Nunca vi tanta gente junta. Muitos anos se passariam até que eu voltasse a ver multidão igual, em junho de 2013 — mas ainda não vi, e acho que não verei de novo, um tal sentimento de irmandade e de união.
Naquele distante ano de 1984, o Brasil inteiro queria diretas. Ou, pelo menos, o Brasil inteiro que a gente conhecia. Não éramos necessariamente jovens e ingênuos — havia gente de todas as idades no comício — mas ainda guardávamos algumas ilusões coletivas, e estávamos convencidos de que, com o fim da ditadura, as nossas esperanças se realizariam.
Depois, claro, foi o que se viu.
Mas durante aquele ano vivemos intensamente, e acreditamos, com convicção, que um país novo dependia apenas de nós — nós, que, àquela altura, ainda nos amávamos tanto.
Nós, o povo.
Unido pela última vez.
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O movimento pelas diretas é a melhor lembrança política que muitos de nós guardamos. Estávamos saindo de uma época de trevas, e a luz no fim do túnel parecia real; ninguém imaginava, então, que ela era o proverbial trem vindo em direção contrária. Canções, filmes e séries de TV contribuíram para consolidar a imagem romântica daqueles tempos.
O problema é que a História não se repete, a não ser como farsa.
Ainda que houvesse consenso em torno da realização de eleições diretas hoje, o espírito das “Diretas Já!” está morto há tempos, e foi sepultado de vez pela polarização que divide o país. Não há união de contrários possível numa manifestação como a de domingo passado, com bandeiras de movimentos sociais contaminados e parlamentares investigados discursando como almas honestas nos microfones. A manifestação, desa vez, foi uma festa exclusiva da esquerda, nem um pouco preocupada em se mostrar agregadora.
Falta um território neutro no Brasil, um território de paz. Faltam nomes que possam fazer a ponte de que todos precisamos depois de tanto desgaste emocional e de tantas manifestações de ódio. Uma campanha pelas diretas até poderia ser este território, mas, como nos protestos de 2013, ela deveria ser apartidária, sem bandeiras, sem cores, sem acusações mútuas de parte a parte.
Uma manifestação de brasileiros, acima de tudo: quem conseguir levar a cabo este prodígio vai juntar muita gente na rua. Não mais com a esperança ilusória de 1984, mas com o cansaço acumulado de tantos anos de decepção e roubalheira.
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Um dia, o menino Alex Tizon começou a se perguntar quem, exatamente, era a moça que trabalhava na sua casa, e que havia sido trazida pelos pais quando imigraram das Filipinas para os Estados Unidos. A resposta era simples e dura: Eudocia Tomas Pulido, a Lola, que passou 56 anos com a família, e que morreu em 2011, era uma escrava. Ela fora dada à sua mãe pelo avô em 1943, quando tinha 18 anos, e desde então não conhecera outra vida a não ser trabalhar dia e noite, sem salário e sem contato com os parentes que, contra a sua vontade, deixara para trás:
“Nenhuma outra palavra além de escravo define a vida que ela viveu. Seus dias começavam antes que os demais acordassem e terminava depois de termos ido para a cama. Ela preparava três refeições por dia, limpava a casa, servia meus pais e cuidava de mim e dos meus quatro irmãos. Meus pais nunca a remuneraram, e a repreendiam constantemente. Ela não usava correntes nos pés, mas bem podia ter usado.”
Jean Baptiste Debret |
A história, que é matéria de capa da revista “The Atlantic” de junho, caiu como uma bomba na internet. Difícil avaliar a extensão do seu impacto: para muitos americanos, que associam a escravidão a lugares remotos do Terceiro Mundo, a descoberta de que ela mora ao lado está sendo um choque de realidade inesperado. Mas o debate está sendo particularmente intenso nas Filipinas, onde empregadas ganham menos de R$ 200 por mês, e onde o serviço doméstico continua sendo uma das poucas formas de ascensão social. Milhares de mulheres deixam o país anualmente para trabalhar com famílias estrangeiras, especialmente em Hong Kong e nos países árabes.
Para nós, brasileiros, a saga de Lola é tristemente familiar. Nós também tivemos as nossas meninas pobres, trazidas do interior para trabalhar a troco de nada, sem direito a educação, dignidade ou vida pessoal, babás de várias gerações, invisíveis, perdidas numa zona escura de submissão e de vago afeto: “quase um membro da família”. De quantas Lolas não ouvimos falar ao longo dos anos? Apesar da legislação, apesar das redes sociais, quantas Lolas não existem ainda por aí, em arranjos que a nossa sociedade insiste em considerar “normais”?
Alex Tizon, professor de jornalismo na Universidade do Oregon e detentor de um prêmio Pulitzer, não viveu para ver a repercussão do seu texto. Ele morreu em março passado, aos 57 anos.
“My family’s slave” está em goo.gl/P0q1wD.
Cora Rónai
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