terça-feira, 4 de julho de 2023

A conta oculta da superexploração no Brasil

Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, com a descoberta de 2.575 pessoas em situação análoga à de escravo, em 2022, chegou a 60.251 o número de trabalhadores resgatados desde 1995. Neste ano, foram criados grupos especiais de fiscalização móvel, objetivando combater a escravidão no país. Dos resgatados no ano passado, 92% eram homens, 29% tinham entre 30 e 39 anos, 51% residiam no Nordeste e 58% nasceram na região. Além disso, 23% não tinham completado o 5º ano do ensino fundamental, 20% haviam cursado do 6º ao 9º ano incompletos e 7% eram analfabetos. No total, 83% se autodeclararam negros, 15% brancos e 2% indígenas. Dos resgatados em 2022, 148 eram estrangeiros: 101 paraguaios, 14 venezuelanos, 25 bolivianos, 4 haitianos e 4 argentinos. Do total de trabalhadores resgatados, 87% estavam operando em atividades rurais.

O trabalho análogo ao escravo, em pleno século XXI, se insere em um quadro estrutural de superexploração no Brasil, que vêm desde que o país foi descoberto. Seja na fase colonial, na qual a esmagadora maioria era explorada, seja, depois, na fase neocolonial, na qual o Brasil sempre ocupou um papel de fornecedor de riqueza a preços módicos, de todas as formas possíveis e imagináveis, para o centro de dominação imperialista.


As denúncias sobre o trabalho escravo devem servir para um necessário debate sobre a “escravidão” no trabalho nos dias de hoje, nos quais, as dificuldades dos trabalhadores se agravam, em função de o país estar enfrentando uma verdadeira guerra econômica e política. Não é outro o motivo da política do banco central, chamado “independente”, que mantém a maior taxa de juros reais do planeta, contra tudo e contra todas as correntes de pensamento econômico no Brasil. Pouca gente, além dos banqueiros e seus representantes, apoia a política atual do Banco Central.

O problema da superexploração no Brasil é gravíssimo, o trabalho escravo é um dessas inúmeras formas de exploração dos trabalhadores. Contamos com um dado que é uma ilustração-síntese desse problema: cerca de 50 milhões de brasileiros estão escorados no Bolsa Família para não passarem fome. Esse número representa 24% da população, que depende do governo para comer, no país que é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo e o primeiro produtor de proteínas.

São conhecidas as desigualdades regionais do país. Pode-se dizer que, em algumas regiões do Brasil, os direitos advindos da revolução de 1930 ainda não foram implementados. Mas superexploração não é exclusividade das áreas rurais, do chamado Brasil Profundo, na qual localizam-se a esmagadora maioria dos casos de trabalho escravo, como vimos. No Brasil, na América Latina, na África, na Ásia, e mesmo no interior dos países ricos, a burguesia combina inúmeras formas de explorar o trabalhador, acima do que poderia ser considerado “normal”. A partir das formas principais de superexploração (pelo salário, pela jornada, pelo ritmo e condições de trabalho), as combinações são as mais variadas possíveis. Cada uma dessas formas gerais se concretiza em vários métodos específicos de extrair mais valor da força de trabalho.

Nos assustamos – com inteira razão – com a condição de trabalho análogo ao escravo, mostrada pelos indicadores e fotografias. Mas, segundo o Dieese, a principal motivação das greves em 2022 (foram catalogadas mais de 1.000), foi o não pagamento de salários. Isto é, o trabalhador dá duro o mês todo, ganha pouco, e ainda tem que fazer uma paralisação para receber os salários (para maiores detalhes, ver pesquisa do SAG – Sistema de Acompanhamento de Greves do Dieese).

O trabalho em situação análoga ao escravo é completamente degradante. Mas é certo que os quase 15 milhões de desempregados e desalentados (segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio, do IBGE), uma verdadeira multidão, vivem em uma espécie de escravidão. O país tem 39% da população ocupada na informalidade, alguns estados registram taxas beirando os 60% da força de trabalho, nessa condição extremamente desfavorável. Pelo que se conhece do mercado de trabalho, a maioria das funções exercidas na informalidade lembram condições de semiescravidão, também.

A partir da aprovação da Reforma Trabalhista de 2017, no governo de Michel Temer, o Brasil assistiu ao maior ataque da história contra a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Foram alterados mais de cem pontos nas leis trabalhistas, trazendo, entre outras violências, o trabalho intermitente, o trabalho parcial, as terceirizações para as atividades fim, a exposição de trabalhadoras grávidas a ambientes insalubres de trabalho. A intenção dos governos do golpe (Temer e Bolsonaro) era mais abrangente: Jair Bolsonaro, em março de 2019, fez uma promessa nos Estados Unidos, em reunião com representantes da extrema-direita, de que teria chegado ao poder para levar adiante um projeto de destruição nacional. “O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o povo. Nós temos que desconstruir muita coisa” (18/03/2019, afirmação feita na sede da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), em Washington).

A superexploração da força de trabalho na periferia capitalista, na medida em que transfere maiores quantidade de valor para os países imperialistas, exerce uma importante funcionalidade na engrenagem capitalista internacional. Esse sistema, neste momento, não suporta melhorias das condições de vida do povo, mesmo que superficiais. A superexploração no Brasil tem o fundamental papel do Estado. Como em economia não existe mágica, enquanto os trabalhadores ficam mais pobres, aumenta exponencialmente os gastos do Brasil com juros da dívida. Somente no ano passado essas despesas, oficialmente, chegaram a R$ 780 bilhões.

A dívida pública é uma ilustração completa de um sistema de parasitagem que os pobres do país suportam sem ao menos saber. Manter a maior taxa de juros do planeta e transferir fortunas para os banqueiros todo ano, não tem nada a ver com decisões técnicas. Se a população entendesse que o país que não consegue crescer, que deixa 33 milhões de brasileiros passar fome, tem ruas esburacadas e gente morrendo na fila do SUS, transfere diariamente bilhões para super ricos, a situação obviamente seria outra.

O fenômeno da superexploração em sociedades como a do Brasil gera um ambiente de intensa violência estrutural contra a maioria da população. As várias formas de superexploração do trabalho, agressivas por si só, levam a uma intensa violência contra a população em geral. É a força da violência e coerção do Estado garantindo as condições para os trabalhadores aceitarem um regime de brutal superexploração.

‘Narrativa’: a nova fraude ideológica

Desde as últimas décadas do século passado, a chamada Teoria do Discurso tem trazido importantes aportes às Ciências Sociais – não apenas à Sociologia e à Ciência Política, mas também à História e ao Direito, entre outras disciplinas. Mediante a incorporação e reelaboração dos conhecimentos linguísticos recentes, ela ampliou consideravelmente a compreensão de diversos fenômenos característicos das formações sociais contemporâneas – em especial, dos novos processos sociais e políticos que as constituem.

Revestem-se de especial importância, aos fins deste artigo, os principais conceitos cunhados pelos formuladores da nova teoria – a começar, pelo de discurso. Diferente de sua acepção vernacular, ou mesmo do senso comum do vocábulo, não se trata aqui daquilo que se fala ou diz – ou ao menos, não apenas disso. O que se fala ou diz, consiste na fala, conceito distinto e abarcado pelo de discurso – que remete, além dela, a quem, para quem, sobre quem ou o quê, para quê e porque se fala. Donde se chega a outro conceito fundamental para a compreensão dos fenômenos discursivos – o de sujeito; melhor dizendo, de sujeitos – aquele que fala e aquele a quem se fala.


Consideradas estas noções, os estudiosos definem o discurso como a articulação de significados socialmente existentes; o que importa sobremaneira destacar nesta definição, é que o discurso não cria verdades – ou mentiras – mas, isto sim, articula, organiza sentidos que estão presentes, embora dispersos, diluídos entre os sujeitos sociais que busca atingir. Um exemplo, entre tantos que se poderia apontar: o discurso sobre violência e criminalidade não inventa seus conhecidos temas – o aumento da insegurança, a frouxidão da lei e da justiça, a impunidade, etc – antes os recolhe na realidade social e os reordena no imaginário dos sujeitos destinatários, na direção desejada pelo sujeito emissor, neste caso, o endurecimento penal e o autoritarismo estatal.

Estas referências aos conceitos básicos da teoria do discurso, e à sua relevância como instrumento de análise política, são feitas aqui a propósito da emergência, nas falas dos partidários da extrema direita, de uma expressão de conteúdo vazio e indeterminado, mas revestida de aparência supostamente técnica.

Trata-se do termo narrativa, a toda hora invocado pelos adeptos do neofascismo como presumível justificativa para seus atos, e também como alegado artifício ou estratagema de seus inimigos – não apenas a esquerda, mas também os integrantes dos Tribunais Superiores, em especial o STF e o TSE, em virtude dos inquéritos e processos ali instaurados em resposta a seus comportamentos criminosos e antidemocráticos.

Em suma, quanto a estas acusações, não passariam as mesmas de meras “narrativas” oriundas daqueles setores, interessados em atacar as lideranças patrióticas; e, curiosa e contraditoriamente, propugnam estes mesmos direitistas, como método a adotar em sua “guerra cultural”, o uso generalizado de…narrativas.

De qualquer sorte, o que importa destacar a propósito, desde logo, é a absoluta ausência, entre os conceitos da teoria do discurso ou mesmo da ciência da linguagem, de uma tal ideia ou noção. E ao observador atento não escaparão os verdadeiros sentidos e alcance da palavra, ao que parece tão cara à novilíngua fascistóide. Com efeito, encadear os fatos em uma sucessão aparentemente lógica – embora não necessariamente apoiada na realidade, ou até mesmo destituída deste apoio factual – na defesa de uma posição na disputa dialética, outra coisa não é senão apresentar uma versão dos acontecimentos.

Efetivamente, a tal “narrativa”, não passa disto: do procedimento, tão conhecido e corriqueiro, de apresentação de uma versão, isto é, de relato de fatos, objeto de controvérsia, segundo a ótica de partícipe do conflito, e dirigido explicitamente à sustentação de seu interesse no mesmo. É o que ocorre rotineiramente no debate judicial, no qual as partes fazem a “exposição dos fatos” (expressão usada pela lei processual) que eventualmente dão suporte às suas pretensões. Ou ainda nas matérias jornalísticas, que apresentam os diferentes relatos acerca das ocorrências noticiadas – inclusive seguindo (ou devendo seguir) a expressa recomendação quanto a “ouvir o outro lado”. E também nas discussões políticas, dentro e fora dos parlamentos, quando os oponentes expõem suas diferentes versões sobre os episódios ocorridos.

Em todos estes casos é de “narrativas” que se trata, ou seja, de versões, de relatos parcializados de fatos controversos – o que, considerados em tais contextos, nada têm de impróprio ou condenável.

O que não se pode aceitar, no entanto, é o uso indevido desta expressão como forma de reduzir o debate político à mera invocação de argumentos puramente cerebrinos, na defesa de posições insustentáveis frente aos princípios democráticos consagrados na Constituição e nas leis da República. Trata-se, este procedimento inovador, de mais um truque típico das chamadas fake news, ou mesmo de fake opinions, artifícios de que se utilizam a nova extrema direita global, sobretudo no universo fluído e ainda infenso de controle das ditas redes sociais digitais: a alusão, repetida ad nauseam, a fatos inverídicos, ou mesmo verdadeiros, mas distorcidos.

Deve-se salientar que não se está diante de recurso dialético apenas equivocado – mas, repita-se sempre o alerta, frente ao emprego de ardil discursivo fraudulento, contra o qual se deve reagir veementemente, por meio da permanente confrontação das versões trazidas à discussão pública com a realidade dos fatos – o juízo de verdade ou verossimilhança; bem como as submetendo ao exame de sua consistência lógica interna – o juízo de coerência.

Efetivamente, diante deste desafio que se apresenta, na luta ideológica contra a nova extrema direita, os democratas e progressistas devem esgrimir os instrumentos da razão contra a manipulação discursiva autoritária dos significados socialmente existentes. Com inteira consciência, entretanto, da impossibilidade absoluta de convencimento de seus adversários – melhor dizendo, inimigos, pois assim se comportam – movidos que são, estes, por crenças irremovíveis pela argumentação racional.

Mas visando, isto sim, à parte expressiva da audiência pública (ainda) não interpelada pelo discurso neofascista.

Pensamento do Dia

 


Gravidade excepcional

Já sabemos que a mudança climática é real e que a atividade humana é a sua principal causa. Também sabemos que a concentração de gases de efeito de estufa na atmosfera está diretamente ligada à temperatura média global e que o dióxido de carbono (CO2) resulta em grande parte do produto da queima de combustíveis fósseis. Sabe-se que o principal componente do gás natural, o metano, é responsável por mais de 25% do aquecimento atual e que é um poluente com um potencial de aquecimento global 80 vezes maior do que o CO2 durante os 20 anos que se seguem à sua libertação na atmosfera.


Conhecemos o Acordo de Paris, que estipula um aquecimento máximo de 1,5 graus de aquecimento. Se respeitarmos este limite, é possível que morram “apenas” 70% dos recifes de coral dos oceanos, ao contrário dos prováveis 99%, se chegarmos aos dois graus. Afirma o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente que “para cumprir o Acordo de Paris, precisamos reduzir as emissões em 7,6% a cada ano até 2030. Há dez anos, se os países tivessem agido de acordo com a prova científica disponível, os governos teriam precisado de reduzir as emissões em 3,3% a cada ano. Sempre que não agimos, o nível de dificuldade sobe.”

Entretanto, a Europa conseguiu articular-se politicamente para reduzir em 55% as emissões de gases com efeito de estufa até 2030. O artigo de Aline Flor no PÚBLICO, intitulado UE ainda não sabe bem como vai cumprir metas climáticas de 2030 (nem de onde virá o dinheiro) é, a todos os níveis, esclarecedor: um relatório do Tribunal de Contas Europeu conclui que não tem vindo a ser demonstrada ambição suficiente por parte dos Estados-membros para cumprir as metas estabelecidas. Por outro lado, “o orçamento da UE para 2021-2027 prevê cerca de 87 mil milhões de euros por ano para a acção climática, um montante inferior a 10% do investimento total necessário, estimado em cerca de um bilião de euros por ano, prevendo-se que o resto do investimento provenha de fundos nacionais e privados.” Restam-nos sete anos para gerar biliões de euros, ninguém sabe como.

Vivemos tempos de uma emergência radical: toda a prova científica, todos os relatórios, toda a inteligência humana nos dizem isso mesmo. É também o que os jovens ativistas nos estão a gritar: é preciso assumir o estado de emergência climática global. Exigem-no em movimentos como a Greenpeace ou a Fridays for Future. Já se fala de emergência climática, mas recusamo-nos a sair da zona de conforto, como se “emergência” não significasse isto exatamente: “Acontecimento de gravidade excecional que requer (re)ação imediata ou urgente”.

Devemos não só ser capazes de exigir políticas à altura do desafio, mas também estarmos disponíveis para a disrupção que estas podem (e vão) provocar. Partir do princípio pachorrento de que ainda não é possível viver sem gás e sem petróleo; que a transição terá de ser lenta; que não se pode pedir às pessoas de um dia para o outro o impossível é perpetuar a inércia do sistema, arriscando o desastre. Conformismo e fatalidade são manifestamente inúteis em tempos de emergência – daí também a importância de a declarar.

Entende-se o receio de que, a pretexto da ação climática, se cometam erros, mas teremos de ter a coragem de os cometer e de os corrigir. E, a continuar a existir entre nós um negacionismo obscuro, cá estaremos para prestar os devidos esclarecimentos. Trata-se de acelerar as democracias sem atropelar nenhum dos seus valores fundamentais, antes pelo contrário: reforçando-os. Isso ou estamparmo-nos bem ao comprido.

Brasil obscuro


Nosso país caiu num mundo obscuro e a gente perdeu noção da grandeza e do que esse país poderia fazer pelo seu povo. Esse país foi tomado pelo ódio e tomado pela mentira
Lula

Entrar para a política deveria ter um preço

A política oferece incontáveis benefícios para aqueles que conseguem passar pelo apertado funil eleitoral, em meio a dezenas de partidos e a centenas ou milhares de candidatos, em pleitos realizados em Estados muito grandes ou populosos, que exigem campanhas geralmente milionárias.

Uma vez eleitos, políticos contam com uma estrutura de pessoal que lhes permite contratar dezenas de assessores, além de verbas de gabinete para cobrir despesas com passagens aéreas, aluguel de veículos e combustíveis, material gráfico e impulsionamento de postagens nas redes sociais.


A legislação também garante a autoridades públicas foro privilegiado, que na prática funciona como uma proteção judicial enquanto duram seus mandatos. Entre as moedas de troca de nosso presidencialismo de coalizão, costumam também ter controle sobre quantias expressivas do orçamento público, além do poder de indicar apadrinhados para ocupar cargos na administração direta e estatais.

Ao longo do exercício de seus mandatos, parlamentares frequentemente deliberam sobre assuntos que envolvem interesses vultosos, como regras tributárias, regulações para os mais variados setores, benefícios creditícios e autorizações para empreendimentos privados e operações financeiras.

Nas últimas décadas, uma sucessão de escândalos de corrupção expôs o potencial de enriquecimento ilícito de políticos por meio do exercício distorcido desses poderes em benefício próprio.

Caixa dois de campanha, tráfico de influência, superfaturamento de obras e compras públicas, nepotismo, “rachadinhas” e o recebimento de subornos e propinas permeiam dezenas de casos, de PC Farias de Collor a Fabrício Queiroz do clã Bolsonaro, passando por privatizações suspeitas de FHC, o mensalão e o petrolão de Lula e Dilma e o “Joesley Day” de Michel Temer. Já no Congresso são incontáveis os desvios envolvendo parlamentares, como os anões do Orçamento, os sanguessugas e a máfia das ambulâncias e a farra do orçamento secreto.

Embora tenhamos feito inegáveis avanços nas últimas décadas com legislações promovendo maior transparência no processo eleitoral e no sistema orçamentário, a criação de órgãos como o Coaf e a CGU e a aprovação de uma Lei Anticorrupção (Lei nº 12.486) que está prestes a completar dez anos, os retrocessos ocorridos após a Operação Lava-Jato são evidentes.

Na reação do sistema político àquela que no auge foi chamada de maior ação contra a corrupção do mundo, decisões do Supremo Tribunal Federal e normas aprovadas pelo Congresso Nacional fizeram o Brasil regredir algumas casas na busca por um ambiente institucional menos propenso a desvios de recursos públicos.

A decisão do STF de retirar da Justiça comum a competência para julgar crimes de caixa dois e lavagem de dinheiro praticados durante campanhas gerou uma avalanche de anulações e prescrições. No âmbito legislativo, a Lei de Improbidade Administrativa foi completamente desvirtuada, tornando a impunidade praticamente a regra quando se refere ao mau uso do dinheiro público.

A recente aprovação, na Câmara dos Deputados, do PL nº 2.720/2023 representa um novo ataque proferido por aqueles interessados em eliminar amarras e controles contra a corrupção. De autoria da deputada Dani Cunha, filha do deputado cassado Eduardo Cunha, que dispensa apresentações, a proposta vai na contramão das boas práticas internacionais e das evidências científicas.

Num estudo realizado em 2009 pelos economistas Simeon Djankov, Rafael La Porta e colegas, ficou demonstrado que, numa amostra de 175 países, há uma forte correlação negativa entre normas que determinam a divulgação de informações relativas a pessoas politicamente expostas, seus ativos financeiros e participações societárias e a percepção de corrupção na sociedade.

A ideia central do projeto de Dani Cunha é tipificar como crime de discriminação os procedimentos realizados por instituições financeiras para reduzir riscos de envolvimento em práticas de lavagem de dinheiro em operações realizadas por autoridades públicas (definidas nos acordos internacionais como “pessoas politicamente expostas”) e seus parentes próximos.

Nas últimas décadas, organismos e fóruns multilaterais têm proposto o endurecimento de regras de transparência, de intercâmbio de informações e de controle de fluxos para aumentar os custos e as dificuldades para que políticos utilizem o sistema financeiro para transferir os frutos de atos ilícitos praticados durante o exercício de sua função pública, utilizando muitas vezes familiares e assessores próximos.

Denúncias recentes apuradas pela imprensa, como o caso da fortuna acumulada pelo ministro Alexandre Silveira e não informada ao Tribunal Superior Eleitoral, ou que emergem de investigações oficiais semelhantes à do braço-direito do presidente da Câmara Arthur Lira, revelam como deveríamos aprimorar, e não afrouxar as regras de controle.

A classe política brasileira precisa entender que para o exercício de função pública há um preço a se pagar: e ele deveria ser a máxima transparência sobre suas fontes de rendas e negócios.

Quando vamos nos revoltar com mortes da polícia brasileira?

No dia 17 de junho, a estudante de enfermagem Anne Caroline Nascimento Silva, de 23 anos, foi morta durante uma blitz policial em uma estrada na Baixada Fluminense (uma das regiões mais violentas do Rio de Janeiro). Os responsáveis por sua morte seriam policiais rodoviários, que teriam atacado o carro onde Caroline estava com o marido com dez tiros. Segundo o marido da estudante, os policiais fizeram sinal para que ele parasse, ele deu a seta e encostava o carro quando ouviu os disparos. Um policial envolvido no caso foi afastado e a ação está sendo investigada pela Polícia Federal.

Sim, a morte de Anne Caroline é tristemente parecida com o assassinato de Nahel, de 17 anos, imigrante de origem norte africana que foi morto pela polícia francesa no dia 26 de junho, também dentro do seu carro e durante uma blitz. O caso foi o estopim de manifestações e uma revolta violenta, que acontece em todo o país desde a semana passada.

A reação ao assassinato de Nahel lembra a onda de protestos que tomou conta dos Estados Unidos em 2020 com a morte de George Floyd, também assassinado pela polícia.

A morte de Caroline não gerou a mesma revolta. Para ser sincera, eu mesma só soube desse absurdo quando comecei a fazer pesquisa para escrever esse texto. É tão rotineiro que a polícia pratique crimes no Brasil que nem prestamos mais muita atenção quando um caso assim acontece.
Números absurdos


A polícia do Brasil mata, em média, mais de 6 mil pessoas por ano. A nível de comparação: ano passado, a polícia alemã matou dez pessoas. A da França, considerada muito violenta em relação aos países vizinhos, matou 39.

E o que estamos fazendo para mudar isso?

Nas redes sociais, vejo muitos conhecidos admirando o fato de o crime ter comovido toda a França. O presidente Emmanuel Macron, por exemplo, declarou que a morte de Nahel pela polícia era "indesculpável". A mesma admiração tomou conta das redes na época do assassinado de George Floyd. Admiramos o fato de tantos americanos terem tomado as ruas.

Entendo e compartilho dessa admiração. Mas… por que nós (falo sobretudo dos brancos e privilegiados) não estamos fazendo nada em relação aos nossos 6 mil mortos anuais?

Não estou falando, de forma alguma, que não exista revolta e movimentos que lutam contra a violência policial no Brasil. Existem vários. As "Mães de Maio", por exemplo, um grupo formado por mães de jovens assassinados pela polícia lutam por justiça há 17 anos. Quando nós, de classe média, vamos nos juntar a elas ou a outros movimentos que tentam combater essa barbárie?

As vítimas são tantas que nem sabemos os nomes delas. Lembramos apenas de algumas histórias terríveis, que geraram revolta, mas não o suficiente para causar qualquer mudança no cenário de guerra.

Só para citar alguns casos que nos chocaram e que deviam ter parado o país: em 2019, a menina Agatha Felix, de 8 anos, morreu devido a um tiro no Complexo do Alemão, perto da sua casa. Segundo sua família e testemunhas, o tiro teria sido efetuado pela polícia. Também no Rio, em 2019, o músico Evaldo dos Santos Souza foi morto depois que oficiais do exército dispararam 80 tiros contra seu carro. Na época, o então presidente Jair Bolsonaro chamou o caso de "incidente".

Em 2022, eu estava de férias no Rio de Janeiro, minha terra natal, quando Genivaldo de Jesus foi morto pela Polícia Rodoviária Federal em Sergipe por sufocamento. Sim, ele morreu em uma espécie de câmera de gás, um instrumento de tortura. Na ocasião, fui com uma amiga à manifestação que pedia justiça para ele no centro do Rio de Janeiro.

No protesto, organizados por entidades do movimento negro, de favelas e de direitos humanos, estavam muitos jovens. Mas eles eram majoritariamente negros e periféricos. Não encontrei nenhum amigo da zona sul (a área mais privilegiada do Rio) no protesto. Fazia sol. Meus amigos preferiram ir à praia. "Eu já cansei de chamar as pessoas. Não adianta, elas não vêm", disse minha amiga, que participa de movimentos sociais e vai a todas as manifestações importantes.

O perfil dos assassinados brasileiros é claro: a maioria das vítimas são jovens negros, do sexo masculino, visto como "suspeitos". Nesse caso, vale lembrar, que mesmo um culpado não pode ser executado pela polícia. Não existe pena de morte no Brasil. E, mesmo se existisse, a pessoa precisaria ser julgada. O resto é barbárie.

Não é possível que a gente continue fechando os olhos para tanto racismo e tanta violência policial. Não adianta apoiar, do Brasil, a luta contra violência policial nos Estados Unidos ou na França e fechar os olhos para nossa tragédia. Seis mil mortos por ano. É preciso gritar o quanto isso é inaceitável.

A Bolsonaro só resta uma coisa: pedir a Deus para não ser preso

Dê-se Bolsonaro por feliz se não for preso, tantos são os processos que responde no Supremo Tribunal Federal, Tribunal Superior Eleitoral e, em breve, no Tribunal de Contas da União. E dê-se por feliz porque seu atual partido, o PL, ainda está disposto a pagar os advogados que o defendem. Será assim por muito tempo?

A ver. A ver também se ficará em apenas oito anos o período de inelegibilidade de Bolsonaro. Nesta segunda-feira (3), ele disse que “não morreu ainda”, que está na UTI e que “não é justo alguém querer dividir” seu espólio eleitoral acumulado em mais de 30 anos de vida pública. A divisão é inevitável.

O Tribunal de Contas da União deverá abrir um novo processo contra Bolsonaro a partir da decisão do Tribunal Superior Eleitoral que considerou ter havido abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação na reunião com embaixadores, ocorrida em 2022, em que Bolsonaro desacreditou as urnas eletrônicas.

A Lei da Ficha Limpa determina que gestores públicos que tiverem as contas reprovadas por irregularidade que configure ato doloso de improbidade ficam os oito anos seguintes da decisão impedidos de disputar eleições. Se condenado nesse caso, Bolsonaro ganhará mais alguns aninhos de inelegibilidade. E assim por diante.


Outro dia, Bolsonaro afirmou que será salvo porque guarda uma “bala de prata”. Perguntado, ontem, sobre qual seria a bala, respondeu que não vê ninguém com conhecimento suficiente do país para substitui-lo como candidato a presidente em 2026. É o que ele pensa, mas não o que pensam os outros.

Citou os governadores Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e Romeu Zema (Novo-MG) como nomes que carecem de condições para substituí-lo. Sobre Zema, comentou:

“Eu não vou dar conselho para o Zema, mas quem queimar largada agora vai levar tiro de bazuca no lombo. Então vai com calma. Tem tempo ainda. 2026 passa por 2024”.

Como não deixa passar uma oportunidade de mentir, Bolsonaro garantiu que não foi seu pessoal “que fez o quebra-quebra” em 8 de janeiro último na Praça dos Três Poderes, em Brasília, em mais uma tentativa fracassada de golpe. Foi pessoal de quem? Seus devotos fiéis sugerem que foram “infiltrados de esquerda”.

Ou seja: embora ninguém de esquerda tenha sido preso em meio à baderna: embora ninguém de esquerda tenha sido preso quando o Exército permitiu a prisão dos baderneiros acampados à porta do seu QG; e embora à esquerda não interessasse derrubar um governo de esquerda, o golpe de 8 de janeiro foi de esquerda.

Dá para acreditar? Bolsonaro não espera que a maioria dos brasileiros acredite. Basta que seus seguidores, em número decrescente, acreditem. E que, pelo menos, continuem acreditando até que aconteça um milagre capaz de reabilitá-lo a tempo de voltar a disputar eleições – em 2026, 2030 ou 2034, quem sabe?

O fim de linha chegou para Bolsonaro, só ele finge que não vê. Político sem perspectiva real de poder, pouco ou nada vale. E, de novo: agradeça a Deus e dê-se por feliz se não acabar preso.