retenção do calor pelas ruas e construções da cidade.

Os novos corredores verdes de Medellín mostraram-se claramente eficientes para reverter este impacto. A temperatura caiu em 2° C por toda a cidade, segundo dados da prefeitura local aos quais a BBC teve acesso.

Medellín é a segunda maior cidade da Colômbia, ficando atrás apenas da capital, Bogotá. Em 2016, ela deu início ao seu programa de "corredores verdes" devido às preocupações com a poluição do ar e o aumento do calor.

O programa inclui mais de 30 corredores verdes, que conectam calçadas de ruas recém-arborizadas, jardins verticais, cursos d’água, parques e morros próximos.

Inicialmente, o projeto envolveu o plantio de cerca de 120 mil plantas individuais e 12,5 mil árvores nas ruas e parques. Em 2021, ele atingiu 2,5 milhões de plantas menores e 880 mil árvores plantadas em toda a cidade.

A ideia era conectar as áreas verdes de Medellín por meio de ruas e avenidas rodeadas por árvores e sombra.

O investimento inicial para implantar o projeto foi de US$ 16,3 milhões (cerca de R$ 80,8 milhões) e o custo anual de manutenção em 2022 foi de US$ 625 mil (cerca de R$ 3,1 milhões), segundo a prefeitura da cidade.

O projeto de Medellín agora é conhecido em todo o mundo, devido aos resultados expressivos obtidos para o resfriamento da cidade.

E, além de reduzir o calor, especialistas afirmam que os corredores verdes também melhoram a qualidade do ar e trouxeram a vida selvagem de volta para a zona urbana.

Em uma época de crescentes preocupações com as ondas de calor relacionadas às mudanças climáticas, especialmente nas cidades, onde o efeito ilha de calor pode aumentar ainda mais as temperaturas, o projeto de corredores verdes de Medellín oferece uma solução popular, de baixo custo, que cada vez mais cidades estão procurando reproduzir.

Ao lado das preocupações com o calor urbano, o projeto dos corredores verdes de Medellín foi colocado em ação devido à preocupação com a baixa qualidade do ar, causada, em grande parte, pelo enorme crescimento do transporte particular.

A localização da cidade no vale do Aburrá – uma formação geológica que pode capturar a poluição entre as montanhas – não favorece a situação.

E as condições climáticas e meteorológicas também são desfavoráveis para a dispersão vertical dos poluentes, segundo Maurício Correa, pesquisador de engenharia ambiental da Universidade de Antioquia, na Colômbia.

Segundo a empresa suíça IQair, que mede a qualidade do ar em todo o mundo, os níveis anuais de matéria particulada (PM2,5) de Medellín não são os piores da América do Sul, mas são três vezes maiores que o limite de segurança da OMS (Organização Mundial da Saúde), que recomenda média máxima de 5 µg/m3 ao longo do ano. Eles ainda estão acima dos níveis de Bogotá e de São Paulo.

A poluição de Medellín é muito menor do que a de outras cidades conhecidas pelo mesmo problema – como Nova Déli, na Índia, cujas medições em 2022 foram 18 vezes maiores que o limite anual da OMS, por exemplo.

Mas, durante a estação seca, a cidade enfrenta seu pior período de condições do ar devido à redução das chuvas (que, normalmente, ajudam a dissipar a poluição). Nesse período, Medellín pode atingir 55 µg/m3 de PM2,5 – nível suficiente para fazer soar o alarme das autoridades.

A relação entre a exposição a PM2,5 (partículas minúsculas no ar) e doenças respiratórias é bem conhecida.

Quando a poluição sobe acima de 38 µg/m3, o sistema de alerta precoce do vale gera um alarme que pode gerar restrições ao uso de automóveis e aconselhar as pessoas, especialmente as mais vulneráveis, a permanecer em casa.

"Em 2015 e 2016, nós atingimos o pico da poluição do ar", segundo Paula Palacio, secretária de infraestrutura local de Medellín na época. "Foi um momento crítico para as questões ambientais."

Ela destaca que, naquele momento, cresceu a pressão popular por medidas mais sistemáticas sobre a poluição. "A população se sentia muito prejudicada pelas restrições."

Em estudo de 2020 da Universidade de Antioquia, em Medellín, concluiu que a poluição causou 1.971 mortes prematuras na região do vale do Aburrá em 2016 – e que as mortes causadas pela poluição aumentariam substancialmente até 2030, se as emissões dos veículos não fossem controladas.

Correa explica que as árvores usadas nos corredores agem como "barreiras verdes" contra os perigosos materiais particulados, absorvendo níveis significativos de poluição.

Segundo ele, algumas das espécies empregadas no projeto de Medellín são conhecidas por serem muito eficientes na absorção de poluição, como a mangueira (Mangifera indica).

Correa é um dos autores de um estudo de 2021, que identificou Mangifera indica como a melhor dentre seis espécies vegetais encontradas em Medellín para absorção de PM2,5 e sobrevivência em regiões poluídas, devido aos seus "mecanismos biológicos e bioquímicos".

"Esta planta é muito resistente à contaminação", afirma Correa. "Outras plantas não têm a mesma capacidade de sobreviver em regiões poluídas."

Até agora, nenhum estudo ou análise geral examinou a quantidade de poluição efetivamente reduzida pelo projeto dos corredores verdes. Mas Correa afirma que sua equipe está nos primeiros estágios de estudo desse impacto e os resultados devem ser publicados no início de 2024.

Ao lado dos 30 corredores verdes, cerca de 124 parques também são parte do projeto. Conectados pelos corredores, eles também receberam plantio de nova vegetação. E este aumento das áreas verdes também trouxe impactos positivos para o clima da cidade.

Um estudo de 2019, da Faculdade de Engenharia de Antioquia, estimou que apenas dois desses parques – os morros Nutibara e Volador – foram responsáveis por remover da atmosfera 40 toneladas de dióxido de carbono (CO2) por ano.

León Dário trabalha perto da Avenida La Playa, perto da Avenida Oriental, vendendo batatas fritas. Ele trabalha na região há duas décadas e conta que o projeto dos corredores verdes tem forte apoio popular.

Além das árvores, Dário acredita que a introdução dos veículos elétricos foi outra boa medida para melhorar a qualidade do ar. Nos últimos anos, a prefeitura local substituiu ônibus a diesel por elétricos na região.

O apoio dos moradores de Medellín foi fundamental para o sucesso do projeto dos corredores verdes, segundo Lina Rendon, atual subsecretária da prefeitura de Medellín para recursos renováveis.

Um dos motivos, segundo Rendon, é o orçamento participativo do município. O caixa permite aos moradores locais escolher iniciativas que eles querem ver financiadas. Nos últimos anos, a população escolheu muitas iniciativas verdes para a cidade desta forma.

O governo atual do município assumiu em 2019. Desde então, foram plantadas mais 9.332 novas árvores, segundo os dados oficiais. O total da área verde de Medellín, agora, é de cerca de 4 milhões de metros quadrados.

Rendon afirma que a comunidade local também auxilia na manutenção direta do projeto, por meio de jardineiros voluntários.

O projeto dos corredores verdes também gerou um programa de contratação de pessoas que chegam a Medellín, deslocadas pela violência em outras partes da Colômbia. O programa ajuda essas pessoas a encontrar empregos fixos como jardineiros.

"Os jardineiros eram [pessoas] socialmente vulneráveis e [o projeto] ofereceu dignidade", conta Palacio.

Para o secretário do Meio Ambiente de Medellín entre 2016 e 2019, Sergio Orozco, os resultados do projeto foram surpreendentemente positivos.

"A redução da temperatura, em algumas regiões em mais de 3° C, foi maior do que o esperado", ele conta. "Também observamos o retorno de animais que não haviam sido vistos por ali há muitos anos."

O governo local mediu a temperatura em alguns locais no centro da cidade antes e depois do projeto, segundo Paula Palacio. A conclusão foi que algumas regiões observaram redução média da temperatura de até 2° C após a implementação dos corredores.

O monitoramento da vida selvagem local também observou pássaros, lagartos, sapos e morcegos nos corredores.

As autoridades locais afirmam que alguns desses animais não eram vistos em Medellín há anos – o que também ajudou a controlar os ratos e outras pragas, segundo acreditam diversos moradores da cidade.

Em 2019, Medellín recebeu o Prêmio Ashden – concedido a soluções para transformar o clima – na categoria "Resfriamento pela Natureza".

"A reação da cidade reúne as pessoas, plantando vegetação para criar um ambiente melhor para todos", segundo os jurados.

Estas conquistas tornaram o projeto de Medellín famoso em todo o mundo. Outras cidades colombianas, como Bogotá e Barranquilla, também adotaram planos similares.

Bogotá, por exemplo, planeja formar um corredor verde em uma das suas principais avenidas. E, no Brasil, a capital de São Paulo também ampliou recentemente sua versão local dos corredores verdes.

Uma das medidas mais ambiciosas para transformar Medellín em uma cidade verde são os planos da prefeitura local de fechar o aeroporto central e transformá-lo em um parque.

A ideia é desviar os voos para outros aeroportos próximos. Mas o projeto, no momento, está suspenso por decisão dos vereadores locais.

Os debates sobre como transformar Medellín em uma cidade ainda mais verde e adaptada ao clima irá continuar nos próximos anos. Mas os moradores da cidade já podem contar com locais com mais sombra e clima mais ameno, enquanto planejam suas próximas medidas.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Subsídios que põem fogo no planeta

Na Cúpula de Ambição Climática, realizada dia 20 na sede das Nações Unidas, em Nova York, o secretário-geral da ONU, António Guterres, citou um levantamento do Fundo Monetário Internacional para pedir urgência no tratamento da crise ambiental.

Os subsídios para produção e consumo de combustíveis fósseis atingiram no mundo, em 2022, a bagatela de US$ 7 trilhões – o equivalente a 7,1% do PIB global.

São recursos que poderiam financiar investimentos para acelerar a transição energética. Essa substituição enfrenta a resistência dos governos, seja porque temem o impacto da alta dos combustíveis sobre o custo de vida, seja porque não querem abrir mão da renda proporcionada pelo petróleo ou pelo carvão.

O governo brasileiro participa desse jogo perverso porque tomou a decisão de achatar os preços dos combustíveis tanto por meio da redução dos impostos como por atraso no reajuste dos preços ao varejo.


O resultado da falta de empenho global para reduzir as mudanças climáticas é esse aí: temperaturas sufocantes, mesmo no inverno, como por aqui; incêndios de intensidade nunca vista ao redor do mundo; secas terríveis intercaladas com ocorrência de enchentes que matam, desalojam, destroem cidades e plantações.

Se nada mudar, a despeito da arenga dos negacionistas, o planeta ficará mais instável e imprevisível, e os custos econômicos talvez não serão mais relevantes do que os políticos, uma vez que catástrofes e um mundo muito perigoso podem gerar movimentos totalitários – como a História nos ensina.

No momento, não há muita opção. Em grande parte do mundo, a geração por meio da queima de óleo combustível e de carvão ainda predomina na matriz energética.

Até agora, o carro elétrico, que vem contando com fortes incentivos dos governos, é a melhor resposta ao problema, mas se restringe à energia destinada à mobilidade. Ainda assim, pouco poderá mudar as condições atmosféricas, se a energia elétrica consumida pelo carro elétrico continuar sendo produzida por fontes fósseis.

Mesmo na produção de combustíveis destinados aos veículos, há campo enorme à espera de desenvolvimentos. Os biocombustíveis parecem ser solução temporária, destinada a complementar a fase de transição. Se o Brasil precisa exportar veículos, não pode contar com eles. Será preciso desenvolver baterias baratas e sustentáveis. Esperar que outros países ou as multinacionais façam o que tem de ser feito implica aceitar maior dependência tecnológica.

Enquanto isso, subsidiar a produção e o consumo de combustíveis fósseis continuará a queimar o planeta.

Solidão

“All the lonely people/Where do they all come from?”, perguntava em 1961, com terna insistência, o refrão de “Eleanor Rigby”. Pois foi justamente uma chefe de governo britânica, a ultraconservadora Theresa May, que procurou responder à canção dos Beatles quase seis décadas depois. Para espanto e descrédito generalizado, em 2018 ela criou uma nova pasta — o Ministério da Solidão —, cujo nome oficial logo fez a festa em redes sociais e programas de humor.

— Isso soa a eufemismo vitoriano para gigolô — lançou o comediante Stephen Colbert.

— Poderia ser a criação literária de um José Saramago, Haruki Murakami ou Gabriel García Márquez — arriscou Carmen Graciela Díaz.


De lá para cá, a pasta já trocou de titular múltiplas vezes devido à óbvia dificuldade de pensar em estratégias de governo para um problema emocional e individual. Ainda assim, ao completar cinco anos de existência, o ministério já gerou filhotes no Japão e na Alemanha, criou demanda na Austrália e países escandinavos e integra definitivamente as preocupações do doutor Vivek Murthy, atual cirurgião-geral dos Estados Unidos, responsável pela saúde pública do país. Os argumentos de Murthy estão em recente relatório de 81 páginas: a solidão tem letalidade comparável à do cigarro para quem fuma 15 cigarros por dia e superior à do álcool pra quem consome seis doses diárias. Sem falar em possíveis desdobramentos numa série de doenças.

— Além de esmagar a alma, (...) a solidão quebra o coração, literal e figuradamente — resumiu o colunista do New York Times Nicholas Kristof.

Como as demais emoções, a solidão ou o sentimento de isolamento social são difíceis de mensurar. Em consequência, o êxito ou a inutilidade de intervenções destinadas a abrandá-los também são. A mera elaboração de um questionário capaz de captar o desalento íntimo de cidadãos já é complexa e exige dos recenseadores treinamento especial. Nesse quesito, o Office for National Statistics britânico (equivalente ao nosso IBGE) foi pioneiro, a ponto de captar o crescimento quase linear da solidão social entre jovens de 18 a 34 anos. Na Alemanha, é o inverso: o perigo ronda quem já ultrapassou a vida produtiva. O ambicioso programa interministerial A Connected Society, publicado com a criação do ministério de Theresa May, elencou mais de 50 estratégias para enfrentar a solidão nacional. Alocou fundos para pesquisa, contratou mais de mil funcionários públicos para conectar grupos comunitários, levou a Cruz Vermelha a instruir carteiros de todo o país a reportar sinais de isolamento social e muito mais.

Os resultados têm sido desiguais, claro. Soluções simples e baratas, como colocar bancos em corredores de blocos de apartamentos sociais, propiciam a prosa entre vizinhos. Abrir espaço, mesmo que mínimo, para pracinhas compartilhadas, instalar iluminação quente no lugar do branco hospitalar em estruturas públicas também. Médicos foram instruídos a prescrever atividades sociais, em vez de receitar remédios, e iniciativas locais receberam financiamento. Para a recente coroação do Rei Charles, o Ministério da Solidão organizou uma ação de voluntariado que fez sair da toca mais de 6 milhões de pessoas sem convívio social. Do outro lado do Atlântico, o cirurgião-geral adverte: se os Estados Unidos não tomarem medidas concretas, os que se sentem excluídos se retrairão ainda mais — e estarão mais zangados, mais doentes, mais à deriva. No Japão, onde uma conferência interministerial de emergência resultou dois anos atrás na criação do Ministério da Solidão e Isolamento, o enfrentamento da dor social é ainda mais difícil. Culturalmente enraizado na sociedade quase como virtude, o isolamento ainda é visto como algo estritamente pessoal, privado e de responsabilidade intransferível.

É de Julio Cortázar, na obra-prima “O jogo da amarelinha”, a descrição da “solidão absoluta que representa não contar sequer com a própria companhia, ter que entrar no cinema ou no prostíbulo ou na casa dos amigos ou numa profissão absorvente ou no matrimônio para estar pelo menos só-entre-os-demais”. É dela que devemos tentar arrancar quem está ao alcance de um esforço nosso. A sociedade como um todo agradece. Solidão não é solitude — a primeira corrói a alma, a outra, por opcional, pode ser linda.

domingo, 24 de setembro de 2023

Aparência de democracia

O poder real não é democrático. Como podemos continuar nos satisfazendo com essa aparência de democracia? Isso tudo nos leva a algo surpreendente: um planeta de ricos. Não é que não haja pobres, mas sim que o critério será a riqueza, não o conhecimento, não a sabedoria, não a sensibilidade
José Saramago

Era um dia frio...

Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.

O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos, mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia a legenda.

Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular semelhante a um espelho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez. Winston foi até a janela: uma figura miúda, frágil, a magreza do corpo apenas realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo era muito louro, a face naturalmente sanguínea, e a pele arranhada pelo sabão ordinário, as giletes sem corte e o inverno que mal terminara.

Lá fora, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua, pequenos redemoinhos de vento levantavam em pequenas espirais poeira e papéis rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não haver cor em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte, O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuravam os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz, rasgado num canto, estalava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC. Na distância um helicóptero desceu beirando os telhados, pairou uns momentos como uma varejeira e depois se afastou num vôo em curva. Era a Patrulha da Polícia, espiando pelas janelas do povo. Mas as patrulhas não tinham importância. Só importava a Polícia do Pensamento.


Por trás de Winston a voz da teletela ainda tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa deste ou daquele indivíduo. Era concebível, mesmo, que observasse todo mundo ao mesmo tempo. A realidade é que podia ligar determinada linha, no momento que desejasse. Tinha-se que viver - e vivia-se por hábito transformado em instinto na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro.

Winston continuou de costas para a teletela. Era mais seguro, conquanto até as costas pudessem falar. A um quilômetro dali o Ministério da Verdade, onde trabalhava, alteava-se, alvo e enorme, sobre a paisagem fuliginosa. Era isto, pensou ele com uma vaga repugnância - isso era Londres, cidade principal da Pista Nº 1, por sua vez a terceira entre as mais populosas províncias da Oceania. Tentou encontrar na memória uma recordação infantil que lhe dissesse se Londres sempre tivera aquele aspecto. Haviam existido sempre aquelas apodrecidas casas do século dezenove, os flancos reforçados com espeques de madeira, janelas com remendos de cartolina e os telhados com chapa de ferro corrugado, e os muros doidos dos jardins, descaindo em todas as direções? E as crateras de bombas onde o pó de reboco revoluteava no ar e o mato crescia ao acaso sobre os montes de escombros; e os lugares onde as bombas haviam aberto clareiras maiores e tinham nascido sórdidas colônias de choças de madeira que mais pareciam galinheiros? Mas era inútil, não conseguia se lembrar: nada sobrava de sua infância, exceto uma série de quadros fortemente iluminados, que se sucediam sem pano de fundo e eram quase ininteligíveis.

O Ministério da Verdade - ou Miniver, em Novilíngua - era completamente diferente de qualquer outro objeto visível. Era uma enorme pirâmide de alvíssimo cimento branco, erguendo-se, terraço sobre terraço, trezentos metros sobre o solo. De onde estava, Winston conseguia ler, em letras elegantes colocadas na fachada, os três lemas do Partido: GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É FORÇA. Constava que o Ministério da Verdade continha três mil aposentos sobre o nível do solo, e correspondentes ramificações no sub-solo. Espalhados por Londres havia outros três edifícios de aspecto e tamanho semelhantes. Dominavam de tal maneira a arquitetura circunjacente que do telhado da Mansão Vitória era possível avistar os quatro ao mesmo tempo. Eram as sedes dos quatro Ministérios que entre si dividiam todas as funções do governo: o Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, diversões, instrução e belas artes; o Ministério da Paz, que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, que mantinha a lei e a ordem; e o Ministério da Fartura, que acudia às atividades econômicas. Seus nomes, em Novilíngua: Miniver, Minipaz, Miniamo e Minifarto.

O Ministério do Amor era realmente atemorizante. Não tinha janela alguma. Winston nunca estivera lá, nem a menos de um quilômetro daquele edifício. Era um prédio impossível de entrar, exceto em função oficial, e assim mesmo atravessando um labirinto de rolos de arame farpado, portas de aço e ninhos de metralhadoras. Até as ruas que conduziam às suas barreiras externas eram percorridas por guardas de cara de gorila e fardas negras, armados de porretes articulados.

Winston voltou-se abruptamente. Afivelara no rosto a expressão de tranquilo otimismo que era aconselhável usar quando de frente para a teletela. Atravessou o cômodo e entrou na cozinha minúscula. Saindo do Ministério àquela hora, sacrificara o almoço na cantina, e sabia que não havia na casa mais alimento que uma fatia de pão escuro, que seria a sua refeição matinal, no dia seguinte. Tirou da prateleira uma garrafa de líquido incolor com um rótulo branco em que se lia GIN VITÓRIA. Tinha um cheiro enjoado, oleoso, como de vinho de arroz chinês. Winston serviu-se de quase uma xícara de gim, contraiu-se para o choque e engoliu-a de vez, como uma dose de remédio.

Instantaneamente, ficou com o rosto rubro, e os olhos começaram a lacrimejar. A bebida parecia ácido nítrico, e ao bebê-la tinha-se a impressão exata de ter levado na nuca uma pancada com um tubo de borracha. No momento seguinte, porém, a queimação na barriga amainou e o mundo lhe pareceu mais ameno. Tirou um cigarro da carteira de CIGARROS VITÓRIA e imprudentemente segurou-o na vertical, com que todo o fumo caiu ao chão. Puxou outro cigarro, com mais cuidado. Voltou à sala de estar e sentou-se a uma pequena mesa à esquerda da teletela. Da gaveta da mesa tirou uma caneta, um tinteiro, e um livro em branco, de lombo vermelho e capa de cartolina mármore.

Por um motivo qualquer, a teletela da sala fora colocada em posição fora do comum. Em vez de ser colocada, como era normal, na parede do fundo, donde poderia dominar todo o aposento, fora posta na parede mais longa, diante da janela. A um dos seus lados ficava a pequena reentrância onde Winston estava agora sentado, e que, na construção do edifício, fora provavelmente destinada a uma estante de livros. Sentando-se nessa alcova, e mantendo-se junto à parede, Winston conseguia ficar fora do alcance da teletela, pelo menos no que respeitava à vista. Naturalmente, podia ser ouvido mas, contanto que permanecesse naquela posição, não podia ser visto.

Em parte, fora a extraordinária topografia do cômodo que lhe sugerira o que agora se dispunha a fazer, mas fora também sugerido pelo caderno que acabara de tirar da gaveta. Era um livro lindo. O papel macio, cor de creme, ligeiramente amarelado pelo tempo, era de um tipo que não se fabricava havia pelo menos quarenta anos. Era de ver, entretanto, que devia ser muito mais antigo. Vira-o na vitrina de um triste bricabraque num bairro pobre da cidade (não se lembrava direito do bairro) e fora acometido imediatamente do invencível desejo de possuí-lo. Os membros do Partido não deviam entrar em lojas comuns (“transacionar no mercado livre,” dizia-se), mas o regulamento não era estritamente obedecido, porque havia várias coisas, como cordões de sapatos e giletes, impossíveis de conseguir de outra forma. Relanceara o olhar pela rua e depois entrara, comprando o caderno por dois dólares e cinquenta. Na ocasião, não tinha consciência de querê-lo para nenhum propósito definido. Levara-o para casa, às escondidas, na sua pasta. Mesmo sendo em branco, o papel era propriedade comprometedora.

O que agora se dispunha a fazer era abrir um diário. Não era um ato ilegal (nada mais era ilegal, pois não havia mais leis), porém, se descoberto, havia razoável certeza de que seria punido por pena de morte, ou no mínimo vinte e cinco anos num campo de trabalhos forçados. Winston meteu a pena na caneta e chupou-a para tirar a graxa. A pena era um instrumento arcaico, raramente usada, mesmo em assinaturas, e ele conseguira uma, furtivamente, com alguma dificuldade, apenas por sentir que o belo papel creme merecia uma pena de verdade em vez de ser riscado por um lápis-tinta. Na verdade, não estava habituado a escrever a mão. Exceto recados curtíssimos, o normal era ditar tudo ao falaescreve, o que naturalmente era impossível no caso. Molhou a pena na tinta e hesitou por um segundo. Um tremor lhe agitara as tripas. Marcar o papel era um ato decisivo.
George Orwell, "1984"

Refugiados do clima

No discurso do Estado da União – que não passou de um enumerar elogioso das medidas tomadas pela atual Presidente e a sua equipa, num claro lançamento de recandidatura –, Ursula von der Leyen tentou passar com um discurso redondo ao largo da crise dos refugiados.

Esta semana, porém, não lhe restou outro remédio senão vir a terreiro falar do “elefante na sala” perante mais um desastre ambiental.

Em menos dum mês, dois acontecimentos naturais de grandes proporções provocaram, como era de prever, uma nova onda de deslocados.


Marrocos (com cerca de três mil mortos) e a Líbia (com o esmagador número que pode chegar aos 25 mil) irão enfrentar um inverno que fustigará os sobreviventes e os arremessará rumo ao desconhecido, na esperança de sobreviver.

A vaga ainda não se faz sentir em toda a sua dimensão porquanto os dramas são ainda muito recentes, mas não restam dúvidas nem tão pouco é difícil antever o êxodo que dai resultará.

A solução proposta pela srª presidente da Comissão Europeia, depois de anos sem conseguir colocar em prática uma real política de migração e asilo europeia, é, mais uma vez, musculada.

A solução proposta pela srª presidente da Comissão Europeia, depois de anos sem conseguir colocar em prática uma real política de migração e asilo europeia, é, mais uma vez, musculada.

Para tal, afirma, lançará mão da polícia de fronteira europeia, a FRONTEX, de forma a “devolver aos países de origem” todos os que cheguem às costas europeias e que não reúnam os requisitos para serem considerados refugiados. Faz ainda mais uma promessa, tantas vezes já quebrada, de ajuda suplementar a Itália e, sobretudo, a Lampedusa que sofrerá este impacto em primeira mão.

Isto no que se refere à Líbia, pois que, em relação a Marrocos, estou em crer que a tal rota do Algarve que não existe acabe por ser a grande porta de entrada.

A Srª van der Leynen não está completamente errada no que se refere ao controlo da entrada destas vagas humanas na Europa. Naturalmente que ninguém pretende uma Europa de portas escancaradas nem a transbordar de população sem condições. Mas estes dois cenários estão muito longe da realidade e não é sério nem humano utilizá-los para justificar a total incapacidade da Europa em lidar com o assunto a uma só voz e de maneira eficaz.

Como também não é sério dizer-se que com medidas musculadas que “empurrem” pessoas em desespero para lugares sem futuro à vista seja forma de combater o tráfico de seres humanos e o contrabando de migrantes. Medidas semelhantes e recentes mostram exatamente o contrário e acentuam a degradação cada vez maior da solidariedade.

A velhinha Convenção de Genebra definiu “refugiado” como alguém com “receio fundamentado de perseguição” por força duma série de circunstâncias devidamente enumeradas.

No entretanto, o tempo passou e o mundo tornou-se muito diferente. O maior inimigo das populações em regiões deprimidas é a alteração climática e essa não consta como razão que faça perigar, física ou mesmo moralmente, e como tal não torna ninguém elegível como refugiado! A figura de refugiado climático não existe na lei. Apenas na natureza.

Como tal, aos guardas de fronteira, mais não resta senão acompanhar os barcos de volta à costa Líbia ou simplesmente ficar a olhar sem agir, deixando que o mar se encarregue de resolver o assunto.

Nem uma palavra sobre apoio ao retorno, ou à fixação das pessoas através da cooperação na reconstrução das zonas atingidas.

A Europa que temos enxota como se fossem insetos os que, muitas vezes por culpa das políticas externas da própria União, sucumbem a catástrofes naturais ou guerras fratricidas.

Já parámos para pensar o que sucederia se fossemos nós também vítimas de tais fenómenos imprevisíveis?

Será que podemos afirmar, sem qualquer dúvida, que as nossas eclusas e barragens aguentariam um desastre semelhante às inundações na Líbia? Quantas cidades ficariam submersas? Quantos seriam os que fugiriam dessas regiões?

E o “grande sismo” que tem povoado os nossos pesadelos desde há séculos, que resultado teria?

Os apoios de primeira linha seriam essenciais, mas não suficientes, para o “dia seguinte”, o momento em que é preciso retomar a vida, tratar da família, alimentá-la, dar-lhe um teto, prover-lhe educação e saúde.

Com que apoios contaríamos?

Ah, sim, a Europa seria solidária com os seus. Mas… quem são os seus? Quem definiu, e em que momento, a cor, o credo, a língua ou o país dos que devem ser salvos?

Oiço já os coros dos que afirmam que a “caridade começa em casa”.

Então façamos mais um exercício de imaginação e pensemos no que sucederia se uma calamidade com a dimensão das inundações na Líbia atingisse a Península Ibérica e toda a Europa Central. Onde ficaria a casa europeia?

Se não assumirmos que o mundo é a nossa casa, estamos todos condenados a sermos refugiados mais cedo ou mais tarde.

E enquanto a Europa não for mais que um mercado de burocratas em gabinetes almofadados, nunca será uma União.

Até por isso as eleições europeias são as mais importantes dos próximos anos. Elas irão definir os conceitos de solidariedade e união, de pertença e igualdade, de partilha. Irão esclarecer se sobreviveremos como bloco, não apenas económico ou estratégico, mas sobretudo como farol de humanismo e liberdade.

sábado, 23 de setembro de 2023

Pensamento do Dia

 


Submundo

O submundo tosco de ideias e refinadamente intuitivo dos caudilhos não conhece direita nem esquerda, senão como rótulos. O que lhes importa é o poder, o uso pessoal dele, para enriquecer, para afogar suas inferioridades no ódio, na cobiça, na deslumbrada mediocridade do espanto de se verem tão alto – sem saber como nem para quê

Carlos Lacerda, “O Poder das Ideias”,

A ignorância dos políticos

É raríssimo um político se confessar ignorante. Embora o sejam, na maioria, jamais admitem sua ignorância! Usualmente mostram-se cheios da verdade e elevam a voz, mentem e buscam humilhar quem os contesta.

Aliás, essa ignorância, a atitude e a arrogância de escamoteá-la são causas adicionais do atual descrédito nas instituições políticas e da radicalização da opinião pública, fenômeno este decorrente, também, dos algoritmos polarizadores do Facebook e do Twitter.

Um raro político a se confessar ignorante é o inglês Rory Stewart. Parlamentar, perdeu a disputa da liderança do partido conservador para Boris Johnson, abandonou a política e foi professor em Harvard e Yale. Seria bom instituir mecanismos que levassem outros políticos a seguir seu exemplo e reconhecer suas limitações: melhoraria a democracia.

A seguir, algumas das suas confissões, publicadas no The Guardian (16/09/23). Impressionante como elas, embora se refiram à política do Reino Unido, se aplicam como luva à realidade brasileira, e de outros países!

Stewart chegou ao parlamento em 2010, “em meio a pessoas que se pareciam com ele e compartilhavam as mesmas ideias. Então, enquanto o mundo mudava de maneiras inimagináveis, ele assistia horrorizado que as pessoas não acompanhavam as mudanças”.

Como ministro, em 2015, responsável por enchentes, florestas, parques nacionais, qualidade do ar, entre outros assuntos “sobre os quais eu sabia quase nada”, fui surpreendido pelos efeitos da maior chuva jamais ocorrida na Inglaterra “e fiz um comentário idiota”. “Sentia-me como um ator menor, parte da antiga tradição de ministros subqualificados e desequilibrados imersos na prática política britânica”.

“Em 2015, a ministra do meio ambiente, Liz Truss (posteriormente primeira-ministra do Reino Unido defenestrada poucas semanas após a posse) me pediu para preparar um plano de dez pontos para os parques nacionais, apenas uma semana após a minha posse, assim revelando que o que parecia ser política pública era simplesmente uma peça de propaganda desenhada para dar ilusão de dinamismo”.

“Eu havia descoberto quão grotescamente subqualificados tantos de nós éramos, inclusive eu, para os cargos que ocupávamos. Fui ministro de cinco diferentes ministérios em pouco mais de três anos e fui responsável por todas as prisões da Grã-Bretanha sem saber nada sobre prisões, o serviço prisional, a lei e a liberdade condicional”. “É uma cultura que privilegia a campanha em detrimento de uma governança cuidadosa, pesquisas de opinião em detrimento de debates aprofundados sobre políticas, anúncios em lugar de implementação”.

Pulando da Inglaterra para o Brasil, tivemos na semana passada uma “reforma ministerial” para incluir duas pessoas no primeiro escalão, embora, por semanas, não se soubesse qual ministério seria atribuído a qual delas! Conhecimento do assunto? Não importa. A solução? Mais verbas, com menos controle!

Isso pode dar certo, no sentido de contribuir para melhorar a qualidade e vida dos brasileiros mais necessitados?