quinta-feira, 30 de maio de 2024

Pensamento do Dia

 


O país do faz de conta

O Estadão cumpre a missão que se espera de jornal engajado no debate dos graves problemas sociais. O editorial A tragédia das crianças pobres (17/4) recoloca em discussão o drama da infância carente ou abandonada. Deixou de apontar, porém, que não se trata de fenômeno recente. Arrasta-se há mais de 50 anos, como fruto da combinação de vários fatores, entre os quais a urbanização, o crescimento da população, a desagregação familiar.

O livro Geografia da Fome, de Josué de Castro, teve a primeira edição publicada em 1960. Lançou, secundando Os Sertões, de Euclides da Cunha, um contundente libelo contra a miséria. Custou ao autor a cassação dos direitos políticos e o exílio na França, em 1964.

Em 1975, por iniciativa do deputado Nelson Marchezan, a Câmara dos Deputados aprovou a criação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar o problema da criança e do menor carentes do Brasil. O relatório, publicado em 10/6/1976, é encontrado na internet. Revela a existência, entre 108 milhões de habitantes, dos quais 55,82% vivendo nas cidades, de 13,5 milhões de menores carentes e de 1,9 milhão de abandonados.


Em artigo publicado no livro A Velha Questão Sindical e Outros Temas (LTr Editora, São Paulo, 1995), registrei, a propósito da CPI, que “o relatório final nos cobriu de vergonha diante dos povos civilizados”. Escrevi, também, que para enfrentar o gravíssimo problema o Brasil, mais uma vez, recorria ao método faz de conta: “Faz de conta que as elites tomaram conhecimento do assunto; faz de conta que providências urgentes passam a ser adotadas; faz de conta que há uma fundação nacional incumbida dos menores; faz de conta que fundações estaduais se ocupam do mesmo problema; faz de conta que basta a aprovação de uma lei para que carentes e abandonados tenham educação e abrigo; faz de conta que o fracasso das medidas é devido à velha legislação; faz de conta que nova lei corrigirá as deficiências atribuídas à antiga; faz de conta que se cria um ministério do menor, e assim por diante (...)”.

Sensível ao tema, a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) determinou a proteção do Estado à família, à criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso (artigos 226230). Dispenso-me da reprodução dos dispositivos da Lei Fundamental. Registro, porém, o texto do artigo 227, para o qual é dever da família “assegurar à criança, ao adolescente, ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n.º 8.069, de 1990, contém 267 artigos e respectivos parágrafos. Regulamentou os dispositivos constitucionais. Foi, à época, saudado como esperança para os desafios representados pelos menores carentes e abandonados. Os resultados, todavia, confirmam a imagem do país do faz de conta.

O editorial do Estadão mencionado no início deste artigo contém informações desalentadoras. Apoiado em estatísticas do IBGE, revela que, “segundo dados de 2022, quase metade das crianças brasileiras vive em situação da pobreza. São 49,9% das crianças de 0 a 5 anos e 48,5% das crianças de 6 a 14 anos enquadradas na linha de pobreza definida internacionalmente, isto é, US$ 2,15 por dia”. São aproximadamente 41,1 milhões, dos quais mais da metade vive com fome, não apenas de alimentos, mas, também, de carinho, de saúde, de educação, de esperanças positivas de vida.

No coração da cidade de São Paulo temos imagens dolorosas das condições de abandono de meninas e meninos. Podem ser vistos sós ou em grupos nas ruas e nas entradas de restaurantes de luxo, vendendo balas, pedindo ajuda em dinheiro, mendigando um pouco de comida.

A Constituição Cidadã, como a denominou o dr. Ulysses Guimarães, em outubro completará 36 anos de vigência. Não foi escrita por juristas. No plenário, prevaleceram os retóricos, empenhados em contaminá-la com fortes doses de utopias. Sucessivos governos ignoraram as advertências contidas no relatório da CPI dos carentes e abandonados de 1975. Não será demasiado transcrever o que diz o documento, ao tratar da desagregação familiar: “A causa mais próxima a condicionar a marginalização do menor é, sem dúvida alguma, a desagregação familiar, em decorrência da pobreza e da rápida mudança de valores”.

Encontrar recursos financeiros e humanos destinados a tentar resolver o problema angustiante e visível dos menores carentes e abandonados é o desafio inadiável da União, dos Estados, dos municípios. Os dados estão disponíveis para quem se interessar em consultá-los. Desde a redemocratização, pelo menos uma geração foi perdida. Os resultados são visíveis a olhos nus. Não há como ignorá-los.

Instrumento redutor

Porque é que a TV foi essa "caixinha que revolucionou o mundo"? Faço a pergunta e as respostas vêm em turbilhão. Fez de tudo um espectáculo, fez do longe o mais perto, promoveu o analfabetismo e o atraso mental. De um modo geral, desnaturou o homem. E sobretudo miniturizou-o, fazendo de tudo um pormenor, isturado ao quotidiano doméstico. Porque mesmo um filme ou peça de teatro ou até um espectáculo desportivo perdem a grandeza e metafísica de um largo espaço de uma comunidade humana.

Já um acto religioso é muito diferente ao ar livre ou no interior de uma catedral. Mas a TV é algo de minúsculo e trivial como o sofá donde a presenciamos. Diremos assim e em resumo que a TV é um instrumento redutor. Porque tudo o que passa por lá chega até nós diminuído e desvalorizado no que lhe é essencial. E a maior razão disso não está nas reduzidas dimensões do ecrã, mas no facto de a "caixa revolucionadora" ser um objecto entre os objectos de uma sala.

Mas por sobre todos os males que nos infligiu, ergue-se o da promoção do analfabetismo. Ser é um acto difícil e olhar o boneco não dá trabalho nenhum. Ler exige a colaboração da memória, do entendimento e da imaginação.

A TV dispensa tudo. Uma simples frase como "o homem subiu a escada" exige a decifração de cada palavra, a relação das anteriores até se ler a última e a figuração do seu sentido e imagem correspondente. Mas na TV dá-se tudo de uma vez sem nós termos de trabalhar. Mas cada nossa faculdade, posta em desuso, chega ao desuso maior que é deixar de existir. Mas ser homem simplesmente é muito trabalhoso. E o mais cómodo é ser suíno...
Vergílio Ferreira, "Escrever"

Quando a verdade vale mais que um salário ou posição

Com o avanço gradual e cada vez mais intenso das mudanças climáticas, água e fogo vêm gerando tragédias. Tragédias que, como temos visto, vêm se tornando campos férteis para a semeadura de mentiras.

Enquanto o Rio Grande do Sul enfrenta as consequências das enchentes deste mês, os australianos começam a se preparar, ainda em junho, para a estação de fogo nas florestas, evento que ocorre todo ano entre novembro e janeiro do ano seguinte.

Os fogos nas matas da Austrália acontecem há milhões de anos e contribuíram até mesmo para criar características próprias da fauna e da flora deste continente. Os incêndios mais destrutivos são precedidos por altas temperaturas, baixa umidade relativa do ar e ventos fortes. Estes três fatores encontram seu "prato-feito" nas florestas de eucaliptos – a maior parte do ano extremamente secas e sempre impregnadas de seu óleo natural.



No entanto, em seus mais de 60 mil anos vivendo nesta terra, os aborígenes desenvolveram meios de contornar ou evitar situações catastróficas. Nas últimas décadas, os ex-colonizadores europeus, ou os atuais governos dos Estados, acolheram velhas práticas dos povos originários e acabaram por adotar ou adaptar suas técnicas seculares. São as chamadas backburn, ou seja, as queimas preventivas, em áreas de maior risco. Esta queima é coordenada e feita em várias áreas pelos bombeiros rurais. Destes, 72.490 são voluntários. O orçamento de combate ao fogo é da ordem de 534 milhões de dólares por ano. E, naturalmente, bombeiros e polícia investigam as causas da maioria desses incêndios – que podem ter origem criminosa ou por descuido, embora muito raramente. Mesmo as populações das menores vilas no interior são informadas e adotam medidas para encarar esses eventos.

Os incêndios de novembro de 2019 a janeiro de 2020 foram os mais intensos e abrangentes já ocorridos aqui, e tiveram ampla cobertura internacional. No Estado de New South Wales, onde vivo, foram atingidos cinco e meio milhões de hectares, parte do total dos 243.000 quilômetros quadrados que arderam no país. Isto resultou na destruição de 2.779 casas e na morte de 34 pessoas.

A maioria da mídia australiana, consultando cientistas, meteorologistas, agrônomos e ecologistas foi quase unânime em reportar os fatos como uma evidência inegável e aterradora do aquecimento global. O "quase", acima, ficou por conta da organização News Corp Australia, de propriedade de Rupert Murdoch. Esse "quase" é para ser lido como: "de forma alguma", ou "muito pelo contrário".


Murdoch, nascido na Austrália e naturalizado norte-americano, é dono de um império de empresas, entre elas a Fox Corporation, The Wall Street Journal, HarperCollins e o The New York Post. As empresas americanas abertamente apoiaram George W. Bush e Donald Trump. A mim não incomoda a tendência política ou o negacionismo gerenciado e apregoado por Murdoch. É um direito dele. Ele possui ainda jornais na Inglaterra e é dono também de cerca de 65 por cento da mídia impressa e televisiva na Austrália.

Embora as polícias e os bombeiros estaduais não tenham encontrado nem um só caso de fogo intencional nos incêndios em questão, a News Corp Australia, segundo sua gerente financeira e comercial Emily Townsend, fez circular "uma campanha de informações falsas" apresentando uma "cobertura irresponsável e perigosa" da crise. Em e-mail dirigido ao chefe executivo Michael Miller, Emily diz que sentiu "severo impacto pela cobertura mentirosa dos incêndios que visou desviar a atenção da razão verdadeira dos incêndios – que é o aquecimento global – mudando o enfoque para incêndios premeditados".

Emily já vinha ocupando esse alto cargo executivo por cinco anos. Neste e-mail, ela prossegue: "As reportagens que vi no The Australian, The Daily Telegraph e no Herald Sun são não apenas irresponsáveis; são danosas para as comunidades. (...) Sinto até uma espécie de náusea porque, de certa forma – e no entender de alguns –, eu estive contribuindo para a disseminação desse negacionismo com respeito ao aquecimento global". E para terminar esse e-mail – através do qual ela formaliza a sua demissão da empresa –, ela confessa: "É injusta e inescrupulosa a forma como esta companhia vem agindo com relação ao aquecimento global".

Gestos corajosos como este de Emily me fazem lembrar que, mesmo em meio às maiores catástrofes – e dentre elas a do negacionismo climático –, ainda se pode encontrar profissionais que arriscam tudo a bem da exatidão daquilo que virá a ser notícia.
Marcus Cremonese

Humanidade derretida

Não sabia o que fazer para ajudar as pessoas que queimavam. Havia corpos desmembrados, carbonizados, crianças sem cabeça, corpos como se tivessem derretido
Ahmed Al-Rahl, 30 anos, testemunha do ataque aéreo de Israel aos palestinos abrigados em tendas, em Rafah

Quem mais perde com as derrotas do governo Lula no Congresso

Quem perde quando o Congresso, o mais reacionário da história do país desde o fim da ditadura militar há 39 anos, acaba com a saída temporária de presos para visitar as famílias em feriados e datas especiais? Em 95% dos casos, eles retornam aos presídios. Uma boa parte deles sequer ainda foi julgada.

O crime organizado agradece ao Congresso pelo que ele fez. É dessa mão de obra barata e sem esperança de redenção que lota os presídios que o crime organizado se alimenta em 25 dos 27 estados da Federação onde está presente e ativo. A medida é um incentivo a novas rebeliões com sequestros e mortes de agentes da ordem.

Quem perde quando o Congresso, dominado pelo Centrão em aliança com a extrema-direita bolsonarista, aprova o projeto de decreto legislativo que permite a instalação de clubes de tiro a pouca distância de escolas? E quem perde quando ele impede que seja criminalizada a distribuição de notícias falsas que atentam contra a democracia?

Jamais imaginei que viveria para ver deputados assomarem à tribuna da Câmara e defenderem o direito de mentir. Foi o que fez, por exemplo, a deputada Bia Kicis (PL-DF), uma bolsonarista raiz, quando disse:


“Infelizmente, a verdade é a seguinte: o mundo está cheio de mentirosos e mentir não é crime. Pode ser pecado, pode ser feio, pode ser imoral, mas mentira não é crime. Estão perseguindo, querendo cassar mentirosos, é isso?”

A deputada admite que mentir pode ser pecado, ser feio, ser imoral, mas reclama da eventual cassação de mandatos de políticos que disseminam mentiras. Foram mais de 300 votos a favor do direito de mentir no Congresso, nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras Municipais e nas redes sociais. Como se mentir não fizesse mal.

Mentiras, ditas por quem foi eleito pelo povo que não elegeria um mentiroso confesso, podem matar. Lembrai-vos da pandemia da Covid. Quantas pessoas não morreram por terem dado ouvidos às mentiras do presidente da República sobre o uso de drogas ineficazes contra o vírus? Não foi por ignorância que ele mentiu.

Mentiras, ditas por personagens de relevo, podem estar na base de tentativas de golpes de Estado, sejam elas bem ou mal sucedidas. Não foi o que vimos com Trump ao incentivar a invasão do Capitólio por que lhe teriam roubado a reeleição? E aqui com Bolsonaro ao dizer, sem provas, que as urnas eletrônicas eram inseguras?

O governo Lula colheu, esta semana, no Congresso, essas e outras fragorosas derrotas, e tem culpa no cartório. Mas não foi ele quem mais perdeu com isso – foi o Brasil.

Meio milhão de cariocas passam fome

A insegurança alimentar grave é realidade em 7,9% das casas na capital fluminense. Em números absolutos, são 489 mil pessoas que passam fome. Cerca de 2 milhões de cariocas convivem com algum grau de insegurança alimentar (seja leve, moderada ou grave). Os dados inéditos fazem parte do I Inquérito sobre a Insegurança Alimentar no Município do Rio de Janeiro – o Mapa da Fome da Cidade do Rio de Janeiro.

A pesquisa revela ainda que o acesso à alimentação adequada se dá de forma desigual na geografia da capital fluminense. A Área de Planejamento (AE) 3 (Zona Norte sem a Grande Tijuca) é a mais atingida pela fome – ela se apresenta em 10,1% das casas. A fome é maior nos lares chefiados por pessoas negras (em 9,5% desses domicílios). Quando o estudo faz a análise por gênero, 8,3% das famílias comandadas por mulheres também não têm o que comer.

O Mapa da Fome da Cidade do Rio de Janeiro é uma parceria entre a Frente Parlamentar contra a Fome e a Miséria no Município do Rio de Janeiro da Câmara Municipal e o Instituto de Nutrição Josué de Castro (INJC/UFRJ). Com o lançamento do estudo, o Rio de Janeiro se torna a primeira cidade brasileira a mapear a insegurança alimentar e a fome em nível municipal.


Outros indicadores mostram que a falta de comida atinge 16,6% das famílias lideradas por pessoas com escolaridade mais baixa. A fome também atinge 18,3% das casas onde a pessoa de referência está desempregada, e em 34,7% dos domicílios com renda per capita mais baixa.

“O perfil da pessoa que passa fome no Rio acompanha as desigualdades nacionais. As famílias que têm insegurança alimentar grave têm a chefia feminina, que tenha pessoa preta ou parda, com menor escolaridade com fundamental incompleto, desempregado e famílias de menor renda, inferior a um quarto do salário mínimo per capita”, disse Rosana Salles-Costa, professora e pesquisadora do INJC/UFRJ.

As estatísticas foram coletadas entre novembro de 2023 e janeiro de 2024, a partir da realização de entrevistas em 2 mil domicílios das cinco APs do município. A segurança alimentar foi medida pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que também é utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

"O Mapa da Fome do Rio é um importante legado da Frente Parlamentar Contra a Fome e a Miséria para a população carioca. Ele servirá de base para fornecer critérios técnicos para a implementação de políticas públicas, e com isso auxiliar na ampliação dos restaurantes populares, cozinhas comunitárias, banco de alimentos e demais instalações de programas de segurança alimentar", afirmou o vereador Dr. Marcos Paulo (PT), presidente da Frente Parlamentar Contra a Fome e a Miséria no Município do Rio de Janeiro.

O Mapa da Fome da Cidade do Rio de Janeiro revela que o percentual de fome no município é quase o dobro se comparado com o dado nacional recém-divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) divulgada em abril, a fome esteve presente em 4,1% das casas brasileiras. No estado do Rio de Janeiro, ainda segundo a PNAD, o percentual de 3,1% ressalta ainda mais a situação aguda da capital fluminense.
Políticas

O estudo analisa as políticas públicas e iniciativas – do governo ou da sociedade civil – que têm por objetivo assegurar o direito à alimentação saudável. Os três restaurantes populares municipais existentes (em Bonsucesso, Bangu e Campo Grande) atenderam a apenas 6,9% da população carioca. As cozinhas comunitárias e o programa Prato Feito Carioca foram acessados, de agosto a outubro de 2023, por apenas 2,1% dos moradores da cidade. As visitas às residências de agentes comunitários de saúde também têm se mostrado escassas: 56,5% da população no município relatou não ter recebido a visita nos últimos três meses.

O principal programa de segurança alimentar do município consiste no acompanhamento assistencial e nutricional em unidades de acolhimento (abrigos, hotéis e albergues noturnos) de adultos, crianças e adolescentes. Foram identificados 34 equipamentos públicos (que atendem a 1,5 mil pessoas), e cinco hotéis (com 500 hóspedes). Há apenas um albergue voltado para a população LGBTQIAP+, localizado na AP 1 (Centro e zona portuária). Na AP 2 (zona sul), há somente duas unidades de reinserção social, localizadas no Catete e em Laranjeiras.

“Para reverter esse quadro, é preciso ampliar os equipamentos públicos para essas pessoas em maior vulnerabilidade no acesso à alimentação, que seriam as cozinhas comunitárias cariocas como também os restaurantes populares. Em outra frente, é necessário aumentar a renda, melhorar a escolaridade e o emprego. Porque daí eu consigo reduzir a desigualdade e os níveis de insegurança alimentar”, disse Rosana Salles-Costa.

Já o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome divulga que no mês de maio de 2024, o município de Rio de Janeiro teve 572.512 famílias atendidas pelo Programa Bolsa Família, com 1.309.671 pessoas beneficiadas, e totalizando um investimento de R$ 377.886.157,00 e um benefício médio de R$ 660,60.
Insegurança hídrica

A insegurança hídrica também é avaliada pelo Mapa da Fome da capital carioca. O estudo revela que 15% dos lares cariocas não tiveram fornecimento regular de água ou sofreram com a falta de água potável. Dessas famílias, 27% se encontraram em situação de fome. As regiões mais afetadas pela escassez de recursos hídricos são Centro e zona portuária), com 24,3% e a zona norte sem a Grande Tijuca, com 21,7%.

“É urgente construir uma agenda de projetos de lei, políticas públicas, estratégias e outras ações. O número de cozinhas comunitárias e restaurantes populares, por exemplo, deve aumentar. São esses os espaços que asseguram a distribuição de refeições saudáveis e gratuitas ou com preços acessíveis em toda a cidade do Rio de Janeiro”, afirma o vereador Dr. Marcos Paulo.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Mundo sem rótulos


Quero viver num mundo em que os seres sejam somente humanos, sem outros rótulos, sem serem golpeados na cabeça com uma régua, com uma palavra, com um rótulo.

Pablo Neruda

Brasil, Canadá e Bangladesh: há semelhança?

Tão distintos, e tão parecidos! Pela maioria dos indicadores usuais – PIB e seu crescimento, IDH, esperança de vida, mortalidade infantil, etc. -, as regiões do título são muito diferentes uma da outra. No entanto, nessa nova era em que estamos, tornam-se cada vez mais semelhantes. O “desenvolvimento econômico” é o grande responsável por essa aproximação.

Por muitos anos, aqueles treinados em economia, como eu, foram instruídos na noção de que o dito “desenvolvimento econômico” traria, em síntese, mais e rica homogeneidade global! Por conseguinte, todos buscavam facilitar tal processo. A promessa era que o “desenvolvimento” traria melhorias no padrão de vida de todos. Em suma, a felicidade geral!

A ideia de buscar o desenvolvimento continua a ser perseguida por governantes à direita e a esquerda. E aonde essa busca nos tem levado?

No Canadá, em região não distante de Vancouver, restos carbonizados de árvores caem ao solo ao serem tocados, e esqueletos de postos de gasolina demonstram a ferocidade das queimadas ali ocorridas, cuja fumaça chegou à Baltimore, Barcelona, Berlim e além. Os incêndios queimaram área maior que Flórida e lançaram na atmosfera quase três vezes as emissões anuais do país!

Em Bangladesh, a água salobra “está em nossos rios e em nossas xícaras”, dizem habitantes de áreas costeiras, muitos dos quais, sem alternativa, cozinham com água contaminada, e em seguida sofrem doenças renais e outras! Uma estação de tratamento de água, construída em 2005 com a promessa de melhorar a vida de muitos e criar “emprego e renda”, está abandonada há anos, devido a custo elevado e brigas políticas. Apesar de privatizada, a unidade segue inoperante. A terceira maior cidade do pais, Khulna, já foi um centro de “desenvolvimento”, com moinhos, pujante indústria de pesca, estaleiros e outras atividades geradores de “emprego e renda”. Cheias frequentes, ciclones e ressacas marítimas deprimiram as fontes de água potável, com a intrusão de água do mar comprometendo a disponibilidade de água doce e as demais atividades.

Só na Europa, existem 1.200 barragens impedindo a migração de peixes. Estudo recente estima, desse 1970, mundialmente, uma queda de 80% – repita-se, 80%! – na população de peixes migratórios! A queda é ainda maior na América do Sul e no Caribe! Não apenas as barragens causam tal exaustão: também a poluição, o desvio das águas dos rios e a pesca predatória são responsáveis. Vale dizer, o “desenvolvimento econômico”!

No Rio Grande do Sul, ainda mais grave é a situação de mais de meio milhão de brasileiros; isso, num estado até recentemente tido como dos mais “desenvolvidos” do nosso país!!

E assim, de “desenvolvimento” em “desenvolvimento”, vamos criando desastres e comprometendo, mundo afora, as chances de nossos filhos e netos terem vidas saudáveis, com segurança.

No RGS, mais que “reconstruir”, é hora de construir de maneira diferente, tornando-se exemplo para toda a aldeia global, cujos habitantes estão, cada vez mais, ameaçados pelo “desenvolvimento”.

Quando a verdade vale mais que um salário ou posição

Enquanto o Rio Grande do Sul enfrenta as consequências das enchentes deste mês, os australianos começam a se preparar, ainda em junho, para a estação de fogo nas florestas, evento que ocorre todo ano entre novembro e janeiro do ano seguinte.

Os fogos nas matas da Austrália acontecem há milhões de anos e contribuíram até mesmo para criar características próprias da fauna e da flora deste continente. Os incêndios mais destrutivos são precedidos por altas temperaturas, baixa umidade relativa do ar e ventos fortes. Estes três fatores encontram seu "prato-feito" nas florestas de eucaliptos – a maior parte do ano extremamente secas e sempre impregnadas de seu óleo natural.


No entanto, em seus mais de 60 mil anos vivendo nesta terra, os aborígenes desenvolveram meios de contornar ou evitar situações catastróficas. Nas últimas décadas, os ex-colonizadores europeus, ou os atuais governos dos Estados, acolheram velhas práticas dos povos originários e acabaram por adotar ou adaptar suas técnicas seculares. São as chamadas backburn, ou seja, as queimas preventivas, em áreas de maior risco. Esta queima é coordenada e feita em várias áreas pelos bombeiros rurais. Destes, 72.490 são voluntários. O orçamento de combate ao fogo é da ordem de 534 milhões de dólares por ano. E, naturalmente, bombeiros e polícia investigam as causas da maioria desses incêndios – que podem ter origem criminosa ou por descuido, embora muito raramente. Mesmo as populações das menores vilas no interior são informadas e adotam medidas para encarar esses eventos.

Os incêndios de novembro de 2019 a janeiro de 2020 foram os mais intensos e abrangentes já ocorridos aqui, e tiveram ampla cobertura internacional. No Estado de New South Wales, onde vivo, foram atingidos cinco e meio milhões de hectares, parte do total dos 243.000 quilômetros quadrados que arderam no país. Isto resultou na destruição de 2.779 casas e na morte de 34 pessoas.

A maioria da mídia australiana, consultando cientistas, meteorologistas, agrônomos e ecologistas foi quase unânime em reportar os fatos como uma evidência inegável e aterradora do aquecimento global. O "quase", acima, ficou por conta da organização News Corp Australia, de propriedade de Rupert Murdoch. Esse "quase" é para ser lido como: "de forma alguma", ou "muito pelo contrário".

Murdoch, nascido na Austrália e naturalizado norte-americano, é dono de um império de empresas, entre elas a Fox Corporation, The Wall Street Journal, HarperCollins e o The New York Post. As empresas americanas abertamente apoiaram George W. Bush e Donald Trump. A mim não incomoda a tendência política ou o negacionismo gerenciado e apregoado por Murdoch. É um direito dele. Ele possui ainda jornais na Inglaterra e é dono também de cerca de 65 por cento da mídia impressa e televisiva na Austrália.

Embora as polícias e os bombeiros estaduais não tenham encontrado nem um só caso de fogo intencional nos incêndios em questão, a News Corp Australia, segundo sua gerente financeira e comercial Emily Townsend, fez circular "uma campanha de informações falsas" apresentando uma "cobertura irresponsável e perigosa" da crise. Em e-mail dirigido ao chefe executivo Michael Miller, Emily diz que sentiu "severo impacto pela cobertura mentirosa dos incêndios que visou desviar a atenção da razão verdadeira dos incêndios – que é o aquecimento global – mudando o enfoque para incêndios premeditados".

Emily já vinha ocupando esse alto cargo executivo por cinco anos. Neste e-mail, ela prossegue: "As reportagens que vi no The Australian, The Daily Telegraph e no Herald Sun são não apenas irresponsáveis; são danosas para as comunidades. (...) Sinto até uma espécie de náusea porque, de certa forma – e no entender de alguns –, eu estive contribuindo para a disseminação desse negacionismo com respeito ao aquecimento global". E para terminar esse e-mail – através do qual ela formaliza a sua demissão da empresa –, ela confessa: "É injusta e inescrupulosa a forma como esta companhia vem agindo com relação ao aquecimento global".

Gestos corajosos como este de Emily me fazem lembrar que, mesmo em meio às maiores catástrofes – e dentre elas a do negacionismo climático –, ainda se pode encontrar profissionais que arriscam tudo a bem da exatidão daquilo que virá a ser notícia.

Marcus Cremonese

terça-feira, 28 de maio de 2024

O horror e o terror moral, amigos de Israel na matança dos palestinos

A armadilha montada no extremo-sul da Faixa de Gaza para matar palestinos funcionou a contento do governo de Israel. Pelo menos 45 pessoas morreram queimadas e decapitadas em tendas onde Israel garantiu que elas estariam a salvo de bombardeios, e 250 escaparam feridas – a maioria das vítimas, mulheres, crianças e velhos. O horror, o horror!

A expressão “o horror, o horror” aparece pela primeira vez na literatura em Heart of Darkness, do escritor britânico de origem polonesa Joseph Conrad, no ano de 1899. São as palavras derradeiras de Kurtz, um traficante de marfim franco-inglês que se encontra fisicamente doente e, ao que tudo indica, igualmente insano.

No filme Apocalipse Now, lançado em 1979, o cineasta Francis Ford Coppola resgatou a expressão e a pôs na boca do Coronel Kurtz, das forças especiais dos Estados Unidos, vivido por Marlon Brando, que enlouquecera e se refugiou nas selvas do Camboja. A ação se passa na guerra do Vietnã e todos os personagens são militares.


Coube ao Capitão Willard (Martin Sheen) a tarefa de localizar e matar o coronel, o que ele faz. Mas antes de ser morto, o coronel lhe diz:

“Você tem o direito de me matar, mas não o de me julgar. É impossível pôr em palavras o necessário para quem desconhece o sentido do horror. Horror. Horror tem rosto e é preciso fazer amizade com o horror. O horror e o terror moral são seus amigos. Se não forem, então são inimigos a temer. São inimigos de verdade.”

Não peça a Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel, que reconheça o horror das suas ações. Ele só vê o horror nas ações do grupo Hamas, que invadiu seu país em 7 de outubro do ano passado. Se visse também nas suas, não poderia chamar o Hamas de grupo terrorista para que Israel não fosse tachado de Estado terrorista.

Mais uma vez, o mundo chocou-se com o que aconteceu nas proximidades de Rafah, no extremo-sul da devastada Faixa de Gaza, e reagiu com indignação, a pedir o fim da guerra. Netanyahu limitou-se a declarar, contrafeito:

“Apesar dos nossos esforços máximos para não prejudicar os civis, infelizmente algo correu tragicamente errado”.

O mundo chocar-se não quer dizer grande coisa. Não mudará em nada a determinação dos dirigentes de Israel de ir em frente com a guerra que já matou mais de 36 mil palestinos civis e inocentes. Somente os Estados Unidos poderiam impor a Israel seu desejo de que a guerra terminasse, mas não o fará. Israel é seu braço armado na região.

Por mais que continue matando palestinos e árabes aqui e acolá, Israel já perdeu esta guerra. Não tem como derrotar o Hamas em definitivo, promessa repetida por Netanyahu a cada vez que é obrigado a se explicar. A Netanyahu só resta estender o fim do seu governo provocando o horror e o terror moral, seus diletos amigos.

Negar a crise do clima pode custar caro

Um oceano separa a catástrofe climática que atingiu o Rio Grande do Sul do comício do partido espanhol Vox, com lideranças da ultradireita internacional, como Javier Milei, realizado em Madri no domingo (19). A verdade, contudo, é que a distância entre esses dois eventos, um geográfico, outro político, é tão estreita que seria possível cruzar esse oceano com uma pinguela.

Isso porque no mesmo dia em que os principais nomes da extrema direita mundial reuniram-se na Espanha para reforçar, entre outras pautas, o negacionismo climático, os brasileiros - do outro lado do Atlântico - assistiam, estarrecidos, à fúria das águas arrastando carros, móveis, pessoas, animais, sobre cidades inundadas, um cenário de guerra, uma atmosfera de desespero e desalento. Tão longe, e tão perto.

Os dados mais recentes mostram que morreram 157 pessoas e quase 1 milhão de pessoas estão há quase um mês em abrigos públicos, ou na casa de parentes ou amigos. Mas é espantoso que o desastre tenha precedentes recentes, e nenhum governante tenha feito a lição de casa.

Se o Guaíba superou o nível de 5 metros, nas enchentes provocadas pelas chuvas de novembro (há seis meses), o lago/rio já havia acionado o alarme ao bater o recorde de ultrapassar 3 metros - o que não ocorria desde as cheias de 1941. Alguns dos municípios mais afetados neste mês, como Porto Alegre, Canoas e Eldorado do Sul, haviam sido inundados nas chuvas de novembro, embora não na mesma proporção.

A crise climática evidencia-se num cenário em que, enquanto as tempestades devastavam cidades no Rio Grande do Sul em novembro, uma onda de calor, com termômetros marcando 46o C, alastrava-se pelo restante do país. O próprio Rio Grande do Sul, antes de se ver debaixo d’água, amargou uma das estiagens mais severas nos três anos que antecederam as atuais enchentes.

São fatos que desafiam os negacionistas, como o presidente da Argentina, Javier Milei, chamado no comício do Vox de “estrela brilhante”. No país de Lionel Messi, a crise climática também deu sinais de alerta. As temperaturas alcançaram os 46º C, enquanto o volume de água de rios alimentados pela neve da Cordilheira dos Andes está diminuindo. E um inimigo antes reservado ao Brasil e ao Paraguai agora ameaça os argentinos: a dengue, que se manifesta nas altas temperaturas, como nos verões brasileiros.

Milei, entretanto, é um político que chamou o aquecimento global de “marxismo cultural”, fechou o Ministério do Meio Ambiente e resiste a vacinar a população contra a dengue.

Na mesma sintonia, o presidente do Vox, Santiago Abascal, acusa os socialistas de estarem sob ordens dos "ecologistas radicais" e fala em "religião climática".

E, recentemente, o ex-presidente Jair Bolsonaro afirmou nas redes sociais que "problematização climática é desinformação".

No ato em Madri, Milei exortou a direita europeia a se unir contra o socialismo, e pediu votos para o Vox nas eleições para o parlamento europeu em 9 de junho. Os partidos ultraconservadores vivem uma onda de expansão. Em março, o partido Chega, de Portugal, do líder extremista André Ventura, cresceu de 12 cadeiras para 50 vagas no Congresso.

Nos últimos dois anos, a ultradireita passou a governar, ou integrar coalizões de governo, na Itália, Grécia, Suécia e Finlândia. França e Alemanha estão ameaçadas. Donald Trump pode retornar à Casa Branca, e o bolsonarismo segue com musculatura no Brasil.

A união da ultradireita é estratégica, e busca seguir um modelo implementado pela esquerda e centro-esquerda europeia na última década, mas que perdeu fôlego nos últimos anos. Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou a prisão, ele fez um périplo internacional, e foi recepcionado pelas principais lideranças da centro-esquerda europeia, cujos partidos mantêm a aliança histórica com o PT. Em novembro de 2021, Lula nem era pré-candidato, e foi recebido pelo presidente da França, Emanuel Macron, pelo primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, pelo futuro chanceler da Alemanha, Olaf Scholz (que era ministro de Finanças na ocasião), e discursou no Parlamento Europeu em Bruxelas, em evento promovido por congressistas do bloco social democrata, de centro-esquerda. Na contramão do negacionismo climático dos ultraconservadores, Lula defendeu a preservação do meio ambiente e a redução da desigualdade econômica.

A preocupação de cientistas atentos às mudanças climáticas é com o aumento da frequência e da duração desses episódios extremos. E como se não bastassem os alertas dos dados científicos para o agravamento desse quadro, os cientistas ainda são vítimas de desinformação nas redes sociais, onde são agredidos e achincalhados.

Mas há reações. Em fevereiro, o cientista americano e professor da Universidade da Pensilvânia Michael Mann venceu uma batalha judicial que se prolongava havia 12 anos contra blogueiros que o difamaram nas redes sociais. Segundo a revista “Nature”, um tribunal americano fixou contra os difamadores uma indenização por danos morais ao cientista no valor de US$ 1 milhão.

Não há mais nada de bom em nosso mundo?

Como jornalista preciso ler ou ouvir as últimas notícias do mundo assim que acordo. Quando as pessoas ao meu lado me perguntam sarcasticamente quais são as “boas notícias” do dia, entendo a ironia. E mais do que irônico é a constatação de que hoje no mundo tudo parece ser um desastre, sobretudo de violência, mas também de crise de valores, de despertar de velhos fascismos e de corrupção de democracias.

Teremos que voltar aos tempos dos jornais que só publicavam notícias boas e que acabavam fracassando? Também não é isso, mas talvez seja verdade que especialmente com a chegada das redes sociais e das novas tecnologias de divulgação de notícias, essa coceira inata pelo catastrófico, pelo negativo versus o negativo, está se tornando mais aguda, e às vezes até cientificamente positiva.. Quanto mais sangue, melhor. Quanto mais trágica a notícia, mais ela vende.

Porém, talvez estejamos equivocados ao acreditar que boas notícias, notícias que expandem a alma, exemplos de melhoria, desejos de paz e justiça, não vendem mais. Isto começa a parecer verdade, pois os grandes jornais, que estavam a ser contaminados pelas redes sociais com a sua truculência quotidiana, começam a regressar a uma informação positiva, luminosa, cultural, que oferece esperança. As pessoas começam a se cansar de tanta violência e novas doenças psicológicas crescem de forma assustadora.

Há alguns dias, a notícia do menino de 17 anos que matou o pai, a mãe e a irmã com a arma do pai, sem arrependimento, chocou o Brasil. Além de confessar o crime, disse impassivelmente à polícia que o repetiria se pudesse. Sim, mais um crime, mas a maior parte das informações tratava de detalhes sobre o ocorrido, sem se aprofundar nas possíveis motivações. Apenas um jornal lembrou que o menino havia sido “adotado”, sem aprofundar as reais causas.

E esse é um dos perigos da informação nestes tempos em que certos tipos de violência se multiplicam e os meios de comunicação não conseguem escondê-la. O que falta na maioria das vezes é uma análise que aprofunde as verdadeiras razões deste aumento da violência, seja familiar ou social, especialmente entre os adolescentes e que atinge tão fortemente as mulheres. E seja verdade ou não que principalmente entre os adolescentes, a principal causa da violência são os celulares que facilitam seu acesso a jogos e cenas de violência.

Segundo psicólogos e psiquiatras, o que pode estar falhando, porém, é a falta de diálogo nas escolas e faculdades entre educadores e familiares para uma melhor compreensão do aumento da violência entre os jovens. Pouco adianta dar a conhecer os factos sem tentar aprofundar as suas causas, sabendo que estamos num momento histórico de transição. Não sabemos ao certo onde e para quê, mas é inegável que o homo sapiens se vê assediado pela velocidade da transformação da vida social e pessoal. Basta pensar na confirmação dos novos gurus da inteligência artificial (IA) que imaginam máquinas que superam intelectualmente os humanos.

O que talvez nos falte a todos nesta mudança de época que ainda não sabemos onde nos poderá levar é a capacidade de compreender as diferenças, os problemas e os riscos a que a nova geração que ainda não viveu os horrores de uma guerra mundial, mas que tem de suportar, sem ajuda, a nova e imparável revolução digital com todos os seus prós e contras.

Assim como as guerras mundiais do passado deixaram abertas durante anos as feridas do corpo e da alma sofridas nos campos de batalha, é possível que as novas guerras tecnológicas, que também poderiam ser tão desastrosas quanto as guerras convencionais, deixem feridas abertas e difíceis de tratar.

Esta pequena reflexão sobre o aumento da violência entre os adolescentes impulsionado pelas novas guerras tecnológicas que por vezes perturbam o equilíbrio físico e, sobretudo, psicológico dos jovens – que é tão difícil para nós analisarmos – fez-me recordar a triste história de um jornalista colega quando, antes da fundação deste jornal, trabalhei na secção cultural da RAI, a poderosa televisão italiana.

Fui incumbido de preparar uma série de reportagens sobre “a solidão do homem moderno”, desde a do empresário de sucesso até a da prostituta que escondeu a sua profissão da família. Na equipe de seis pessoas que viajou pela Itália em busca de experiências de solidão para filmar, havia um jornalista mais velho encarregado de organizar as viagens. No primeiro dia em Milão, na hora do almoço num restaurante, ele me perguntou se poderia comer sozinho em uma mesa separada. Ele era extremamente tímido e parecia esconder algum problema íntimo e indescritível.

Ao longo dos 10 dias de viagem, ele continuou comendo em uma mesa só para ele. De volta a Roma, perguntei ao meu diretor na época se aquele colega tinha algum problema especial. Ele me disse que não sabia, mas que, por exemplo, nunca conversavam com a filha única com quem ele morava em casa, apenas por telefone quando ele vinha à emissora de televisão.


Eu não me acomodei. Ele era um companheiro magnífico e prestativo. Um dia perguntei-lhe, sem rodeios, mas delicadamente, por que ele queria ficar sozinho. Ele confiou em mim e contou-me a sua história: era, embora ninguém soubesse, um sobrevivente do campo nazi de Auschwitz, do qual conseguiu escapar. Ele me contou que uma das coisas que mais o horrorizou no campo de concentração era estar sempre junto, sem um minuto de solidão ou para se aliviar, e que desde então não podia estar acompanhado. Sua felicidade era a solidão. Conseguimos abrir um diálogo e até conheci a filha dele, com quem ele só falava por telefone.

Essa lembrança ao mesmo tempo terna e terrível vem à mente cada vez que uma nova onda de violência assola o mundo dos adolescentes, que se mutilam ou se suicidam sem que nos preocupemos muito em saber o porquê. Sem este trabalho que deveria ser multicultural, continuaremos a denunciar todos os dias as tragédias sangrentas perpetradas por jovens, incapazes de compreender as dobras feridas da sua alma. E aí temos uma responsabilidade, nós que exercemos a função de informar a sociedade e de analisar porque é que este rio de jovens, hoje, em todo o mundo, parece sofrer frequentemente os açoites da incompreensão daquilo que ferve nas suas almas feridas mesmo em flor.

Juan Arias

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Prefeito perfeito

Em 1931, os relatórios de um ex-prefeito de Palmeira dos Índios, em Alagoas, circularam sabe-se lá como pelo Rio. Prestações de contas, mesmo de um prefeito corajoso, honesto e trabalhador, não são literatura. São prestações de contas. Mas, ao caírem aos olhos do poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, este pensou: "Quem escreve desse jeito deve ter um romance na gaveta". Mandou carta ao ex-prefeito e este confirmou: sim, tinha um romance, vou lhe enviar o manuscrito.

Semanas depois, chovendo no Rio, Schmidt foi pegá-lo no correio. Enfiou-o no bolso da capa, voltou para a editora, pendurou a capa no armário e foi fazer qualquer coisa. Como não chovesse pelos meses seguintes, não voltou a usar a capa e se esqueceu onde guardara o pacote, achou que o perdera. Em 1932, foi ao armário e lá estava. Leu, maravilhou-se e escreveu ao autor propondo publicação. E assim, por intermédio de "Caetés", título do romance, em 1933 o Brasil conheceu Graciliano Ramos.


Sempre ouvi essa história, mas nunca tinha lido os relatórios. Pois eles acabam de sair pela Record, em "O Prefeito Escritor", e fazem jus à lenda. Aí vão trechos.

Sobre a construção de um novo cemitério: "Os trabalhos a que me aventurei necessários aos vivos não me permitirão esta obra. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam". Sobre o serviço de luz contratado por seu antecessor: "Apesar de ser negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. Pagamos até a luz que a Lua nos dá". Sobre as estradas que encontrou no município: "Há lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford e lagartixa". Sobre o dinheiro do povo: "Transformando-o em pedra, cal, cimento etc., procedo melhor do que se o distribuísse com meus parentes, que necessitam, coitados".

A literatura ganhou um raro escritor. E o Brasil perdeu um prefeito mais raro ainda.
Ruy Castro

Quando o holocausto dos palestinos cessar, a imprensa será cobrada

O que dirá grande parte da imprensa mundial, a nossa incluída, quando finalmente emergirem um dia todos os horrores cometidos por Israel, ou se preferirem, pelo governo de extrema-direita do primeiro-ministro Benjamin “Bibi” Netanyahu, contra milhões de palestinos inocentes na Faixa de Gaza, na Cisjordânia e sabe-se lá mais onde desde o 7 de outubro do ano passado?

Porque os horrores cometidos pelo grupo Hamas, que naquela data invadiu Israel, matou e sequestrou 252 pessoas, esses foram e continuam sendo expostos à medida que ocorrem. Israel proibiu a imprensa de cobrir suas ações a pretexto de que ela poderia tornar-se mais uma vítima acidental da guerra. Mas não foi por isso. Foi para que a imprensa não testemunhasse ao vivo seus crimes e os denunciassem.

Há relatos à farta, mas não necessariamente vistos por olhos de jornalistas, do holocausto em curso dos palestinos, que não é chamado por esse nome. Holocausto, que significa massacre, é uma expressão só usada para relembrar o que sofreram os judeus durante a Segunda Guerra Mundial, quando mais de 6 milhões deles, de ciganos e de outras minorias foram mortos pelos nazistas alemães.


Não obstante, é de holocausto que se trata. E mais um dos seus atos ficou comprovado ontem: um ataque aéreo de Israel na região de Rafah, no extremo sul da Faixa de Gaza, provocou a morte de ao menos 35 pessoas, informaram autoridades palestinas. As Forças Armadas de Israel (FDI) reconheceram que o ataque atingiu civis palestinos, prometendo abrir uma investigação sobre o caso.

Ao mesmo tempo, disseram se tratar de um alvo legítimo, uma vez que ali se escondiam terroristas. Entidades internacionais contestam a versão, indicando que a área abrigava palestinos deslocados pela guerra, abrigados em tendas de lona, e que havia sido classificada por autoridades israelenses como uma zona segura. Foi Israel que forçou o deslocamento para lá antes de bombardear e invadir Rafah.

O Crescente Vermelho, organização médica equivalente à Cruz Vermelha, reportou muitos mortos e feridos na área, ao passo que o Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas, confirmou que 35 pessoas morreram e dezenas ficaram feridas. A ONG Médicos Sem Fronteiras disse que recebeu mais de 15 mortos e dezenas de feridos em um centro médico que mantém na região.

“O ataque foi realizado contra alvos legítimos, ao abrigo do direito internacional, através da utilização de munições precisas e com base em informações precisas que indicavam a utilização da área pelo Hamas”, afirmou uma autoridade militar de Israel, acrescentando que o “incidente” estaria “sob análise”. Dois líderes do Hamas teriam sido mortos: Yassin Rabia, e Khaled Nagar. E daí que morreram?

Para matar dois, cinco ou oito supostos líderes do Hamas de uma vez, se é que de fato eles foram mortos, Israel não se incomoda em matar dezenas de palestinos não combatentes, a maioria mulheres e crianças. Já, já, o número de palestinos inocentes mortos alcançará a cifra de 40 mil sem que o Hamas seja extinto como Israel garantiu que será, sem que sua rede de túneis seja inteiramente destruída.

O governo de Netanyahu só faz o que está fazendo porque tem, em casa, amplo apoio dos israelenses, e fora de casa, o apoio de potências como os Estados Unidos, a Inglaterra, a França e a Alemanha, entre outras. O isolamento internacional de Israel está em alta, mas ainda não basta para fazê-lo negociar o fim da guerra que o Hamas já propôs mais de uma vez, seguida da troca de prisioneiros.

Se a guerra acabar, o governo Netanyahu acabará também. Foi assim com todos os governos de Israel acusados por falhas de segurança que deram início a guerras. Os processos contra Netanyahu por corrupção empacaram porque Israel está em guerra, mas voltarão a andar quando as armas silenciarem. Ele não quer isso. Por isso, prolonga a matança indefinidamente. Conta com a nossa cumplicidade.

domingo, 26 de maio de 2024

Pensamento do Dia

 


O que Porto Alegre ensina para Belém

O cientista José Marengo do Cemaden, Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, usa uma expressão forte para explicar o que está acontecendo agora no clima, após o aquecimento simultâneo do Pacífico e do Atlântico. “A América Latina está como num sanduíche entre dois oceanos quentes”. É o retrato do tempo atual que tem provocado a inundação tão prolongada do Rio Grande do Sul. Marengo acha que a situação no território gaúcho deve durar um mês ainda para se normalizar e, depois, o clima pode ir para o extremo oposto. “Da enchente para a seca”.


— O clima no Sul é meio radical, pode-se ter um ano muito úmido e depois um muito seco. Sabemos que La Niña está se configurando e isso deve aparecer em agosto e poderemos dizer se será intensa. Se for intensa haverá uma situação de estiagem. O Sul pode sair de um período de enchente para o oposto, a estiagem, a seca.

As chuvas no Rio Grande do Sul, que começaram a cair pesadamente em 30 de abril, foram previstas no dia 26 de abril. Ele lembra que o pior foi até o dia 5 de maio. Na quinta-feira da semana passada, voltou a chover forte. Segundo Marengo, ainda que as chuvas parem agora, as águas vão continuar altas. Pode demorar um mês até essa água toda baixar.

Ele define também com uma expressão eloquente a falta de compromissos do mundo com as metas de redução das emissões.

— O Acordo de Paris já foi para o ralo. Em algumas regiões do mundo, passamos de um grau e meio. Então os países estão preparando planos de adaptação, como o Brasil neste momento. Está em processo de elaboração porque o assunto ficou parado por quatro anos no governo anterior.

O que o mundo está vendo agora é o resultado em grande parte do aquecimento global, que levou os oceanos Atlântico e Pacífico a ficarem quentes ao mesmo tempo durante esse período do El Niño. No La Niña, que está para entrar agora, haverá o esfriamento dos oceanos e a consequência no Brasil será chuva no Norte e Nordeste e seca no Sul do Brasil.

Há outras situações extremas previstas, como uma “temporada extraordinária de furacões no hemisfério norte”, com pelo menos 25 furacões. Há, também, o que Marengo define como “uma irregularidade das chuvas”. Em tudo isso, como ele diz, “o sinal humano está presente” como uma das causas.

Ouvir os cientistas do clima sempre impressiona, porque mostra que temos feito uma marcha insensata em direção a um desequilíbrio que não podemos consertar. Pode-se atenuar os efeitos dessa gangorra do clima com medidas de preparação dos locais onde vivem as populações.

— A chuva não mata. A chuva não mata as pessoas. Se a chuva cai num lugar onde as pessoas estão vulneráveis, expostas, aí acontece o desastre. O Cemaden trabalha com os extremos, emite os alertas de risco de desastres que são deflagrados pelos extremos, das chuvas intensas à falta de chuvas, as secas severas. O desastre é a mistura dos eventos extremos e a vulnerabilidade e a exposição da população.

Então, a solução parece óbvia, trabalhar para reduzir essa vulnerabilidade. Não é simples como parece.

— A agenda ambiental começa em um governo e só vê resultados bons em dois ou três governos adiante. Não aparece o produto em quatro anos de mandato. A prevenção, um governo começa, mas quem leva crédito é a próxima administração. Já a reconstrução, pode-se terminar a obra em um período de quatro anos.

O Cemaden monitora 1.133 municípios considerados os mais vulneráveis e expostos a desastres e agora pediu à Casa Civil para elevar esse número para 1.942. São esses que o Ministério do Meio Ambiente está considerando os municípios-piloto para um plano de prevenção contra desastres provocados pela mudança do clima. Mas há muita coisa que poderia melhorar imediatamente.

— Precisa haver a profissionalização da Defesa Civil. Em alguns municípios, há vagas ocupadas por parentes do prefeito, por exemplo. E tem que haver mais investimento, só que as estatísticas mostram que o investimento federal tem caído. O Brasil deveria ser proativo, mas parece que está cada vez mais reativo. E no mundo também é assim. Nas COPs, todo mundo vira ambiental, se veste de verde, tem apertos de mão e poses para as fotos.

Que Porto Alegre sirva de alerta para Belém. Na COP 30, o mundo precisa sair daqui com compromissos de realmente enfrentar a tragédia climática mundial.

Humanidade

Na tarde calma e fria que circula

por entre os eucaliptos e a distância,
olhando as nuvens quase nada rubras
e a névoa consentida pelos montes,
névoa não subindo por não ser
fumo da vida que trabalha e teima,
e olhando uma verdura fugitiva
que a noite no céu queima tão depressa,
esqueço-me que há gente em cada parte,
gente que, de sempre, sofre e morre,
e agora morre mais ou sofre mais,
esqueço-me que a esperança abandonada,
a não ser de ninguém, é sempre minha,
esqueço-me que os homens a renovam,
que o fumo de seus lares sobe nos ares.
Esqueço-me de ouvir cheirar a Terra,
esqueço-me que vivo… E anoitece.
Jorge de Sena

A realidade é um choque nas guerras e na tragédia no Sul

A fotógrafa americana Dorothea Lange, que documentou de forma indelével a essência da desolação humana na Grande Depressão do século passado, considerava o rosto humano uma língua universal.

— Suas expressões podem ser lidas e compreendidas em qualquer lugar do planeta — ensinava.


Na semana passada, o rosto opaco de uma gaúcha de meia-idade dizia o indizível. Estava simplesmente em choque, esvaziada da capacidade de sentir o que quer que fosse. Lembrava as imagens icônicas de soldados da Guerra da Crimeia, da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, do Vietnã, retratados em momentos de total abstração da crueza em volta.

Foi em tom monocórdio que a gaúcha Elvira Polippo contou à reportagem do portal g1 pedaços do que vivera no início da enxurrada que continua a afundar seu estado. Ela morava com o marido e o filho João numa casa de dois pisos na região do Taquari quando a enchente ameaçou engolir o imóvel. Subiram todos ao telhado. Em vão. A casa ruiu e “desceu o rio feito bala”. Mãe e filho, agarrados em entulhos, galhos e uma tampa de geladeira, só foram encontrados por socorristas voluntários cinco dias e cinco noites depois. Haviam sido arrastados 60km rio abaixo. Para João, de 35 anos, a força do viver parece intacta.

— Vai dar tudo certo — diz ele, apesar de ainda não conseguir andar.

A cirurgia de coluna que fizera antes do dilúvio inflamou na água contaminada. Para Elvira, agora também com leptospirose, o retorno à realidade será um soco. Seu marido segue desaparecido. Talvez ele venha se somar aos 165 mortos computados até agora pelas autoridades gaúchas.

Do outro lado do mundo, o corpo do brasileiro-israelense Michel Nisenbaum — um dos cerca de 250 sequestrados pelo Hamas no ataque terrorista do 7 de outubro passado — foi recuperado pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) na semana passada. Veio somar-se aos perto de 30 reféns que as FDI acreditam ter sido executados naquela ação morticida, enquanto outros cem talvez ainda vivos são usados pelo Hamas como moeda de troca para delongar ou negociar um cessar-fogo. É a barbárie plenamente escancarada que deveria nos deixar em estado de choque civilizatório. Não deixa.

Mas, como escreveu Leonard Cohen em “Beautiful losers”, “a realidade é uma possibilidade que não posso me dar ao luxo de ignorar”. E a realidade que finalmente começa a se impor no Oriente Médio foi assim resumida no jornal israelense Haaretz: “Uma coisa é certa: haverá um Estado Palestino. Local: na Palestina”.

Em artigo publicado no centenário diário, o colunista Alon Idan avisou a seus compatriotas: “Somos infantis... digo que somos tolos porque nos recusamos a aceitar o óbvio, a ver o que o mundo inteiro vê. Continuamos a agir como crianças que fecham os olhos e acreditam que, ao nada ver, a realidade não existe”. Referia-se às forças do sionismo nacional-religioso que teimam em negar a existência de um povo que se designa como palestino — isso, apesar dos 5 milhões de palestinos que vivem ali ao lado, na Cisjordânia ocupada, em Gaza, Jerusalém Oriental (além do 1,8 milhão de árabes que vivem em Israel).

Na próxima terça-feira, 28 de maio, três países europeus — Espanha, Noruega e Irlanda — deverão formalizar o reconhecimento da Palestina. Embora o ato não signifique reconhecimento a um Estado existente, apenas à possibilidade de ele vir a existir, o simbolismo será marcante por conferir legitimidade global à causa. Malta e a Eslovênia também entraram na fila, na rabeira dos 140 países (inclusive o Brasil) que já o fizeram. Por enquanto, nenhuma das grandes potências ocidentais — Estados Unidos, Reino Unido, França ou Alemanha — ainda saiu do pedestal.

Netanyahu, como esperado, sustenta que o reconhecimento da Palestina, ou um cessar-fogo, equivale a premiar as atrocidades terroristas cometidas pelo Hamas. Não é. Assim como o próprio Netanyahu, também o Hamas é oficialmente contra criar uma Palestina convivendo com Israel. O radicalismo de um se alimenta do outro. Quando a ministra israelense dos Assentamentos, Orit Strock, declara que a invasão a Gaza não deve cessar apenas “para salvar umas 22 ou 33 pessoas” — no caso, reféns há oito meses vivendo um horror —, ela se aproxima da lógica do custo-benefício em torno de vidas humanas praticada pelo Hamas.

A realidade é um choque.

“Nunca mais”, prometeram os sobreviventes do horror nazista. “Nunca mais para ninguém”, entoam seus descendentes ativistas da Jewish Voice for Peace. Assim se constroem humanidades.

sábado, 25 de maio de 2024

Pensamento do Dia

 


Justiça climática no país depende de combate à desigualdade

As enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul no início de maio deixaram um rastro de destruição. As piores consequências, porém, devem ser sentidas pelos grupos sociais mais vulnerabilizados. De acordo com especialistas, eventos extremos como esse aprofundam desigualdades sociais anteriores à tragédia e, sem políticas para combatê-las, será impossível alcançar a justiça climática no país.

"As populações mais vulnerabilizadas conseguem contar apenas com os abrigos que estão ainda em uma situação de bastante necessidade, de doação, de investimentos públicos, que que não chegam na velocidade que precisam chegar, as pessoas têm dificuldade de se alimentar, de ter acesso a produtos de higiene. Esse é um exemplo claro desse impacto desigual", diz a gerente da Oxfam Brasil, Maitê Gauto.

O Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), em parceria com o IBGE, monitora a incidência de eventos climáticos no Brasil e constatou que 8,2 milhões de pessoas vivem em áreas de risco para deslizamentos, inundações e enxurradas. Cerca de 26,1% deles moram em áreas sem acesso a saneamento básico adequado.

"A justiça climática, ligada ao racismo ambiental, alerta sobre cuidado para olhar para esses grupos mais vulneráveis e pensar sobre adaptação climática, e entender, a partir da pesquisa científica, como tirar as pessoas desses lugares de risco e evitar mortes e perdas", explica Juliane Souza, membro do coletivo Pretas B.


O conceito de justiça climática remonta à década de 1990, quando grupos de ambientalistas denunciavam os prejuízos da indústria do petróleo. Por isso, o termo carrega a noção de combate à mudança climática a partir da responsabilização de agentes que contribuíram para o cenário de desastre e alerta para a desigualdade dos impactos desses eventos.

No Brasil, o Ministério do Meio Ambiente considera a justiça climática um "eixo transversal do novo Plano Clima", afirmando que a descarbonização da economia deve incorporar "uma transição justa que impulsione o desenvolvimento sustentável, enfrente as desigualdades e promova a resiliência do país". O ministério recomenda que ações de adaptação corrijam também deficiências estruturais histórica para evitar, além de perdas e danos, o agravamento das desigualdades.

Com relação à tragédia no Rio Grande do Sul, os governos federal e estadual têm anunciado uma série de medidas para socorrer as famílias gaúchas. Entre as ações anunciadas estão o pagamento de um Auxílio Reconstrução que será liberado em uma parcela única de R$ 5,1 mil, e a possível construção de quatro cidades temporárias para os desabrigados. Cerca de 70% deles estão concentrados em abrigos da região metropolitana de Porto Alegre.

Para o porta-voz do Greenpeace Brasil, Rodrigo Jesus, as ações são positivas do ponto de vista de emergência, mas não levam em consideração medidas de longo prazo. Ele diz que ações de prevenção integram a promoção da justiça climática pois, com o mapeamento da população vulnerável, é possível contornar os impactos do evento extremo.

Gauto também reconhece que as ações emergenciais são essenciais para mitigar os estragos, mas que as políticas de adaptação climática e transição energética precisam ser revisadas para considerar o combate às desigualdades estruturais. "Se não, nunca vamos viver cenário de justiça climática".

Sobre o desastre no Rio Grande do Sul, Souza diz que "ninguém foi pego de surpresa" pois as medidas de prevenção são negligenciadas no país. "Quando tem esse componente, será que não é desastre ambiental, e sim um crime político? Precisamos refletir". Ela reforça que o Brasil tem uma legislação ambiental robusta, mas que essa é descumprida. "Só olham para isso quando a situação já aconteceu".

Gauto defende a incorporação do conceito de justiça climática pelo Judiciário para resguardar os direitos da população afetada pelos eventos extremos. "Tem que atuar, exigir que o município, o estado ou a União garantam as condições necessárias para que as populações, de maneira geral, mas principalmente, as mais vulneráveis, consigam reconstruir as suas vidas e não deixar ninguém para trás. Precisamos construir agora as respostas que vão ser efetivas em um futuro".

No Brasil, os casos de litigância climática, que são as ações judiciais movidas após denúncias de violações ambientais, estão em alta. Em 2013, apenas cinco processos desse tipo estavam em tramitação, segundo o monitoramento de pesquisadores da PUC-Rio. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, a quantidade de ações cresceu, e agora somam 82.

No Brasil, não há um modelo que sirva de padrão para justiça climática. Contudo, há experiências de respostas às mudanças climáticas em regiões de periferia que podem servir de inspiração para essas políticas, diz Rodrigo Jesus. "Se construir um banco de soluções, teremos um grande acervo".

Já Juliane Souza afirma que, para enfrentar a mudança climática, é preciso avaliar os problemas ambientais do país, como o desmatamento, e também rever o modelo de negócios baseado na extração de recursos naturais. "A indústria responsável pela emissão de gás carbônico tem que se reinventar. O processo de mudança é lento, mas tem a ver com uma economia de desenvolvimento sustentável".

A Europa que pode morrer

Não vivemos tempos normais. Pela primeira vez desde o fim da II Guerra Mundial, uma ameaça armada à liberdade e ao estilo de vida da Europa está às suas portas. A Ucrânia é um problema europeu. Se a Rússia alcançar os seus objectivos em Kiev por meios militares, a Europa não voltará a ser o que é ou era dantes. Melhor: a simples invasão em 2022 mudou por completo o quadro estratégico do continente.

Escrevo a dias das eleições europeias. A Ucrânia permanece no centro de todos os nossos desafios políticos. A Rússia não concorre com uma lista de candidatos, mas nem por isso deixa de estar presente. Durante os últimos anos batalhou por influenciar a opinião pública europeia e as campanhas eleitorais, de forma a desestabilizar todas as nossas instâncias políticas.

A União Europeia e os Estados que mais pesam na relação de forças internas ficarão “dormentes” até à eleição da nova direcção europeia, ou seja, sem grande capacidade de iniciativa. A Rússia aposta numa subida das extremas-direitas, onde conta com activos apoiantes. A troca entre o sacrifício dos ucranianos e a “paz universal” não funciona. O exemplo é que, mesmo no momento em que está em vantagem militar, Vladimir Putin volta a ameaçar com o uso de armas nucleares. Ele tem beneficiado da fragmentação e do “vazio das decisões” na UE. Está em causa a política russa da Europa.


Esta guerra sempre foi um assunto europeu. Uma Ucrânia russificada abriria uma vasta zona de destabilização e insegurança da Estónia à Polónia, da Roménia à Turquia, escrevem na Foreign Affairs analistas Liana Fix e Michael Kimmage. “A presença russa na Ucrânia será interpretada pelos vizinhos da Ucrânia como uma ameaça à sua segurança.” Mas, lamentavelmente, “uma vitória da Rússia na Ucrânia não é ficção científica”.

Entra em jogo um outro factor. À medida que a política americana se voltou a concentrar no Médio Oriente, a guerra ucraniana torna-se ainda mais europeia. A pax americana, muitas vezes imposta pela força e pouco respeitadora da soberania e dos interesses dos aliados, garantiu à Europa um período de paz, prosperidade e segurança, em contraste com a “Europa trágica” da primeira metade do século XX.

A impotência da superpotência torna o mundo mais perigoso e não mais pacífico. A impotência de Biden em travar Netanyahu em Gaza é um péssimo sintoma. Aviva ainda mais a espiral do ódio recíproco entre israelitas e palestinianos, gerando uma escalada de inaudita ferocidade.

A Administração Biden refirmou o seu compromisso de apoio militar a Kiev e de garante da segurança da Europa através do artigo 5.º da carta da NATO. Nos dois primeiros anos da guerra, os EUA assumiram o principal contributo à defesa da Ucrânia, até que esse apoio foi posto em causa no Congresso. Com Trump ou sem Trump, não voltará a ser o que era.

“Antes da presença americana no continente, a Europa nunca desenvolveu uma ordem de segurança própria, de modo a reconciliar a trindade ‘liberdade, unidade e segurança’”, sublinha o analista Benjamin Rhode do International Institute for Strategic Studies (IISS, Londres). Liberdade, unidade e segurança são três objectivos difíceis de conciliar e que alguns autores designaram por “impossível trindade” ou “trilema da Europa”. A Europa é agora convidada a pagar a sua segurança. Este é o doloroso preço para enfrentar o desafio russo e salvaguardar os próprios laços atlânticos.

“Os Estados Unidos são um aliado cada vez mais distante e um defensor mais relutante”, escreve o jornalista alemão Wolfgang Munchau. “E não se trata apenas de Trump. Para a Europa, chegou o momento de assumir as suas responsabilidades.”

Animais tratados como pessoas no drama ecológico

Na catástrofe ecológica na região brasileira do Rio Grande do Sul, com centenas de mortos e quase um milhão de desabrigados de suas casas, surgiu um caso único na operação de resgate de vítimas arrastadas pelas águas. Pela primeira vez, a mesma atenção que tem sido dada, tanto pelas autoridades como pelos voluntários, para salvar vidas de pessoas foi demonstrada no resgate de animais domésticos e selvagens.

Até o momento, mais de 12 mil animais foram salvos da morte. Além disso, os feridos têm sido atendidos por veterinários com o mesmo interesse que as pessoas nos hospitais, enquanto caminhões e aviões carregados de alimentos chegam para eles de todo o país. Isso levou o colunista Eduardo Affonso, do jornal O Globo, a afirmar: “Aos poucos vamos percebendo que tudo que é vivo nos importa. A próxima revolução, a dos animais, já começou.”

Uma mudança no Brasil na valorização e na dignidade que os animais merecem começou de alguma forma com a polêmica posse do novo presidente Lula da Silva, a quem seu antecessor, Jair Bolsonaro, se recusou a dar a tradicional faixa de comando. Janja, esposa do presidente, organizou uma comissão formada por anônimos para entregar o poder, representantes de categorias normalmente ignoradas pelos detentores do poder, desde um catador de lixo, uma indígena e até o cachorro de sua família, chamado Resistencia.


Desta vez, na nova tragédia ecológica, a família presidencial teve um papel importante no resgate dos animais, dando-lhes a mesma atenção e importância que as pessoas. Isto tornou evidente que é cada vez mais real nas pesquisas sobre a inteligência do que chamamos de animais que talvez o Homo Sapiens não seja tão diferente deles e em alguns aspectos os animais possam até ser muito superior a nós.

Ao escrever este artigo, lembro-me há muitos anos de uma das colunas do brilhante Manuel Vicente. Foi um ano de Jogos Olímpicos. Com a fina ironia que o caracteriza, riu dos esforços “subumanos” que durante um ano inteiro os candidatos a competir nas Olimpíadas fizeram para conseguir alguns décimos de segundo na corrida de cem metros ou para vencer por algumas braçadas numa piscina olímpica. Vicent, maliciosamente, escreveu que deveríamos rir daqueles esforços de uma lebre ou de um simples peixe que venceriam as corridas sem precisar de um ano de esforço físico.

E cada vez mais o orgulhoso Homo Sapiens começa a perceber que os animais, todos e não apenas os mamíferos, sabem sentir e amar, por vezes, tanto ou mais do que os chamados humanos. É uma consciência que tanto os cientistas como quem convive com os animais começam a ter. Hoje sabemos que a grande maioria do que chamamos de insetos, até mesmo formigas, possui uma série de qualidades que nos faltam. Pense no que precisamos para voar no espaço e como é fácil para uma águia ou um simples pintassilgo.

A novidade que está surgindo no Brasil durante esta tragédia natural para salvar animais em perigo e cuidar deles e também das pessoas, começou com a imagem que correu o mundo do cavalo batizado de Caramelo por causa da cor de sua pele, que ficou três dias preso no telhado de uma casa meio destruída sem conseguir descer.

O primeiro a reagir emocionalmente a essa imagem terna e dolorosa ao mesmo tempo foi o presidente Lula, que comentou que não conseguia dormir pensando na solidão e no desespero de Caramelo e junto com sua esposa Janja pediu ajuda ao Exército para resgatá-lo o mais rápido possível. E o cavalo acabou sendo um símbolo. Desde então, a atenção dos serviços de emergência aos animais em perigo duplicou e chegaram à região aviões de alimentação para os milhares de animais resgatados, muitos deles feridos.

Esta nova consciência da dignidade dos animais está a crescer hoje no mundo e novas descobertas sobre o cérebro estão a revelar que nós, as chamadas pessoas, não somos tão diferentes nos nossos sentimentos e capacidades da grande maioria dos animais. Nós os consideramos inferiores e durante séculos foram tratados como seres com quem poderíamos até nos divertir em jogos sangrentos. Pouco mais que objetos.

Talvez junto com esta nova consciência sobre as qualidades e a importância dos animais, de todos aqueles que Francisco de Assis chamou de “nossos irmãos”, devêssemos começar a mudar a linguagem sobre eles. Costumamos dizer que nós, os chamados humanos, somos “seres pensantes”. Os animais não pensam? Pergunte aos meus gatos Babel e Luna, cujas reações às vezes deixam eu e minha esposa congelados por serem sofisticadas. É por isso que às vezes dizemos que “eles parecem humanos”. E se um dia se descobrisse que, em muitos aspectos, esses animais teriam muito a nos ensinar, humanos orgulhosos?

Netanyahu contra Israel

Já passa da hora de Israel se livrar de Binyamin Netanyahu, mesmo com a guerra em Gaza ainda em curso. O premiê israelense já deu repetidas mostras de que sua prioridade é salvar a própria pele, não fazer o que é melhor para Israel.

Paradoxalmente, o conflito criou uma oportunidade para Tel Aviv. Os EUA estão jogando todo o peso de sua diplomacia para tornar em princípio factível um acordo pelo qual Israel normalizaria suas relações com a Arábia Saudita e a maior parte dos países árabes ditos moderados. É o que Israel sempre quis desde 1948, o ano de sua fundação. Em contrapartida, precisaria aceitar a criação de um Estado palestino autônomo na Cisjordânia e em Gaza.


Em tese, isso não é um problema. Embora a solução de dois Estados tenha perdido apoio popular nos últimos anos, em especial após o ataque terrorista do Hamas, Israel segue oficialmente comprometido com ela. Na prática, porém, Netanyahu sempre trabalhou para sabotar as negociações com os palestinos. E não é só ele. Os partidos de extrema direita que compõem a coalizão governista não apenas são veementemente contrários ao Estado palestino como ainda querem anexar a Cisjordânia e Gaza. É uma posição francamente delirante. Israel não tem condições políticas nem econômicas de governar diretamente esses territórios. Fazê-lo seria perenizar uma situação de apartheid.

A escolha diante dos israelenses, portanto, é entre meter-se num atoleiro moral e militar sem perspectiva de saída e a possibilidade de viver em paz com o mundo árabe. O segundo caminho encerra obstáculos formidáveis e cobraria decisões difíceis, mas é aquilo com o que as gerações anteriores de israelenses sempre sonharam.

Netanyahu não tem vontade nem condição política de seguir essa trilha. Se os israelenses querem uma paz sustentável, precisam pôr um fim à sua administração o quanto antes. A janela de oportunidade não vai durar muito tempo.

quinta-feira, 23 de maio de 2024

Resumo das chuvas


Desastre climático é ponta de iceberg

Roberto Waack

Rio Grande do Sul: As lições do dia seguinte

A Terra parou em 1983. Seria apenas mais uma noite comum de outono, quando 100 milhões de norte-americanos perplexos assistiram em suas casas a “O Dia Seguinte”. Em um filme barato de televisão, o canal ABC Pictures confirmava com realismo o pior dos medos da Guerra Fria: nem mesmo os moradores de uma cidadezinha de interior sobreviveriam a um conflito nuclear.

Ainda não fizeram um filme que retrate o dia seguinte ao juízo final climático. Enquanto isso, as imagens on line do Rio Grande do Sul já bastam para mostrar o poder devastador das mudanças do clima. Centenas de mortos, milhares de refugiados, bilhões de prejuízo. Um estado inteiro destruído. O aquecimento global também não poupa metrópoles nem vilarejos.

A verdade é que vamos trocar o pneu com o carro correndo ladeira a baixo. Porém, o momento exige responsabilidade política e lucidez científica. Enquanto consertamos os estragos no Sul do Brasil, revela-se inadiável que a humanidade (e isso inclui os brasileiros) repense os fundamentos atuais da economia, da política e da sociedade, redefinindo os conceitos de lucro, desenvolvimento e sucesso.

Nesse cenário caótico é precipitado, por exemplo, engavetar aleatoriamente as licenças ambientais de projetos minerais, petrolíferos e agrícolas. Afinal, a soberania alimentar, econômica e energética, mesmo no novo normal climático, ainda dependerá desses insumos. Tampouco faz sentido qualquer surto de enrijecimento regulatório e legislativo sobre essas e outras atividades.

Ao invés de abrir a temporada de caça às bruxas de sempre, é urgente estruturar uma governança nacional e mundial, com a qualificação e a autoridade necessárias, para coordenar o desafio multilateral de projetar um modelo de vida humano viável, para que tenhamos um dia seguinte ao Rio Grande do Sul.



Ana Toni, Secretária de Mudança Climática do Ministério do Meio ambiente, acerta ao apontar a diferença entre a prevenção e a adaptação às mudanças climáticas. As providências são distintas (e quem paga a conta também).

Há um paradoxo climático a ser considerado aí: as causas globais têm impactos locais, cujo custo está além da capacidade das pessoas e governos do lugar. Que lições a tragédia local no Rio grande do Sul proporciona ao mundo emissor de gases efeito estufa? Por outro lado, que responsabilidades financeiras e políticas esses emissores globais devem assumir junto aos afetados locais?

Será que basta trocar um bilhão de carros a gasolina por um bilhão de elétricos? Nem sabemos os impactos decorrentes da produção de baterias nessa escala, para veículos que ainda serão feitos de minérios, plástico e couro.

Francamente, o tipo de pergunta que ninguém quer fazer, muito menos responder, é: para que (ou para quem) servem um bilhão de carros que trafegam geralmente com um ocupante, em cidades congestionadas e superaquecidas?

A mesma resposta serve para outras bugigangas que nosso consumismo supõe necessárias. Com que recursos naturais atenderemos a mais dois bilhões de consumidores chineses e indianos nos próximos anos? E quando chegarmos a dez bilhões de pessoas no mundo em 2050?

Sequer simulamos a viabilidade de descarbonizar a produção mundial de energia hoje baseada em termelétricas, se mantivermos o padrão de consumo atual e sua tendência futura. Energia solar, eólica, nuclear, hidrogênio, hidrelétrica, geotérmica… Tudo isso consome recursos naturais e espaço físico.

Proibicionismo a esmo, nesse estágio, não resolve. É preciso inteligência, planejamento, cooperação e vontade.