quinta-feira, 10 de maio de 2018

A pequena e triste vitória da ocupação

Enquanto os bombeiros vasculham as pilhas de concreto queimado que restaram do edifício Wilton Paes de Almeida, uma reacomodação da linguagem toma lugar nas páginas dos jornais. Enquanto as autoridades falam nos microfones das emissoras de rádio e televisão, dando conta dos pedaços de ossos humanos e brinquedos de criança que foram encontrados nos escombros, uma palavra antes proscrita se instala no léxico mais vistoso do noticiário. Essa palavra é o substantivo feminino “ocupação”.

Ao longo de uma semana algo mudou no linguajar da imprensa. Não foi algo meramente cosmético; houve um deslocamento que alterou o estatuto de uma palavra, uma palavra-chave, e esse deslocamento se fez sentir nas reportagens, nos artigos de opinião e nos editoriais. O movimento foi mínimo (a língua é lenta), mas produziu efeitos que podem persistir. O substantivo “ocupação” deslizou um centímetro, talvez menos, mas nesse centímetro parece ter cruzado a linha que separa o banimento da cidadania, parece ter ingressado no vasto e populoso país que abriga os vocábulos aptos a circular livremente. A palavra ocupação parece ter sido anistiada. 


Há tempos existe uma política editorial, ora declarada, ora tácita, em todas as redações profissionais do Brasil – ou, se não em todas, ao menos nas melhores. Quando se trata de reportar que um agrupamento de pessoas tomou posse de um imóvel por métodos que atropelam as vias legais, dá-se preferência ao substantivo “invasão”. Até aqui, quem falava em “ocupação” eram os autodenominados “movimentos sociais”, situados na outra margem do rio que separa os interesses e os padrões de fala.

Não adianta nada demonizar um lado ou outro. Há razões legítimas que sustentam tanto a postura da imprensa profissional quanto a dos movimentos sociais. Do lado das redações, comprometidas com a ordem jurídica vigente, uma propriedade, seja pública ou privada, que tenha sido tomada de assalto por pequenas multidões que não dispõem de autorização legal para usá-la só pode ser caracterizada como uma propriedade “invadida”. Do lado dos líderes dessas pequenas multidões, uma propriedade vazia, especialmente quando localizada no centro das grandes cidades, é uma propriedade que não cumpre a sua função social. É uma propriedade “desocupada”. Logo, nada mais justo que ela seja “ocupada” por quem precisa de moradia.

A disputa de pontos de vista se manifesta na política, nos embates mais aborrecidos, do mesmo modo que se manifesta na língua, onde produz mudanças nos interstícios sutis e no plano dos enunciados, enfadonhos ou barulhentos. Agora, essa disputa redundou num discreto aumento, quase imperceptível, do valor que a norma culta confere ao signo “ocupação”. Em editoriais, reportagens e debates de todo tipo, falantes de um lado e de outro se referiram com absoluta naturalidade ao Wilton Paes de Almeida como um edifício “ocupado”. Falou-se muito também em “invasão”, mas, no balanço – e digo balanço, aqui, em dois sentidos –, no instável balanço das edificações da linguagem, nota-se a migração dessa palavra-chave, que empreende uma viagem penosa, tendo partido de margens pouco nomeadas para seguir em direção a vocabulário que dá nome – e visibilidade – ao que se passa neste mundo.

Pois aqui estamos nós. Em meio a tantos saldos negativos deixados pelo fogo que consumiu o prédio e consumiu também os lares clandestinos do Largo do Paiçandu, temos agora um saldo que, ao menos de minha parte, deve ser qualificado como positivo. Por mais que os manuais de redação possam justificar-se, por mais que os editores digam que aquele edifício não era uma propriedade particular, que seus habitantes precários estavam lá ilegalmente, mas nem tanto, e que aquela situação toda, cheia de ambivalências jurídicas, pode, sim, ser caracterizada como “ocupação” sem que isso represente uma concessão, o que se deu, de fato, foi um gesto de mão estendida, uma abertura que antes não existia. De uma semana para outra o redator de notícias mudou de tom ao se referir aos seres humanos que antes teria preferido tratar como invasores. Foi um sinal de sensibilidade, muito provavelmente irrefletido, inadvertido, mas foi.

Sem notar, a imprensa ajudou a conferir alguma legitimidade, ainda que exígua, à demanda dos que se esgueiram de madrugada por corredores em ruína, sem luz e sem água, para terem um lugar para morar, mesmo que seja um lugar para cair morto. Nestes dias em que a realidade se mostrou bárbara, a imprensa se mostrou mais civilizada. Talvez inconscientemente. No luto, aflorou um reconhecimento.

A língua, mesmo quando esconde, revela. Tanto na tragédia como na comédia. Repare no modo como os gaúchos de Porto Alegre se referem à sua universidade federal, a UFRGS. Esse F aí nunca é pronunciado por eles. Antes, a UFRGS era apenas URGS. Só foi convertida em UFRGS em meados do século passado, mas, mesmo depois disso, os gaúchos seguem dizendo URGS ou, mais propriamente, “Uôregues”. A prosódia não mente: o adjetivo “federal”, como bem sabemos, nunca desfrutou de grande prestígio entre os gaúchos. Ao omiti-lo, o falante o denuncia como hóspede indesejado.

Agora mudemos de região. Pegue qualquer cidade do Nordeste, onde escolas tradicionais também foram federalizadas. Pergunte lá a qualquer aluno onde estuda e ele responderá: na “Fédéral” (o nome que a instituição tinha em sua origem terá sido sepultado, como palavra morta). Outra vez a prosódia é coerente: nas áreas mais ao norte do País, o prestígio não vem da recusa, mas do ato de se associar ao Distrito Federal.

Volto agora ao trágico. Partido ao meio não por regionalismos anedóticos, mas pela ideologia cega, a palavra “ocupação” pede para falar. Que a gramática reserve um posto honrado para os que, ao arrepio da lei, buscam a justiça de um teto, mesmo que em chamas. Que a imprensa aceite que quem ocupa, ainda que machuque, não é necessariamente um criminoso.
Eugênio Bucci

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