quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Brasil da famíia Rachadinha

 


É possível melhorar a qualidade do debate público e da democracia?

“Os cidadãos são racionais em sua visão das instituições políticas, atualizando sua avaliação em resposta ao que observam”, diz relatório recém-lançado da Universidade de Cambridge sobre a percepção da democracia.

A confiança nas instituições declina porque os governos falharam em coisas como “a coordenação econômica na zona do euro” e na resposta mais efetiva à “mudança climática global”.

Fiquei em dúvida se os autores listavam alguns itens de suas próprias predileções políticas ou de fato imaginam que sejam estas as preocupações das pessoas e causa de sua crescente insatisfação com a política. Mas este não é o ponto. O ponto é que suas conclusões expressam bem o que os professores Christopher Achen e Larry Bartels chamam de teoria “folk” da democracia.

Achen e Bartels discutem o tema em seu livro “Democracia para Realistas”. Seu alvo são as visões ingênuas que teimam em tratar a democracia como expressão dos “interesses” dos eleitores que talvez tenha florescido à sombra da famosa frase de Lincoln em Gettysburg.​



A partir daí sua crítica é devastadora. Eleitores, em primeiro lugar, detém muito pouca informação relevante sobre temas políticos. Isso acontece por que o custo da informação é alto. Muita gente imaginou que a internet resolveria isso, com informação barata e abundante, mas tudo parece ter piorado pela raiva, pelo excesso, pelo tribalismo e essas coisas que todos sabemos.

O livro traz exemplos saborosos sobre como os eleitores de fato agem nas democracias. Um deles mostra como pequenas alterações nas palavras, ou na maneira como uma pergunta é feita, podem produzir uma enorme mudança na opinião das pessoas.

Exemplos: uma pesquisa mostrou que perto de metade dos americanos achavam OK “não permitir” que um comunista pudesse discursar por aí, mas apenas 1/4 concordava em “proibir” ele de falar. Outra mostrou 2/3 dos eleitores, às vésperas da Guerra do Golfo, favoráveis ao uso da “força militar”, mas apenas 30% a favor de “ir à guerra”.

Traço comum é o que Keith Stanovich chama de “myside bias”. Ao invés de ajustar opiniões diante da realidade, ajusta-se a realidade a opiniões. E regra do grupo ou “lado” político. É o feijão com arroz de nossas democracias.

Exemplo disso tivemos no debate sobre a suposta privatização do SUS, na última semana. Bastava um clique na internet para saber que já há milhares de unidades de saúde gerenciadas pelo setor privado. Inclusive PPPs, desde o primeiro e bem sucedido contrato feito pelo ex-governador Jaques Wagner na Bahia.

Mesmo com informação e uma penca de bons estudos acadêmicos disponíveis, as pessoas prosseguiam “ajustando” sua narrativa. Promover estudos sobre as parcerias seria “inconstitucional” (!); tem a “pandemia” (!); tem coisa “por trás” (!) O que mesmo os estudos indicam? Isso pode melhorar a qualidade do atendimento? Sei lá, mas a gritaria está grande, na internet.

É um tipo de negacionismo democrático, hoje banal e possivelmente sem cura. Ainda que todos pudessem ganhar com um debate público qualificado, não há incentivos para que cada um aja de acordo, isto é, pense com algum distanciamento e julgue programas públicos com responsabilidade.

O professor James Fishkin, da Universidade Stanford, desenvolveu um modelo de democracia deliberativa para lidar com isso. Ele faz uma amostra da população e expõe as pessoas a um ambiente reflexivo, com argumentos a favor e contra, e incentivos para que todos ajam de modo sereno e responsável.

Há alguns anos assisti a um de seus experimentos. De metade a 2/3 das pessoas tendem a mudar sua visão ao longo do processo. Sua mudança (esta é a tese) reflete o que aconteceria com a grande sociedade, caso algo similar fosse possível. Obviamente não é.

O que nos leva a uma indagação perturbadora: nossas melhores esperanças democráticas funcionariam apenas em condições de laboratório? De certo modo, é a resposta de Fishkin. De minha parte, não tenho resposta. Sei apenas que daqui de fora, da selva, deveríamos pensar a respeito.

Fala de Presidente com maiúscula

Temos que ouvir uns aos outros, respeitar e cuidar uns dos outros, unir, curar, nos unir como nação. Sei que não será fácil. Sei como são profundas a diferenças, mas também sei que para fazer progresso precisamos parar de tratar os oponentes como inimigos.
Eu vou ganhar como democrata, mas vou governar como presidente. É o único cargo nesses pais que representa todo mundo, e exige cuidado por cada um.
Agora, todo voto precisa ser contado. Ninguém vai tirar nossa democracia de nós, nem agora, nem nunca. O povo não será silenciado
Joe Biden, candidato liderando a campanha presidencial americana

A sombra do populismo

Se confirmada, a derrota de Donald Trump fará bem à democracia nos Estados Unidos e no mundo. Atestará que a corrosão das instituições representativas não é a única sina dos países que se entregaram a líderes populistas. Tendo ascendido pelo voto livre, podem ser por ele dispensados antes de consumar os seus projetos autoritários.

Mas o provável resultado das eleições americanas não garante a transferência suave do governo para os democratas. E ainda que ocorra no final das contas, enfraquecerá, mas não erradicará, lideranças que, naquele país ou em qualquer outro, e não apenas nos dias que correm, se afirmam representantes do "povo verdadeiro" —o volk, no jargão nazista— em contraposição a elites cosmopolitas, surdas aos anseios das pessoas comuns. Em seu nome, os populistas agem para solapar as regras que limitam o poder dos governantes e garantem os direitos de todos, inclusive das minorias.

A Itália oferece um exemplo da força e resiliência do fenômeno. Desde que o sistema de partidos do segundo pós-Guerra, ancorado na Democracia Cristã, veio abaixo nos anos 1990, políticos populistas, ora no governo, ora na oposição, tornaram-se participantes destacados da vida política do país. Casos de Silvio Berlusconi, Giuseppe Conte, Matteo Salvini, Beppe Grillo, à frente de diferentes partidos —Força Itália, Liga Norte, Liga, Movimento 5 Estrelas— com significativa projeção eleitoral.

"O populismo é uma sombra permanente da moderna democracia representativa" diz o historiador alemão Jan Werner Müller, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Alimenta-se do que o filósofo italiano Norberto Bobbio chamou de promessas não cumpridas da democracia. Populistas exploram expectativas frustradas e variados temores, reais ou imaginários: do desemprego, da destituição, dos imigrantes, dos negros, dos pobres, dos esquerdistas ateus. E se beneficiam da exposição às feias engrenagens da política por parte de um público mais informado.

O fato é que, já há algumas décadas, a desconfiança dos cidadãos em face de partidos, parlamentos e governos só faz crescer em todo o mundo democrático. No Brasil, a propósito, é assustadoramente elevada. Cidadãos insatisfeitos e desconfiados são mais sensíveis a políticos, tanto faz se de direita ou de esquerda, para os quais a vitória eleitoral é só o que conta, não passando de um estorvo os mecanismos de controle do poder típicos do sistema representativo.

Ganhando ou perdendo eleições, o populismo está aí para ficar. Mas fará toda a diferença para a democracia sempre que for batido nas urnas.
Maria Hermínia Tavares

Vitória do caos

O mundo está testemunhando a decomposição de um Estado que, dissessem o que dissessem os detratores, mantinha pelo menos a aparência de ser civilizado. A polarização aguda realçou todos os defeitos do modelo —da multiplicidade de regras entre os estados ao colégio eleitoral.

A apuração dos votos será lenta. Mas já é possível proclamar o grande vencedor da disputa presidencial americana. Nem Biden nem Trump. Prevaleceu o caos. A democracia dos Estados Unidos sai do processo eleitoral mais doente do que entrou.

Tempos sombrios

São inquietantes as notícias que chegam no início de novembro desta inacabável e insidiosa pandemia: as eleições norte-americanas podem consolidar tendência recente de renúncia à cooperação internacional e estimular o populismo e o desrespeito às regras democráticas; já é certo que os Estados Unidos estão profundamente divididos, em um clima que pode evoluir para confrontos violentos, e têm um bizarro sistema eleitoral, mormente se comparado ao moderno sistema brasileiro; a Europa está sofrendo com a segunda onda da Covid-19 e atentados terroristas motivados por intolerância religiosa; inexiste perspectiva concreta para distribuição, em curto prazo, de vacina contra a doença que está infelicitando a humanidade, especialmente nos países pobres.


Aqui, insistimos com polêmicas infantilizadas ou incompreensíveis, como a obrigatoriedade ou não de aplicação de uma vacina que, infelizmente, ainda não está disponível. As redes sociais são utilizadas por autoridades, de forma banal, para emitir bisonhos comentários sobre fatos corriqueiros ou proferir xingamentos a adversários do dia. As eleições municipais são um tedioso espetáculo de promessas inviáveis e de disputas por rendosos cargos políticos. Definitivamente, não estamos bem.

Parece que ninguém está levando a sério o aumento do desemprego e da pobreza, a crise fiscal dos Estados e Municípios, a insolvência de empresas, a instabilidade do câmbio, as ameaças inflacionárias, a necessidade de proteção para os vulneráveis, a possibilidade de uma segunda onda da pandemia.

Não se conseguiu promover um debate consistente sobre esses temas e outros associados à crise sanitária, ao contrário do que está sendo feito em muitos países.

Na Alemanha, a chanceler Angela Merkel, com a serenidade habitual, adverte que o inverno será duro e difícil, e pede aos compatriotas que assumam conduta solidária e empática.

Na Nova Zelândia, a primeira-ministra Jacinda Ardern lembra que seu vitorioso enfrentamento da pandemia é fundado na firmeza e na antecedência.

O Congresso sequer conseguiu aprovar a Lei de Diretrizes Orçamentárias e instalar a Comissão Mista para tratar do orçamento de 2021.

Algumas iniciativas parlamentares para mitigar os rigores da crise ainda não lograram prosperar, como o projeto de lei nº 3566/2020 apresentado pelo Deputado André de Paula, na Câmara dos Deputados, tratando da indispensável moratória tributária para as micro e pequenas empresas e o projeto de lei nº 578/2019 apresentado pelo Senador Álvaro Dias, no Senado, que propicia a conversão da bolsa família em emprego, sem custo fiscal.

É indispensável que sejam apresentadas mais iniciativas voltadas para arrostar a crise, especialmente por parte do Executivo.

Em lugar disso, persiste a pretensão de aprovar uma ampla reforma tributária, com severos impactos sobre preços, setores e entes federativos, com base em reuniões por videoconferência, apresentações em powerpoint e divulgação de exercícios econométricos que pretendem projetar um futuro longínquo a partir de suposições precárias.

Quando se retira o véu das agendas ocultas, percebe-se que se pretende, por exemplo, reduzir a carga tributária de geladeiras e automóveis de luxo para aumentar a de livros, mensalidades escolares e consultas médicas, em nome de uma enganosa e regressiva alíquota única.

A existência de um número grande de alíquotas efetivas no ICMS não pode ser pretexto para instituição de uma alíquota única. Vedação à implantação de regimes especiais e à redução de base de cálculo já representaria uma enorme simplificação.

Debates sobre as propostas estão interditados, limitando-se a exposições formais de representantes setoriais, ouvidas com a indiferença de um frade de pedra. Negociações, quando existem, são operadas em ambiente privado, traduzindo uma peculiar forma de privatização da reforma tributária.

O Estado não pode demitir de si a responsabilidade de conduzir reformas de tal envergadura, em que se exigem imparcialidade e prevalência do interesse público.

Pensamento do Dia

 


O nosso dever face à pandemia

Testar, identificar e isolar. Se queremos mesmo combater a pandemia, é nessas três ações que precisamos de nos concentrar. O foco tem de estar na prevenção, na interrupção imediata das cadeias de contágio, na criação de um sentimento coletivo que demonstre como todos somos importantes e temos um papel a desempenhar nesta tarefa. Pensar que tudo se resolve com mais camas nos hospitais, com mais ventiladores, com mais médicos e enfermeiros é estar sempre a correr atrás do prejuízo (mesmo que isso seja necessário em situações de emergência, porque falhou tudo o resto). E se é verdade que em Portugal temos uma boa capacidade de testagem, ainda nos falta o resto: identificar rapidamente todos os contactos em risco e isolá-los o mais depressa possível, com informação precisa e eficaz.

Se já pensava que esta era a melhor forma de combater a pandemia – até porque foi assim que países como a Coreia do Sul e Taiwan conseguiram quebrar as redes de contágio, sem precisarem de obrigar as suas populações a confinamentos totais –, a minha experiência das últimas semanas mais não fez do que reforçar essa convicção. Descrevo-a, de forma cronológica, com o menor número de palavras que consigo e apelando à paciência e compreensão do leitor.

Osama Hajjaj

No sábado, 24 de outubro, ao sair de casa para ir participar na abertura da VISÃO Fest, um evento público com a presença de 30 oradores de alto nível, recebi a mensagem de que, uma semana antes, tinha estado, durante várias horas numa viagem de carro, com alguém que acabara de descobrir que se encontrava infetado com o SARS-CoV-2. Liguei logo para a linha SNS24, a contar o sucedido. Informaram-me de que devia isolar-me e que iriam enviar-me, em pouco tempo, a prescrição para fazer o teste. Ato imediato: dei meia-volta, deixando a Mafalda Anjos quase sozinha na tarefa de receber os nossos convidados, e entrei em isolamento – embora pudesse ser apenas um falso alarme, não podia, em circunstância alguma, correr o risco de ser o superspreader de um evento pelo qual passaram, entre outros, o primeiro-ministro e a diretora-geral da Saúde. Fiz o teste nessa mesma tarde e recebi o resultado cerca de 44 horas depois: positivo. Nas horas seguintes, liguei a todas as pessoas com quem me lembrava de ter estado, a pouca distância, nas últimas duas semanas. Um dia depois de receber o resultado do teste, foi-me enviado o código para instalar na aplicação StayAway Covid. Estranhamente, mal o introduzi, a app desligou-se, com um agradecimento, partindo do princípio de que somos todos obedientes e respeitamos o isolamento – o que não está provado, infelizmente. Dois dias depois de saber que estava infetado, recebi a chamada de rastreio. Todos os contactos que forneci eram de pessoas que já estavam em isolamento profilático – algumas até com testes feitos, todos negativos! –, porque as tinha avisado da minha condição.

Escrevo isto, no meu décimo dia de isolamento, não por me achar especial – há, de certeza, todos os dias, milhares de portugueses com experiências semelhantes –, mas para ilustrar como o nosso papel, enquanto cidadãos, é absolutamente crucial no combate à Covid-19. Como se observa pelo meu relato, o sistema assenta, quase em absoluto, na colaboração voluntária dos cidadãos. Parte do princípio de que todos nós cumprimos as normas e as recomendações que nos transmitem. Mas se não as seguirmos, temos de ter consciência de que seremos também responsáveis pelo caos que pode instalar-se nos hospitais.

Não há sistema de saúde capaz de resistir à pandemia sem que os cidadãos façam parte da solução. No fundo, basta cumprir, aliás, aquilo que está inscrito no primeiro parágrafo do artigo 64º da Constituição: “Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover.” Se o fizermos, podemos passar, individualmente, alguns dias em casa – mas estaremos a evitar que vamos todos, ao mesmo tempo, para casa. Depende de nós!

Tudo é político

Ouvi essa expressão quando entrei na faculdade de filosofia (feita para moças e veados, tal era o estigma, conforme algumas pessoas disseram, encorajando-me) para me bacharelar em História, e ser um merda de um professor, conforme vaticinou um médico que queria namorar a minha namorada. Estávamos nos acabados anos 50.

Foi de professores dedicados que ouvi o axioma: “Tudo é político”. E a vida também é política? Ou haveria, além da religião, da filosofia e da coragem de honrar o Humano, uma política para o sofrimento, o inesperado e a morte?

Fiquei aturdido com essa tonelagem que meus jovens ombros recebiam quando descobri a responsabilidade de ser um protagonista no futuro do Brasil. A descoberta da política como um modo de reler a minha existência na qual um copo d’água ou um beijo seriam um ato político, reitero, assustou-me.

Nahid Zamani


Primeiro, porque passava de objeto a sujeito. Depois, porque eu percebia que a maior parte das pessoas não se dava conta de sua importância num mundo que ficava cada vez maior e menor. Quando descobri a fórmula, virei o que chamávamos de “conscientizado” por oposição aos “alienados”. Aqueles que simplesmente viviam sem ter o menor vislumbre de suas qualidades ou motivação para ir além de suas rotinas.

Um jovem a enxergar prisões em todo lugar e eu logo vi a religião como uma delas. Depois, no auge da minha jornada, classifiquei tudo e todos como “alienados”. Seria não político o amor familiar? Gostar de filmes americanos? Ler Joaquim Nabuco? Como ser igualitário com crianças a serem nutridas e disciplinadas? Seria possível escapar de um permanente debate e destino político?

Virei noite falando disso com meus amigos. O casamento, a paternidade e a vida profissional sem privilégios de família foram definitivos para uma parada meditativa. Sem dúvida, tudo era político. Sobretudo, era claro, para os políticos e os filhos, compadres, companheiros e amigos dos políticos. A antropologia social relativizou-me antes do livro que escrevi – Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social.

Não seria mais sensato dizer que a política é uma parte importante da vida? Não seria mais inteligente descobrir que alienados e conscientizados trocam de lugar? Se todos são alienados, como queria o Simão Bacamarte da história de Machado de Assis, não seríamos nós os conscientemente alienados, conforme repetia papai aceitando sereno a minha postura revolucionária sustentada por ele – o alienado maior?

Tempos depois, vi com nojo e decepção como o axioma de que tudo é política desembocava num outro pressuposto: o de que tudo era poder e exercer o poder em nome dos oprimidos permitia ir além de todos os limites. Também tenho vivido a oportunidade de reconstruir um outro lado – o lado de uma direita sempre envergonhada e estigmatizada, bem como alienada – jogado no lixo pela ignorância e pelo mesmo protagonismo dos condenáveis laços de família. Esses hóspedes não convidados segundo analistas políticos brasileiros.

Assim tem sido meu aprendizado do tudo é mesmo política.

E assim sendo, nada se pode fazer para inibir uma moralidade nacional na qual as obrigações devidas aos compadres, companheiros e parentes (sobretudo aos filhos) são uma forma silenciosa de fazer política. Ela, de fato e de direito, engloba o chamado “político”, tirando-o de sua impessoalidade – essa dimensão crítica numa democracia é concretizada pelo voto secreto. Pois o segredo e o impessoal contêm a semente da intimidade – esse avatar da liberdade igualitária.

*
Assisti feliz às comemorações dos 80 anos de Pelé – um dos maiores personagens positivos da vida brasileira. Nada roubou, a ninguém enganou com seu extraordinário talento e o peso do negrume glorioso de sua pele.

Vida e morte ancoram a existência. Morre o ator Sean Connery, que encarnava na ficção do cinema a idealização mítica de um agente secreto estilo Pelé em luta contra o mal. Um mal sempre atenuado nas aventuras de James Bond (o simbólico Ligador) por romances sensuais machistas, porém sedutores. Quem não queria ser o 007 ou a namorada dele?

Morto o ator, fica – eis o segredo dos mitos – o personagem na sua representação imortal a indicar que, pelo menos no cinema, o bem vence o mal.

Coisa cada vez mais complicada de acreditar neste mundo globalizado e, sobretudo, neste Brasil no qual as “fake news”, esses veículos de calúnia e mentira, são levadas a sério ao lado da burrice como política, conforme revela a questão das vacinas contra a pandemia.

– Papai, disse um amado filho para um pai idoso, afinal o 007 morreu bem. Noventa anos é um bocado de vida.

– É muito para quem tem 50, 60 ou 70 anos. Mas para mim, com 84, os 90 são um muro, tipo fronteira. Seriam mais seis curtos anos e depois...

O que aprender com a eleição americana

Adiantou ou não, é outra história. Mas Joe Biden e o Partido Democrata acertaram ao pôr em julgamento no processo eleitoral americano o caráter de Donald Trump. Aqui, em 2022, esse poderá ser um dos trunfos da oposição contra Jair Bolsonaro, além dos certamente pobres resultados de sua administração.

O caráter – ou a falta dele – de Bolsonaro é tão ou mais vulnerável do que o de seu ídolo que parece ter escapado do pior. E se a economia foi bem nos Estados Unidos até a pandemia do Covid-19, no Brasil ela chegará mal daqui a dois anos. Cadê as prometidas reformas do Estado? O desemprego ainda será grande.


Bolsonaro está assustado com o que se passa em países vizinhos do nosso. Ele acha que o continente começa a adernar para a esquerda sob os efeitos da recente eleição na Bolívia e do plebiscito no Chile. Sabe que não terá dinheiro para manter os programas assistencialistas que ancoram sua popularidade.

O cenário não é nada bom para ele. O ministro Paulo Guedes, da Economia, em conflito cada vez mais acirrado com seus colegas, disse outro dia que precisava fazer muita besteira para que o dólar batesse até o fim do ano a casa dos 7 reais. Já bateu a casa dos 6. Investimentos externos escasseiam. 

E parte dos eleitores que em 2018 votaram em Bolsonaro, principalmente os de maior renda e escolaridade, começa a dar-lhe as costas, insatisfeito. O governo é uma tremenda confusão. Nem uma vitória de Trump será capaz de salvá-lo. O Mito simplesmente corre o risco de deixar de sê-lo.

'2016 não foi um acidente'

Giuseppe Maggiore
Trump não é um fenômeno passageiro. Não podemos achar que 2016 foi um acidente, um “erro” de 2016.

Este é um país dividido em dois e isso mostra que o Trumpismo é muito forte e que, mesmo se perder a Casa Branca, seguirá muito forte.

Este é um país que tem um setor muito progressista e de esquerda, mas o centro do país é muito conservador e esta eleição é o sinal de que grande parte dos americanos não suporta a ideia de um governo paternalista, que diga o que eles podem ou não fazer, mesmo em um momento de epidemia
Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue

O estadista e a assombração

O discurso de Joe Biden ontem à noite foi uma serena declaração de vitória, mesmo que ele tenha negado já ter vencido a eleição. Precisava confirmar seu lema de que “todo voto será contado”. Agiu e falou como um estadista tentando reunir o país após a eleição. No mesmo momento, o presidente Donald Trump queria parar a contagem dos votos. Trump continuará sendo forte após a derrota na eleição? Não. O que lhe deu força nos últimos quatro anos foi o extraordinário poder da presidência americana. Fora dela, será apenas o ex-presidente. Mas o país que sai das urnas está com fratura exposta, o que exigirá de Biden um enorme esforço para superar tão funda ferida.


O partido Republicano terá que fazer algum tipo de transição para uma liderança mais moderada para voltar a se comunicar com uma parte do eleitorado. Até por instinto de sobrevivência, precisará se afastar de Trump, o líder tóxico. O partido Democrata, mesmo vencendo a eleição, precisará de muita habilidade para governar. Primeiro, para costurar as diferenças das tendências internas, depois para governar sem o controle do Senado, e por fim, e mais importante, para reduzir a extrema tensão que dominou o país nos últimos anos.

O primeiro sinal de fraqueza foi dado por Trump quando cantou vitória na madrugada de quarta-feira, mas ameaçando ir à Suprema Corte, já falando em fraude. Era o seu melhor momento da apuração e Trump ameaçava. Deixou claro que na aparente calma com que falava e se declarava vitorioso, com tanto ainda a ser apurado, estava mais uma vez usando a estratégia de criar confusão. No final do dia de ontem ele exigia a recontagem dos votos em Wisconsin, uma tropa trumpista tumultuava um centro de apuração em Detroit, e ele falou em ir à Suprema Corte para parar de contar votos.

Confirmou-se desde o começo da apuração o cenário de um país dividido, em que uma parte do eleitorado é estimulada a não confiar nas regras do jogo, e no qual a eleição é decidida por pouco. O aumento da participação popular no processo eleitoral não trouxe a moderação, mas sim mostrou a profundidade da divisão do país. Na sociedade, isso indica conflitos e violência, e no sistema político, impasse e paralisia.

Para a economia é um cenário difícil. A recessão reduziu de intensidade no terceiro trimestre, mas os Estados Unidos ainda não recuperaram o que perderam. Como todos os países do mundo. A segunda onda da pandemia aprofundará a crise. A vitória de Biden fará com que nos próximos dois meses e meio um presidente lame duck (pato manco), que sempre negou a gravidade da pandemia, esteja ainda no comando do aparato governamental. O Congresso terá que encontrar caminhos para negociar o pacote de ajuda com o Congresso. E ontem até o líder trumpista no Senado, Mitch McConnell, disse que mais estímulos serão aprovados este ano.

Há problemas por todos os lados na sociedade americana, ela sai politraumatizada deste período de uma presidência conflituosa e que quebrou todos os protocolos. As velhas divisões raciais se somaram a uma radicalização religiosa e moralista. Donald Trump, como suas cópias no mundo, é pessoa totalmente distante dos valores de família e de religião que ele manipula. Também é apenas estratégia apostar na anticiência, nos delírios persecutórios, nas teorias da conspiração. Mas com isso ele conseguiu uma legião de eleitores. Suficiente para alimentar o discurso de descrédito das instituições, mas insuficiente para mantê-lo na Casa Branca.

Esses têm sido tempos de enorme desafio para a democracia, tempos que assombraram os corações das pessoas que sabem o que os extremistas de direita já fizeram contra a humanidade. No segundo mandato Trump iria escalar o trabalho de demolição da democracia americana. Ouvir palavras serenas de Joe Biden falando o que se espera de um vencedor, que se proponha a governar para todos, afastando a divisão entre estados azuis e vermelhos, é tranquilizador. “Foi uma campanha difícil, mas mais difícil para o país. É hora de baixar a temperatura, de ouvir um ao outro, de enxergar o outro, de respeitar e cuidar um do outro novamente. Unir, sarar e ficar juntos como uma Nação”, disse Biden. A realidade ainda trará as dificuldades e dores do tempo presente. Mas é esperança o que está diante de nós.