sábado, 21 de março de 2020

Há 100 anos, na gripe espanhola


Pare, resista e aproveite para pensar

Esta ameaça, dura, inesperada e global, dá-nos uma oportunidade que não podemos desperdiçar: já que somos obrigados a parar as nossas rotinas habituais, temos o dever de saber resistir ao medo e de aproveitar este momento ímpar para pensar naquilo que devem ser as nossas vidas, as nossas prioridades, o nosso papel, tanto ao nível individual como de sociedade.

Se há lição que podemos tirar, desde já, quando ainda estamos no início de uma longa e dura batalha contra a pandemia Covid-19, é a de que todos nós – do cidadão mais anónimo à personalidade mais poderosa – somos, em igual medida, vulneráveis à Natureza (algo de que nem sempre todos se lembram quando se trata das alterações climáticas). Como temos visto, quase em direto e sem interrupções, o vírus não distingue fronteiras nem classes sociais. Também, na sua progressão, não diferencia latitudes nem climas quentes, temperados ou frios. É tão global quanto a globalização que fomos construindo ao longo dos anos – não usa os ventos e marés para se mover, mas sim os nossos aviões, barcos e os meios de transporte com que fomos construindo a aldeia global em que habitamos.

Somos nós que propagamos o vírus. Todos podemos contagiar alguém, embora só alguns fiquem doentes e possam morrer. Mas todos – mesmo todos – temos um papel importante a desempenhar neste combate para evitar mais vítimas. A realidade é esta: por aquilo que fazemos e conforme nos comportamos, no dia a dia, nós podemos mudar vidas – para o bem e para o mal.


É essa uma das lições que podemos retirar destes tempos, e que tem sido esquecida tantas vezes no processo recente de globalização, em que se tornou fácil deslocalizar indústrias e serviços, como se o mundo fosse composto por uma maioria de pessoas irrelevantes, que podem ser usadas e depressa substituídas. Afinal, o que esta epidemia nos lembra é que cada um de nós – ricos ou pobres, anónimos ou famosos, poderosos ou indigentes – tem, individualmente, um impacto na vida de todos. É também nestes momentos que percebemos que, mais importante do que aquilo que pensamos, dizemos, vestimos ou mostramos, são os nossos comportamentos que realmente interessam e têm impacto em quem nos rodeia. E todas as ações têm consequências.

Estamos numa guerra. A guerra mundial das nossas gerações. Sabemos, pela História, que foi no “pós” das anteriores guerras mundiais que se tomaram as melhores e as piores decisões, com influência direta nas nossas vidas. Foi depois das grandes guerras que se definiram algumas das fronteiras que arrastaram o mundo para a loucura. Mas foi também depois dos horrores dessas guerras que floresceram algumas das melhores utopias de sempre e se criaram, por exemplo, documentos ambiciosos e inspiradores, de que o melhor exemplo é a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Apesar de, atualmente, o poder de muitos países estar entregue a demasiadas pessoas de vistas curtas e até, em alguns casos, muito pouco recomendáveis, não devem existir dúvidas de que a Humanidade vai conseguir ganhar esta guerra. O conhecimento existente, a cooperação científica sem fronteiras e a generosidade espontânea de milhões de pessoas dão-nos essa garantia.

Por isso, por sabermos que a guerra será ganha, mais tarde ou mais cedo, é que se revela tão importante não desperdiçar a oportunidade única que ela nos deu: parar para pensar. Agora, mesmo que não o quiséssemos, temos tempo para o que costumamos dizer não ter tempo: refletir sobre as nossas vidas, perceber o que podemos melhorar. Tanto ao nível individual como coletivo. Será dessa reflexão que encontraremos a solução para evitar – ou não – as próximas guerras.

Bolsonaro, um risco ambulante

Que Jair Bolsonaro não tem nenhum preparo para ser presidente nós já sabíamos desde antes da eleição. Mas, como o povo é soberano e o povo o escolheu para nos liderar, restava a esperança de que seu mandato transcorresse sem maiores regressões.

Ele tentaria impor sua agenda obscurantista, mas as instituições resistiriam. Alguns retrocessos seriam inevitáveis, mas ao menos as ideias mais aparvalhadas não chegariam a materializar-se no nível de leis e emendas constitucionais. Mesmo a regulamentação infralegal, que depende só da caneta presidencial, poderia ser desfeita pela Justiça nos casos mais gritantes, como de fato ocorreu.

Isso, porém, é passado. Agora, tudo mudou. Topamos com um cisne negro —a Covid-19 e seus desdobramentos econômicos— que exigiria um governante à altura dos desafios. Alguns líderes crescem na crise. Bolsonaro não é um deles.


A pergunta que se coloca é como vamos neutralizá-lo. A solução definitiva seria o impeachment. Até o mês passado, o que o protegia do afastamento era a inexistência de uma forte piora da economia. Bem, a crise chegou.

A dúvida é se, em meio ao turbilhão que se instalou, o Congresso vai ter energia para dedicar-se a um impeachment. Pelo menos por ora, creio que não. O que deve ocorrer, agora que até ministros já perceberam que não dá para confiar em Bolsonaro, é uma articulação informal para fazer um “by-pass” do presidente. Os chamados adultos da sala deixariam o homem falando para o núcleo cada vez mais reduzido de apoiadores e se entenderiam para tomar as decisões importantes.

Pode funcionar, mas não sem incertezas. O despreparo de Bolsonaro é não só intelectual como emocional, o que o transforma num risco ambulante. Nada impede que amanhã ele rompa com a China ou, num surto de ciúmes, demita o ministro da Saúde, que comanda uma das poucas áreas racionais do governo.

O voto tem consequências.

Se não quiser cair mais cedo, melhor que Bolsonaro feche a boca

No dia em que se convenceu em definitivo que o coronavírus passou como uma retroescavadeira sobre a política do ministro Paulo Guedes, o governo foi de uma precisão espantosa ao anunciar o que está por vir, e o presidente Jair Bolsonaro outra vez terrivelmente irresponsável no combate que trava com a realidade.

Está por vir, este ano, um crescimento do PIB estimado em 0,02%, capaz de provocar saudade do pibinho de 1.1% de 2019, que, por sua vez, deu saudade do PIB de 1,3% legado a Bolsonaro pelo ex-presidente Michel Temer. Por que um crescimento de 0,02% e não de 0,03% ou de 0,01%? Pergunte ao Guedes.

Melhor, não. O ex-Posto Ipiranga havia perdido parte do seu brilho desde que assumira o cargo. O coronavírus encarregou-se de apagá-lo. São coisas que acontecem. A culpa não é dele. Guedes tinha o sonho de passar à História como o autor da proeza de ter reformado o Estado como nenhum dos seus antecessores o fizera.


Bolsonaro atrapalhou parte do seu sonho. O vírus, o que restava. Nem pensar que pedirá demissão de novo. Pediu três vezes. Há controvérsia a respeito: dizem que foram quatro. Mas essa não é a hora de pedir de novo. Soaria a deserção com medo do tsunami que se avizinha. O mar recuou. Vem onda gigante.

Só não vê quem não quer ou é cego. Economia não é uma ciência, embora os economistas se comportem como se fossem cientistas. Há previsões para todos os gostos sobre o tamanho do PIB ao final do ano e uma única certeza: ele afundará. 2020 será mais um ano perdido, e tudo indica que o próximo também.

À parte sua admirável ignorância quando se trata de economia e da maioria dos assuntos, deve ser por isso que Bolsonaro insiste em continuar brigando com moinhos de vento. Parecia ter dado um passo adiante ao admitir que a situação é grave. Deu outro atrás ao desmerecer o coronavírus, rebaixando-o à condição de gripezinha.

O ex-presidente chinês Mao Tse-Tung ensinou que se deve dar dois passos a frente para, se fosse o caso, dar um atrás. Bolsonaro aprendeu a marchar, ora para a direita, ora à esquerda, ao gosto do comandante. E a considerar cumprida a ordem sem que tivera tempo de executá-la. Soldado de chumbo, cabeça de papel.

No momento em que o país mais precisa de um presidente pulso forte, inspirado e condutor seguro dos que governa, é justamente quando não tem. E por tudo que Bolsonaro já demonstrou, não terá até o final do seu mandato. Donald Trump criou um personagem, mas sabe se afastar dele quando necessário.

Bolsonaro, não. Ele se apresenta do jeito que é, que sempre foi. A reeleição de Trump subiu no telhado e, de lá, poderá cair ou descer em novembro. A reeleição de Bolsonaro daqui a dois anos começou a escalar a parede da casa. Tomara que tudo isso passe logo – coronavírus e Bolsonaro. Os dois são mortais.

Na próxima eleição presidencial, antes de digitar na urna o número do seu candidato, passe álcool gel nas mãos. E vote melhor.
Ricardo Noblat

Informação demais também é perigoso

A quarentena não deixa de ser uma espécie de retiro, um momento de autoavaliação, em que voltamos a fazer todas as tarefas mais básicas. É importante trabalhar bem o seu cérebro, mas, ao mesmo tempo, evitar poluí-lo com excesso de informação
Isabella Callia, pesquisadora em História e Cultura da Alimentação, de volta ao Brasil vinda de Bolonha, segunda região mais afetada pela pandemia de coronavírus na Itália

Os paradoxos do fim do mundo

Evitar território europeu, devido à pandemia do coronavírus, é uma das muitas ironias criadas por esta nova realidade em que nos movemos. “Lavem as mãos e confiem em Deus” — recomendaram os dirigentes da organização aos aterrorizados terroristas infiltrados no ocidente, e que agora não conseguem sair.

No momento em que escrevo esta coluna muitos países africanos anunciam o fecho das suas fronteiras a passageiros provenientes da Europa. Na Mauritânia, um grupo de italianos que fugiam da pandemia foi expulso para o país de origem. No Gana, dois outros italianos foram também extraditados. No aeroporto de Luanda, aconteceram tumultos, quarta-feira, depois que viajantes procedentes de Portugal recusaram ser conduzidos para um dos centros de quarentena criados pelo governo angolano. Entretanto, também Angola fechou as portas aos europeus.

Infelizmente, não é nada certo que África permaneça por muito mais tempo indiferente ao vírus. A África do Sul já conta com várias dezenas de pessoas infetadas. Moçambique, cuja capital, Maputo, fica a menos de duas horas da fronteira sul-africana, começa a preparar-se para a pandemia. A grande vantagem de África é a juventude da sua população. Em contrapartida, há milhões de pessoas mal nutridas, enfraquecidas, padecendo de doenças que afetam o sistema imunológico. Ainda persiste a esperança de que o calor, ou algum outro milagre, possa atrasar a propagação do vírus até surgir uma vacina. Caso contrário, o desastre será imenso.

A vingança africana pode ter sido breve, mas ainda assim serviu para que alguns europeus se colocassem pela primeira vez na pele dos milhares de refugiados que, antes desta crise, vinham tentando atravessar o continente, e depois o Mediterrâneo, para alcançar a Europa.

Outro paradoxo irónico do atual fim do mundo tem a ver com os benefícios para o ambiente que o coronavírus está a induzir. O mundo em quarentena — com aviões em terra, transatlânticos ancorados, fábricas fechadas — está emitindo menos um milhão de toneladas de CO2 por dia. Na China, nas regiões mais afetadas pela pandemia, a qualidade do ar melhorou tanto que o número de pessoas mortas por doenças respiratórias deverá este ano ser bastante inferior aos anteriores.

É um horror utópico, ou a mais utópica das distopias. Uma mistura entre o apocalipse dos mortos vivos e um sonho feliz de Greta Thunberg.

Sentado numa cadeira de praia, no meu pátio de Lisboa, contemplo perplexo o abrupto desmoronar da civilização. É assustador, sim, mas está-se bem ao sol. Não há mais aviões roncando acima das nossas cabeças. Pássaros cantam nas ramadas altas. O céu brilha, azulíssimo, como se tivesse sido envernizado esta manhã.

Se o homem desaparecesse por completo da superfície do planeta este ficaria mais bonito. Reconhecer isto é reconhecer um fracasso. Talvez, depois que tudo serenar, a humanidade perceba que é possível um outro começo, mais próximo dos sonhos de Greta, com menos aviões, menos consumo, trabalho a partir de casa, mais solidariedade e mais harmonia.
José Eduardo Agualusa

Brasil sem quarentena

Colaborando com Eduardo Bananinha

O vice Hamilton Mourão, querendo defender Eduardo Bolsonaro, foi engraçado, mas não foi verdadeiro. Como assim o Zero-Zero não representa o governo? Ele, além de ser filho do presidente da República, não é um parlamentar brasileiro, não é, segundo consta, o deputado mais votado do Brasil nas últimas eleições?

Não é, além disso, o eterno candidato a embaixador do Brasil junto ao governo Trump?

Não fez parte das viagens de Bolsonaro aos States, sempre ali sentadinho, calado e mudo, ao lado do pai e do presidente americano?
E como seu pai ele adora Donald Trump, é seu fervoroso admirador. Portanto, achou que devia imitar o “cenoura” que se refere ao coronavirus como “o vírus chinês”.


Mas como sua cultura é microscópica, esqueceu que quem pode, pode e quem não pode se sacode e saiu dizendo muitas bobagens, inclusive que a China é a culpada pela disseminação do vírus pelo mundo afora.

Acontece que os Estados Unidos dão-se muito bem com a China, são bons parceiros comerciais e econômicos, são duas super potências que unidas, controlam o mundo. Já o Brasil, tadinho, mal sabe onde fica a China.

Eduardo Bananinha, como seu querido pai, não é de muitas leituras. Mas talvez, com algum sacrifício, pudesse ler o excelente “On China”, do Dr. Henry Kissinger, e descobrir como pensa, respira e vive o gigante asiático.

São 560 páginas na edição da editora Objetiva cujo título é “Sobre a China”, na tradução de Cássio de Arantes Leite. Deixo aqui a sinopse oferecida pela editora para dar água na boca de nosso futuro embaixador Bananinha (quem sabe embaixador na China?):

Em "Sobre a China", Henry Kissinger escreve a respeito de um país que conhece intimamente e cujas relações modernas com o Ocidente ajudou a moldar. Lançando mão de relatos históricos e de suas conversas com diversos líderes chineses durante um período de quarenta anos, o autor examina como a China abordou a diplomacia, a estratégia e a negociação através de sua História, e busca refletir sobre as consequências do seu crescimento acelerado para a balança do poder no século XXI.

>Espero ter ajudado. E quem sabe assim colaborar para a cura de Eduardo Bolsonaro do terrível vírus mental amarelo?

Governo de brejo

Um presidente numa democracia que não tem 10% do Congresso só tem um caminho: a política. Mas ele achou que toda a política era pecaminosa. Ele nunca entendeu o exercício republicano da política
Antonio Delfim Netto

O vírus nosso de cada dia

A população assiste apreensiva, angustiada e perplexa, os desdobramentos da pandemia do novo Coronavírus. E nessa hora, todos têm que se somar a um enorme mutirão social para assegurar as medidas preventivas e a assistência a quem contrair a doença. Na atual epidemia, chama atenção a velocidade de propagação do vírus, expondo contingentes populacionais enormes à doença e sobrecarregando o sistema de atenção à saúde. Não é hora de dividir o país em torno de polarizações inúteis.

A saúde pública avançou muito no Brasil nas últimas três décadas. O SUS, com todas as suas mazelas e dificuldades, é um exemplo de política pública que avançou e produziu resultados. Mas, o SUS tem capacidade limitada de encarar esta sobrecarga. Como imaginar, com a dificuldade de acesso que já temos, a necessidade potencial de criarmos mais 10, 20, 30 mil leitos de UTI, para garantir a assistência aos que poderão contrair a COVID-19? Apenas 47 milhões de brasileiros têm cobertura de planos de saúde.


Silenciosamente, fechamos os olhos para a perda de milhares de vidas brasileiras a cada ano, o que poderia ser evitado com uma priorização efetiva do SUS nos orçamentos públicos, com reformas na saúde suplementar e com a qualificação do sistema, principalmente na atenção primária. Dados preliminares do IBGE para 2018 demonstram que foram 1.315.527 mortes. Quais são as causas? As principais são as doenças crônicas como as do aparelho circulatório (356.178), as neoplasias (227.150), as respiratórias (155.921). Logo a seguir vêm as causas externas, vidas perdidas em função da violência criminal ou no trânsito (150.165) e as doenças derivadas da diabete (80.292). As doenças infecciosas e parasitárias, como as ocasionadas pela atual pandemia, aparecem em sexto lugar (54.814). Não estamos falando de números, mas de vidas.

Estamos em “guerra” contra um inimigo invisível. É preciso que todos, do mais simples cidadão ao Presidente da República, levemos a sério a mudança de atitude necessária e o combate ao Coronavírus. A prevenção é o melhor caminho, ainda que paralise a economia. Depois cuidaremos disso. Se não agirmos radicalmente na prevenção, a fratura exposta dos gargalos do SUS virá à tona.

Estamos vendo o que aconteceu na China e o que está acontecendo na Itália e em toda a Europa. Como secretário de saúde de Minas Gerais fizemos um acordo de cooperação técnica com a Região da Lombardia, a mais rica da Itália. É um dos melhores sistemas de saúde do mundo. Para se ter uma ideia, apenas o orçamento do maior hospital público de Milão, capital da Lombardia, o Niguarda, era igual a tudo que tinha de recursos estaduais para todo o Estado de Minas Gerais, com seus 853 municípios e 20 milhões de vidas. E o sistema hospitalar italiano está à beira do colapso graças à pandemia.

No Brasil, investimos anualmente US$ 435 per capita na saúde pública (OMS/2014). Para dimensionarmos nossa dificuldade de resposta em caso de agravamento da epidemia, vejam quanto investem outros países: Portugal, US$ 1.363; Espanha, US$ 1.890; Itália, US$ 3.258; Reino Unido, US$ 3.266 e França, US$ 3.868.

Portanto, vamos unidos investir pesado na prevenção e na mudança de hábitos pessoais e sociais, enquanto é tempo. Se não tivermos êxito, os limites estruturais de nosso sistema de saúde se manifestarão de forma dramática.

Março ainda não acabou

Na música imortal de Tom Jobim as águas de março fecham o verão. Diluem a euforia do calor e do carnaval e preparam o espírito para a volta à rotina. É, geralmente, a época em que se abre a temporada política. Shakespeare contou que Júlio César não deu ouvidos a um vidente quando recebeu o alerta: “Cuidado com os idos de março.” O líder do Império Romano marchava triunfante nas ruas em festa, dias depois, quando reencontrou o homem e o confrontou: “Os idos de março chegaram”, disse. “Mas não terminaram”, devolveu o bruxo. Naquele mesmo dia César foi assassinado a facadas por seus mais próximos aliados.

Num distante março, há 56 anos, militares tomaram o poder. Devolveram-no aos civis também num mês de março, em 1985, que fechou um verão único, quando foi eleito o primeiro presidente civil. No dia 15, José Sarney, e não Tancredo Neves, tomou posse. Trinta anos depois, em março de 2015, os avisos aos governantes eram dados não por adivinhos, pelo barulho de panelas. A crise do governo Dilma Rousseff começava.

Neste março de 2020, a poesia do maestro parece distante. A luz do verão foi brutalmente eclipsada por um predador microscópico, o coronavírus. No dia 15, Jair Bolsonaro resolveu ir às ruas. Como César, ignorou alertas de bom senso — sanitário e político. As panelas já batem com força nas janelas das grandes cidades, onde a população, em quarentena, reclama por respeito. Março ainda não acabou.

As “promessas de vida” que Tom cantou foram adiadas. Só há a certeza de que nada será como antes.

Planeta Terra, hora zero

Um espectro ronda a Europa – o espectro do coronavírus.

Invisíveis, acelulares, vírus são micro-organismos parasitários que dependem inteiramente da interação com uma célula viva. Sem elas, deixam de se reproduzir e dormem como vírions – até encontrar outra célula hospedeira. Microscópicos, eles medem entre 20 e 300 nanômetros. Se um vírus tivesse o tamanho de uma bola de tênis, um ser humano teria 800 quilômetros de altura.

Ainda assim, sua biomassa é maior que a nossa. Somados, os vírus do planeta pesam mais de 3 vezes toda a população humana.

Nós representamos apenas 0,01% da vida terrestre – a biomassa dos seres humanos é menor também que a de fungos, bactérias e insetos. Apenas os artrópodes (insetos, crustáceos e aracnídeos) têm biomassa 17 vezes maior. O total de peixes nos oceanos pesa 11 vezes mais que os 7,7 bilhões de seres humanos do planeta, e por aí vai. Não nos enxergamos.

Talvez por isso, nosso impacto sobre a Terra seja brutalmente desproporcional. Especialmente a partir da Revolução Industrial, nossas intervenções por aqui alteraram os ecossistemas terrestres a ponto de ameaçarem nossa existência – e a de tantas outras espécies, bastante mais nobres. O aquecimento global é apenas um dos desafios colocados pelo Antropoceno, nova era geológica marcada pela nossa atuação.


"Nossa", e aí, claro, incluo o nosso sistema capitalista como o protagonista desse apocalipse.

Há uma boutade, atribuída em memes ao Žižek, que diz ser mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. E talvez o planeta tenha precisado de uma pandemia global para finalmente negar o anticientificismo, o negacionismo climático e as políticas neoliberais de extermínio do Estado, embaladas pelo neofascismo populista da segunda década do século 21.

Está claro que não apenas o acesso à saúde precisa ser igualitário entre os cidadãos de um país, mas também entre os países. E não só a pandemia deve ser combatida num esforço conjunto dos governos, mas também a recessão econômica mitigada por políticas anticíclicas globais. Talvez micro-organismos tenham ensinado a economistas e formuladores de política o que o senso comum keynesiano não conseguiu.

Se estou sendo otimista? Depois de amanhã, sim. Hoje, ainda falta um longo, muito longo e escuro, túnel a atravessar.

***

Penso em Decameron. Logo no início do livro, Bocaccio apresenta um panorama da Europa flagelada por outra peste vinda do Oriente, a de 1348. Vamos a ele.

Uma vez que "não só falar e conviver com os doentes causava a doença (…), como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade”, a população local dividiu-se: "Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter.”

Os nobres florentinos do século 14 jamais poderiam imaginar tamanha semelhança com os brasileiros privilegiados quase sete séculos depois.

Aqui, por enquanto lidamos com a falta de álcool gel, as agruras do isolamento social em home office e a indecisa navegação no catálogo da Netflix – num país onde 48% da população não têm coleta de esgoto, e quase 35 milhões de pessoas não têm água tratada em casa. Onde a população que tem a sorte de ter um trabalho precário ainda está exposta ao vírus sem garantias ou direitos. Sem falar nos milhões de brasileiros em situação de rua – apenas em São Paulo, foram 419 mil os abordados em 2019. Se há um país onde essa gripe pode transformar-se num genocídio, este é o Brasil.

A população menos sortuda, segue Bocaccio, repartia-se entre "rir e zombar do que estava acontecendo”, "abandonar sua cidade, suas casas, suas propriedades, seus parentes e suas coisas, buscando os campos da sua região ou das alheias” e, claro, adoecer e morrer, "sem nenhum socorro de médicos nem ajuda de serviçais, (…) não como homens, mas quase como animais”. A Europa perdeu cerca de um terço da sua população, só duzentos anos depois recuperou seu índice populacional pré-peste – e vou poupá-los das descrições sobre valas comuns e cadáveres abandonados pelas calçadas.

***

Sobre os governantes florentinos, Bocaccio escreve: "Em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque seus ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes, ou então se encontravam tão carentes de servidores que não conseguiam cumprir função alguma; por esse motivo, era lícito a cada um fazer aquilo que bem entendesse.”

Até agora, 22 (vinte e dois) integrantes da comitiva do presidente Jair Bolsonaro que viajou aos Estados Unidos recentemente foram infectados com o coronavírus. O presidente diz ter testado negativo, mas, a uma altura dessas, poucos acreditam nele. Frente a crise, a atuação errática desse governo néscio, comandado por um fascista psicopata, é ameaça maior à população brasileira que qualquer pandemia.

Aqui, na terra sem revolução, onde o progresso é fumaça e os direitos são alheios, o desespero costuma vir sem raiva. Mas, nessa última semana, algumas placas tectônicas deslocaram-se no Brasil: o som é familiar, acordaram as panelas.

Desde janeiro de 2019, Bolsonaro falou e governou exclusivamente para o seu terço. O terço que o levaria pro segundo turno de 2022, e aí ele daria o seu jeito – com a máquina, acordos, tribunais, o que fosse. Essa estratégia parece ter funcionado apenas até domingo passado, quando o presidente do Brasil prestigiou uma manifestação golpista e abraçou eleitores quando deveria estar em quarentena.

Uma pandemia exige discurso e postura majoritária. Agora Bolsonaro precisa – por sobrevivência política, pela primeira vez – falar e governar para todos os brasileiros. Como isso ultrapassa seu ethos, e ele segue dobrando a aposta no derretimento das instituições, é fácil apostar em qualquer tipo de aventura golpista (ou contragolpista) nos próximos meses. Ainda mais sob uma crise econômica aparentemente sem precedentes – sob um Ministro da Economia que já mostrou ser um inapto em qualquer um dos sentidos que possamos dar a palavra.

O trem suicida da civilização veio descarrilar na floresta tropical. Em nenhum outro país do mundo com essa escala há um projeto tão claramente genocida de destruição da natureza e do Estado democrático de Direito. Talvez o mundo como o conhecemos, sob a religião do capitalismo tardio, comece a acabar aqui – ou já tenha acabado e estejamos diante de seus rescaldos.

Mas depois do túnel há uma curva fechada. Não sairemos dessa como entramos, nunca tivemos tanto pelo que lutar – e, em meio ao caos, isso é uma boa notícia.
J.P. Cuenca

Café com leite

O Brasil é cheio de situações inusitadas quando se trata de Presidência da República: são presidentes (dois) que morrem antes de tomar posse, é presidente que renuncia com plano frustrado de voltar nos braços do povo, são outros dois que sofrem impedimento em menos de 25 anos, é presidente que se suicida, é presidente derrubado por golpe militar, enfim, já tivemos de quase tudo, mas nunca tivemos o que temos agora: um presidente no cargo, mas fora do exercício precípuo da Presidência.

Tantas Jair Bolsonaro fez no primeiro ano de mandato que os Poderes da República cansaram e, na hora da crise dramática de saúde pública com repercussões seriíssimas na economia e na política, o deixam de lado e vão ao trabalho. Ainda bem.

Enquanto no mundo os chefes de Estado são os porta-vozes da dimensão da gravidade, aqui o mandatário minimiza, mantém o travo de desafio político e faz cenas canhestras. As movimentações, tomadas de providências e reuniões de autoridades federais para tratar do andamento da pandemia da Covid-19, ocorrem sem a presença do presidente, que em palco paralelo contraria a realidade (planetária, diga-se) numa demonstração de completo descaso em relação ao conjunto dos governados.

Em contrapartida, Bolsonaro contribui para a deterioração de sua imagem/credibilidade/popularidade até junto aos simpatizantes e por isso tem recolhido malefícios. No seu afã diuturno de testar limites, desta vez ultrapassou uma fronteira perigosa, transitando do terreno das relevâncias fáticas para o ambiente das irrelevâncias práticas do qual se tornou cidadão honorário nesta crise. A figura dele remete à qualificação de “café com leite”, para alguém que não entende as regras do jogo e passa a ser visto pelos demais como a pessoa que joga sem valer.


Jair Bolsonaro assemelha-se hoje a um chefe café com leite. Ele fala e o país toca o baile ao ritmo das necessidades objetivas. O noticiário mais sério já começa a reduzir o espaço dele. A ponto de dia desses o Jornal Nacional simplesmente ignorar mais uma declaração do presidente sobre histerias e festinhas de aniversário, ocupado que estava em informar à população sobre o estado de calamidade pública e as precauções necessárias.

De fato, o Brasil e o mundo têm coisas mais importantes a fazer do que dar atenção a bobagens, ainda que presidenciais. Isso não quer dizer que não tenhamos um problema adicional por aqui, dado que ignorar o mandatário talvez seja o melhor remédio nesta hora aguda, mas obviamente não é uma opção de caráter duradouro.

A pandemia e seus desdobramentos não criaram a figura do Bolsonaro desprovido de senso político, social e, sobretudo, humanitário. Antes, permitiram que essa característica emergisse em público de maneira exacerbada e descontrolada que foi reprovada por todos. Nem a turma da linha de frente embarcou na canoa da negação. Descontados um ou outro ato de submissão, mesmo dentro do governo as reações foram da crítica à condenação, marcadas todas pela perplexidade.

Ficamos, e ficaram autoridades e especialistas de todos os setores, perplexos porque ao senso comum faltam parâmetros para compreender a razão de alguém, notadamente no exercício da Presidência da República, desafiar a racionalidade de atitudes que visam a preservar vidas.

O impulso é dizer que tal pessoa é portadora de personalidade sociopata. Isso pode até satisfazer de imediato a revolta, mas não explica as coisas, muito menos indica um caminho para a administração do problema. Ocorre coisa semelhante quando se diz que o presidente é fascista, e encerra-se assim a discussão de conceitos não necessariamente comprovados em face da história e da ciência.

A definição mais simples talvez seja a mais correta: trata-se de um homem reacionário, desprovido do mínimo preparo para qualquer ofício público de destaque. Nisso, Jair Bolsonaro encontra-se em igualdade de condições com milhares, provavelmente milhões de cidadãos e cidadãs que, no entanto, não estão onde ele está.

Surge, então, a pergunta: o que fazer? Antes da eclosão da urgência de saúde pública a questão do impedimento entrava na pauta ainda que como hipótese remota. Agora isso não cabe até em atenção ao sentido da emergência outra, mas a questão permanece no radar, pronta para amadurecer assim que o atual vendaval passar.

Pode ser mais rápida ou lentamente. O ritmo vai depender do próprio presidente, a quem cabe sopesar alcan¬ce e consequências de sua atuação, que, ao pesar cada vez menos, correm o risco de acabar não valendo nada.

Em tempo de corona


Moradores de rua à margem da prevenção contra a Covid-19

Acostumado a mexer em recicláveis que ele cata pelas ruas de São Paulo, José de Souza, 49 anos, não se incomoda com a cor preta da sujeira em suas mãos, só são lavadas quando há possibilidade de usar um banheiro. Ainda assim, o homem em situação de rua esfregava uma mão na outra tentando aproveitar um dos raros momentos do seu dia em que teria acesso ao álcool em gel, a fim de se prevenir do coronavírus.

Para José, o produto oferecido pela Missão Belém, da arquidiocese de São Paulo, é um luxo que ele não costuma ter. “Na rua não tem nada disso”, me disse. “Falam que a gente tem que lavar as mãos, mas vamos lavar onde? A gente não tem água. Não acredito que eu vá pegar essa doença. Tenho fé, Deus vai me proteger. Já passei por muita coisa nessa vida e tô aqui trabalhando de baixo de chuva e sol”.
“Lavamos as mãos nas poças quando chove” 
A notícia da doença que já matou cerca de 10.000 pessoas no mundo, chegou a José pela TV de um bar. Tudo o que ele sabe é o que viu lá. “Eu sei que já matou muita gente. Vi que os sintomas são tosse, febre e falta de ar”. Desde então, seus dias na rua estão se tornando cada vez mais difíceis. “Olha, é isso o que eu tenho pra comer”, disse abrindo um saco com dois salgados. “Essa doença começou e agora as pessoas têm medo de sair de casa e não entregam mais comida”, lamenta.

Para cada carroça cheia José ganha 20 reais. Em um dia bom de trabalho já conseguiu faturar até 50 reais. Mas com a chegada do vírus ao Brasil, conta que o trabalho também foi prejudicado. “Eu trabalho com reciclagem. As empresas, lojas, tudo fechando, diminuiu o lixo. Agora é mais difícil encher o carrinho”.

A paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste de São Paulo, que fica sob os cuidados de padre Júlio Lancelotti, sempre foi o refúgio para a população de rua. Em tempos de coronavírus, mais ainda. Foi lá que a Ponte encontrou mais de 100 pessoas em busca do básico para viver: comida, álcool em gel e sabonete. Enquanto o grupo tomava café da manhã, por volta das 8h30 desta quinta-feira (19/3), o padre explicava sobre o coronavírus e as formas de prevenção. Aos que tossiam ele oferecia máscara, numa tentativa de minimizar os riscos, devido à aglomeração de pessoas.

“Há aqueles que dizem ‘eu sou pobre, nem essa doença vai me querer’, e há aqueles que já olham o contexto e se preocupam mais com a falta de comida, trabalho e segurança”, diz Lancellotti. Ambos estão em risco, uma vez que a possibilidade de higienização é escassa. E o desabafo do auxiliar de serviços gerais Robson de Almeida, que está em situação de rua, denuncia isso. “Eu sei que tô falando por tudo mundo aqui. Hoje nós agradecemos que choveu e tá cheio de poça de água, e a gente vai ter acesso para lavar as mãos”.

O infectologista Juvêncio Furtado, professor de Infectologia na Faculdade de Medicina do ABC e chefe do Departamento de Infectologia do Hospital Heliópolis, explica que a população de rua faz parte dos grupos de risco por viverem em locais abertos, na rua, sem a possibilidade de higienização. “Eles estão expostos a qualquer tipo de vírus, do influenza ao corona”, diz.

O médico defende a ideia do acolhimento como possibilidade de prevenção. “Além de albergues, é preciso pensar em como conscientizar essa população sobre a importância dessa higienização e oferecer até mesmo nas ruas a possibilidade pra que isso aconteça”, afirma.

Uma possível solução para monitorar os sintomas dessas pessoas, afirma Lancelotti, que também é coordenador da Pastoral do Povo de Rua, é a criação de centros de acolhida emergenciais. Para ele, locais como o Ginásio da Mooca poderia servir como um desses centros. “Tendo um lugar para entrar no ginásio, um colchão para dormir e pessoal da saúde acompanhando, já minimiza a situação”, pondera.

Quanto à dinâmica de prevenção exigida para conter a propagação do vírus, Irandir dos Santos, que estava na igreja, desabafou: “As pessoas discutem sobre a doença, de lavar a mão, de passar álcool em gel, máscaras, mas não existe isso na rua. É só na televisão”.
Outro lado

Questionada sobre a possibilidade de executar iniciativa como a destinação de um local para acolhimento da população de rua, a Prefeitura de São Paulo afirma, em nota, que realizou a capacitação dos profissionais das Unidades Básicas de Saúde e intensificou as abordagens de pessoas em situação de rua com orientação dos profissionais das equipes Consultório na Rua e Redenção na Rua.

“Na identificação de caso suspeito é realizada pesquisa de onde a pessoa em situação de rua dorme e circula, para identificar contatos e possíveis novos suspeitos e encaminha a a pessoa para atendimento”, diz trecho da nota.

Embora o órgão tenha alegado que profissionais estão rodando as ruas de São Paulo para orientar a população de rua quanto ao coronavírus, o grupo reunido na Paróquia São Miguel Arcanjo afirmou nunca ter recebido nenhuma abordagem do órgão.

Atualmente, de acordo com a assessoria de imprensa da administração municipal, a cidade possui 89 casas de acolhimento com 17,2 mil vagas, para atender as mais de 24 mil pessoas que vivem nas ruas. A assessoria também afirmou que há 10 núcleos de convivência para pessoas em situação de rua na cidade, com 3.172 vagas, com acesso a banheiros e kits de higiene, onde eles podem tomar banho e receber orientações.

Escárnio presidencial

Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar
Jair Bolsonaro

Se faltar verba no SUS, não será possível conter pandemia

De todos os alarmes desde o início da crise do coronavírus, nenhum se propagou mais rapidamente do que o áudio de uma reunião no Instituto do Coração, em São Paulo, com especialistas do comitê de contingenciamento da doença no Estado que lidera os casos nacionais da covid-19, nome da doença provocada pelo vírus. Havia 200 pessoas no auditório e foi pelo relato a colegas, gravado em áudio por um dos médicos que convocou a reunião, que seu conteúdo se espalhou pelo país: a pandemia demandaria um número de leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) que São Paulo não dispõe e nem tem como dispor.

A informação de que o Estado mais rico da federação está desaparelhado para enfrentar a mais agressiva pandemia mundial em um século ligou o modo pânico nas redes sociais. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cuja serenidade tinha sido, até então, a principal vacina contra a doença, achou por bem avisar que o gato subiu no telhado do SUS: “Se a pandemia não tem uma letalidade individual elevada, o sistema de saúde tem”.

Entre os muitos fantasmas espraiados pelas narrativas virtuais, o pior deles tem sido o da gripe espanhola, pandemia que matou uma multidão estimada entre 17 milhões e 50 milhões de pessoas em todo o mundo há um século. A população era equivalente a um quarto da atual. A evolução da medicina e da saúde pública desautoriza projeções como aquelas que alimentam o pânico das redes sociais, mas não impede que séries como “Pandemia”, da Netflix, cujo lançamento coincidiu com a emergência do coronavírus na China, abra pelo anunciado: “Ninguém duvida que uma pandemia semelhante vai voltar a ocorrer, a questão é saber quando”.

O avanço da ciência não deixou as trevas para trás, da comunidade de pais de classe média no Estado do Oregon (EUA), que lidera protestos contra campanhas de vacinação, a um acampamento de uma equipe de médicos no Congo, atacado por pessoas que acreditam ser a vacina a portadora da doença. Fosse produzida hoje, a série teria a oportunidade de incluir um chefe de Estado nos despautérios: o presidente Jair Bolsonaro, que saiu do Palácio do Alvorada no dia 15 de março, com resultados pendentes de novo teste do coronavírus, para apertar as mãos de apoiadores e se congraçar com manifestações Brasil afora.

O temor da recessão empurrou governos, em todo o mundo, a gastar bilhões para o combate e a prevenção da covid-19. No Brasil, a discussão sobre o crédito suplementar de R$ 5 bilhões para o combate à doença começou pelo pugilato das emendas ao Orçamento e findou por derrotar os dogmas fiscais do Ministério da Economia com a decretação do estado de calamidade. A disputa entre o Executivo e o Legislativo passa ao largo da desidratação do SUS. Em artigo publicado no fim de 2019, o economista da FGV/Ieps Rudi Rocha, em parceria com duas outras pesquisadoras, Isabela Furtado e Paula Spínola, diz que o gasto de 9% do PIB brasileiro com saúde, despesa que equivale a U$ 1,4 mil per capita, é superior a de só dois dos 35 países da OCDE (México e Turquia), mas excede a despesa média da América Latina.


Na região, o país fica em quinto lugar, atrás de Uruguai, Chile, Panamá e Argentina. O gasto com saúde no Brasil, no entanto, reproduz o carimbo da desigualdade. Em proporção do PIB, o gasto privado (5%) na saúde no Brasil só perde para o americano (8,4%). O SUS, sistema público que atende três quartos da população brasileira, fica com apenas 42% do gasto total. Custa menos e entrega mais do que o Medicare e o Medicaid juntos, diz o economista, citando as duas modalidades do sistema público de saúde dos Estados Unidos.

A Emenda Constitucional que impôs o teto dos gastos tirou R$ 9 bilhões do SUS em 2019 e deve repetir a garfada em 2020. Com isso, o orçamento da saúde no Brasil fica ainda mais distante daquele previsto como o necessário por Rocha para evitar o colapso do serviço, 12,8% do PIB em 2060. Parece muito, mas não é. O economista cita a estimativa atual de 8,2% do PIB global (US$ 10 trilhões) para o gasto global em saúde, diz que as despesas mais do que dobraram nos últimos 50 anos na OCDE e que rumam para comprometer a metade da riqueza desses países em 2050.

O SUS é pressionado ainda pelo setor privado, que lança, a cada dia, planos de saúde com coberturas minimalistas para caber no orçamento de famílias com empregos precarizados e de empresas que já têm na rubrica o segundo maior gasto, só atrás da folha de pagamentos. Depois que os planos de saúde, ao longo das primeiras semanas da epidemia, rejeitaram a cobertura dos exames para a covid-19, a Agência Nacional de Saúde (ANS) foi obrigada a editar portaria reafirmando a regulamentação sobre o direito do segurado à cobertura.

O secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, foi taxativo, durante uma entrevista coletiva, sobre a transferência de pacientes com suspeitas da doença da rede privada para a pública: “É inadmissível”. Não chegou ao ponto, porém, de intervir em hospitais privados, como fez a Espanha, depois que a doença avançou em ritmo italiano no país.

Ministro da Saúde entre 2007 e 2011, quando o Brasil enfrentou a epidemia do H1N1, contra a qual foram imunizados 100 milhões de brasileiros, José Gomes Temporão reconhece que o vírus chegou num momento em que a corda no SUS está esticada. Não se trata de um ataque ao sucessor. O ministro Luiz Henrique Mandetta conquistou a confiança do “partido sanitarista”, geração envolvida na construção do SUS que ultrapassa fronteiras partidárias estejam estas no DEM de Alceni Guerra, no MDB de Saraiva Felipe ou no PT de Alexandre Padilha.

Temporão elogia tanto antecessores quanto José Serra, um dos maiores responsáveis pela vantagem comparativa do Brasil no combate à doença, que é a baixa incidência de fumantes (menos de 10%) na população, quanto o atual ocupante do cargo. Diz, no entanto, que o vírus aportou no Brasil num momento em que os recursos suprimidos afetam os repasses para Estados e municípios, a oferta de leitos, o tempo de espera para consulta e a capacidade de adquirir equipamentos de respiração mecânica.

Não há sistema de saúde no mundo que suporte, sem reforço, a pressão provocada por uma pandemia. O coronavírus, porém, atinge o SUS num momento em que o sistema acumula anos de subfinanciamento e de aumento de demanda por parte de uma população que perdeu acesso a planos de saúde. Em outro artigo publicado na “The Lancet”, desta vez com uma equipe de outros seis pesquisadores brasileiros e britânicos, Rudi Rocha atestou que a cada ponto percentual a mais no desemprego, a mortalidade cresceu 0,5% entre 2012 e 2017, causada, principalmente, por problemas cardiovasculares e câncer. Ao longo desses cinco anos, 30 mil mortes poderiam ter sido evitadas se a curva da economia não tivesse se inclinado para baixo.

O estudo mostra que, na grande crise financeira de 2008, a rede de proteção social do Hemisfério Norte impediu não só que o desemprego resultasse no aumento de mortalidade como ainda reduziu óbitos decorrentes de doenças cardiovasculares. Ainda que sem tirar conclusões definitivas no tema, o estudo sugere que o fenômeno se deva à substituição das horas de trabalho pelo lazer e à supressão de hábitos pouco saudáveis como fumo e bebida.

No Brasil, o fenômeno é inverso. Na recessão, não apenas os serviços de saúde têm seu financiamento afetado como as pessoas são empurradas para a “uberização”. A precarização das condições de trabalho não apenas sobrecarrega o SUS como tira de seus usuários a capacidade de adquirir medicamentos. No levantamento dos mais de sete milhões de mortes ocorridas no período nos 5.565 municípios brasileiros estratificados por idade, sexo e raça, os pesquisadores encontraram homens negros e pardos entre 30 e 59 anos como os mais atingidos. Entre brancos, a associação entre desemprego e mortalidade foi pouco significativa.

Introduzida no Brasil por brasileiros de classe média alta que regressaram de viagens ao exterior, a covid-19 se tornará mais explosiva à medida que atingir cortiços e grandes favelas de alta densidade demográfica em que o compartilhamento de cômodos - e até a falta d’água - incentiva a propagação da doença. Medidas como o trabalho remoto nas empresas também tendem a beneficiar mais a classe média do que os trabalhadores de baixa renda que movem a construção civil, os transportes públicos, o atendimento nos supermercados e os serviços de manutenção e limpeza dos prédios públicos e privados.

As medidas de isolamento social promovidas na China e na Coreia do Sul levaram a que esses países conseguissem frear a doença mais rapidamente do que outros países, como a Itália, cujo alto índice de mortalidade é atribuído à demora de procedimentos mais drásticos. No Brasil, como a adoção das medidas de isolamento seguirá o viés da desigualdade de renda, a propagação da doença não custará a cobrar um preço mais alto dos mais pobres, 100% dependentes do SUS.

O coronavírus aguçou o bordão da disputa - “se o angu é pouco, meu pirão primeiro”. A Espanha vai liberar o equivalente a 20% do PIB e até o recalcitrante Donald Trump pretende enviar um cheque U$ 1 mil para a casa de cada americano, mas, no Brasil, o SUS disputa o caixa com empresas em busca de capital de giro.

Se faltar dinheiro para a saúde hoje, o Brasil terá mais dificuldade de conter a pandemia. Se não for possível aumentar a rede de proteção para pessoas que perderão postos de trabalho e renda ou até mesmo socorrer empresas que tiverem sua atividade fortemente afetada, como as companhias aéreas, o desemprego reproduzirá a equação que, muito recentemente, levou ao aumento da mortalidade. Além do contágio, também a crise é exponencial.

A gripe espanhola

Pedro Nava, médico e escritor morto em 1984, foi o maior memorialista brasileiro, autor de sete livros: Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo das Trevas, O Círio Perfeito, Cera das almas, póstumo. Em Chão de Ferro, no Capítulo II denominado “Rua Major Ávila 105”, ele relata a experiência com a pandemia da gripe espanhola no Rio de Janeiro de 1918. Seguem alguns trechos:

Synochus catarrhalis era o nome de uma doença epidêmica, clinicamente individualizada desde tempos remotos e que periodicamente, cada vez com maior extensão, assola a humanidade. Essa extensão está relacionada à velocidade sempre crescente das comunicações. Seu contágio já andou a pé, a passo de cavalo, à velocidade de trem de ferro, de navio e usa, nos dias de hoje, aviões supersônicos – espalhando-se pelo mundo em dois, três, quatro dias.

Quando passou pela Itália (na epidemia de 1802 que tão duramente castigou Veneza e Milão), recebeu nome que fez fortuna: influenza. O termo pegou, passou para linguagem corriqueira e lembro de tê- lo ouvido empregado por minha avó materna, em Juiz de Fora, na minha infância – a Dedeta não pode ir às Raithe porque está de cama com uma influenza; ou – a Berta está calafetada dentro do quarto, de medo da influenza.


O nome gripe vem do meio do século passado e foi primeiro empregado por Sauvages, de Montpellier, tendo em conta o aspeto tenso, contraí-do, encrespado, amarrotado – grippé – que ele julgou ver na cara de seus doentes. Parecendo ser da entidade em questão, a literatura médica está cheia da descrição de surtos epidêmicos de que alguns assumiram aspeto pandêmico, assolando todas as grandes aglomerações humanas, como o de 1733, que marca a primeira passagem oceânica de mesma epidemia propagada da Europa à América; os de 1837, 1847, 1889 e finalmente o de 1918 que varreu o mundo, causando maior número de mortes que a Primeira Grande Guerra. (...)

Seu nome de batismo foi Influenza espanhola ou mais simplesmente Espanhola. (...)

Ela nasceu da influência, desta coisa imprecisa, desprezada pelos modernos mas entretanto existente – que são as coincidências telúricas, estacionais e atmosféricas responsáveis pela chamada constituição médica de determinadas doenças no tempo. (...) Pois sínoco de catarro, influenza, gripe ou como queiram chamá-la – a espanhola instalou-se entre nós em setembro, cresceu no fim desse mês e nos primeiros do seguinte. (...) Tornou-se calamidade de proporções desconhecidas nos nossos anais epidemiológicos nos dias terríveis da segunda quinzena de outubro e sua morbilidade e mortalidade só baixaram na ainda trágica primeira semana de novembro.

Comecei a sentir o troço numa segunda-feira de meados de outubro em que, voltando ao colégio, encontrei apenas onze alunos do nosso terceiro ano de quarenta e seis. Trinta e cinco colegas tinham caído gripados de sábado para o primeiro dia da semana subseqüente. Chegamos ao colégio às 9 horas. Ao meio-dia, dos sãos, entrados, já uns dez estavam tiritando na Enfermaria e sendo purgados pelo Cruz. À uma hora o Diretor Laet, o Quintino, o médico da casa, o Leandro e o Fortes passaram carrancudos nos corredores e foram se trancar no Salão de Honra.

Às duas, assistíamos a uma aula do Thiré, quando entrou o próprio Chefe de Disciplina. Disse umas palavras ao nosso professor que logo declarou sua aula suspensa e que, por ordem do Diretor, devíamos subir para os dormitórios, vestir nossos uniformes de saída e irmos o mais depressa possível para nossas casas. O Colégio fechava por tempo indeterminado. Sobretudo que não nos demorássemos na rua.

Voltei rapidamente para Major Ávila, 16. Quando eu saíra de manhã, tinha deixado a casa no seu aspeto habitual. Quando cheguei, tinham caído com febre alta e calafrios a Eponina, o Ernesto, a Sinhá-Cota e o Gabriel. Forma benigna, parecendo mais simples resfriado. (...)

Era apavorante a rapidez com que ela ia da invasão ao apogeu, em poucas horas, levando a vítima às sufocações, às diarréias, às dores lancinantes, ao letargo, ao coma, à uremia, à sincope e à morte em algumas horas ou poucos dias. Aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas”.