quarta-feira, 18 de agosto de 2021

A Igreja do Diabo

O Malafaia, aquele que conversa quase sempre com o Bozo, em lugar de oferecer o ombro, poderia presenteá-lo com “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, lançado em 1884.

Numa daquelas noites tristes, o pastor leria a história para o amigo.

Seria um regalo inesperado. Algo assim como o Carluxo com tatuagem do Chico Buarque no torso.

Bozo, por certo, não tem a menor ideia de quem seja Machado de Assis. Mas, certeza, sabe tudo do Diabo, e vice-versa: “Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega”.

Machado antecipou em anos a bozofrenia brasileira. A baixa produtividade (“-5% + 4% = 9%”), o oportunista religioso e ainda a desumanidade popularizada a partir do curralzinho, sempre contrária à solidariedade humana: “Com efeito, o amor do próximo é um obstáculo grave (...), uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se deve dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo”.

(Antes de prosseguir na história, vale lembrar que Machado de Assis casou-se apenas uma vez — com dona Carolina, por 35 anos —, era católico praticante, mas sarcástico com os costumes da religião, profundo conhecedor das malandragens do brasileiro e conservador na política. Quando morreu, em 1908, seu féretro foi seguido nas ruas do Rio por milhares de pessoas. Ah, nunca foi comunista!).

Dito isso, observações feitas, sigamos.


No conto de Machado, um dia, o Diabo tem a desatinada ideia de fundar uma igreja. Quer acabar com as outras religiões. Era rico, tinha lucros contínuos, mas sente-se avulso por não possuir regras, rituais, tampouco cânones. Vivia dos “descuidos e obséquios humanos”. Um pária. Sobe ao céu e comunica a Deus seu intento. Desalentado, o pobre Senhor o expulsa novamente e antevê um fracasso. Ao voltar à terra, atuando no mesmo ramo do Malafaia, proclama a seus seguidores:

— Sim, sou o Diabo; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos… Vede-me gentil e airoso… Sou o vosso verdadeiro pai.

Em seguida, detalha sua doutrina. A soberba, a luxúria e a preguiça são reabilitadas. Também a avareza, a gula e a ira. A inveja torna-se virtude principal. O pregador, em sua Igreja, atordoa a turba, incitando-a a “amar as coisas perversas e detestar as sãs”.

A plateia de sua motociata ulula. Sentem- se livres para a prática do racismo, da homofobia e a mentira contumaz. Também para a compra de vacinas.

Para não deixar seus ouvintes do Centrão receosos, fornecendo-lhes espécie de álibi satânico, o Diabo define o que entende ser fraude, com uma alegoria: “é o braço esquerdo do homem; o braço direito é a força”. E conclui: “Muitos homens são canhotos, eis tudo”.

Em seguida, forjou seu mais ousado conceito: perorou sobre a venalidade, abraçando-a, para aplausos do aplastado Arthur Lira.

— Se tu podes vender a tua casa, o teu boi… como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, a tua própria consciência?

É possível vislumbrar os olhos bacentos do Bozo ouvindo a voz esgalgada de Malafaia, ao lado de uma margarina aberta sobre a mesa da cozinha. Ele pensa em Ricardo Barros; espanta o odor sacudindo a cabeça. O silêncio é total, tanto que se ouvem os perdigotos presidenciais caindo ao chão.

A leitura prossegue.

O empreendimento religioso é um sucesso. A doutrina se espalha pelo planeta. Contamina o Judiciário, as Forças Armadas, os partidos de oposição. Aécio Neves pede uma audiência noturna. O Diabo já sabe a conta.

Mas…

Crédulo e cego em sua soberba, o anjo caído escorrega da moto. Embalado por sua popularidade, ensurdecido pela quantidade de aplausos no curralzinho e pelo ronco das motocicletas, o pobre Diabo descobre estar sendo traído.

Às suas costas, às escondidas, seus fiéis voltam a praticar as antigas virtudes. Algo como as redes bozofrênicas em busca de redenção. “Dilapidadores do Erário restituem pequenas quantias”.

O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia, sentencia Machado. Deus sorriu.

Ainda é possível vislumbrar o espanto do Bozo ao final da leitura. Percebe que até o Diabo se dá mal. Antes de chupar um dente, busca uma saída:

— Malafaia, que história triste… Me dá aqui que vou colorir.

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