segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Pintando o sete

Escrevo com antecedência habitual num hotel da Bahia. É perigoso escrever com alguma antecedência no Brasil. Segunda-feira nunca se sabe o que será.

Bolsonaro sequestrou o 7 de Setembro, transformando uma data nacional num evento partidário. Confesso que hesitei sobre o tema da semana passada. Pensei em escrever algo sobre como escapar dos primeiros efeitos do golpe de Estado.

Infelizmente, é essa a minha experiência. Gostaria de transmitir algo sobre reaproveitamento de alimentos ou como fazer móveis em casa. Mas o que retive foi como escapar nos primeiros e confusos momentos de um golpe.

Optei por uma outra análise e escrevi que tudo acabaria na quarta-feira. Esqueci que, no carnaval, alguns blocos resilientes saem às ruas mesmo com as cinzas.

Foi assim que vi os caminhoneiros nos 20 bloqueios pelos quais passei até chegar aqui. Eles não sabiam que tudo acabou. No Sul da Bahia, vi dois deles sentados no para-choque e pensei naquele soldado japonês que passou anos sem saber que a guerra acabara.


De fato, não acabou totalmente. Mas era evidente que Bolsonaro não tinha nada de durável a propor. Quando anunciou que reuniria o Conselho da República para mostrar a foto da multidão, era evidente que estava perdido.

Infelizmente, não foi possível para a imprensa entrevistar os manifestantes. Muitos questionam o STF por causa de sua postura contra a corrupção. Não sabem que o único ministro indicado por Bolsonaro é talvez menos rigoroso que os outros.

Alguns acham que o voto eletrônico não é auditável. O universo digital é etéreo e misterioso para eles, e compensa insistir na campanha que esclarece sobre a segurança do sistema.

É possível deslocar uma grande parte desse público do bloco de apoio a Bolsonaro. Essa é uma das tarefas diante do fracasso do mito.

A outra, naturalmente, foi realizada ontem. Uma união de pelo menos algumas forças democráticas para demonstrar que nenhum golpe passará: os dias de chantagem golpista chegam ao fim.

Para um resultado melhor, é preciso deixar de lado o slogan “nem Bolsonaro nem Lula”. É algo que diz respeito a uma escolha eleitoral que ainda está distante. O problema central agora é outro.

É preciso deter o processo de destruição do meio ambiente, encarar a crise hídrica, fortalecer o combate à pandemia, indicar as linhas mestras de uma retomada econômica.

Bolsonaro não se preocupa com isso. Ele queria uma foto da multidão e achava que, mostrando essa foto, mudaria o rumo do país, o que, no seu universo, significa ter voto impresso e derrubar alguns ministros. É incapaz de escrever uma nota admitindo que pintou o sete e foi socorrido pelo Michel Temer, que deveria ter lhe aplicado algumas mesóclises como castigo.

É hora de voltar à dura realidade do Brasil. Na televisão na terça-feira, disse que o Conselho da República se reuniria na realidade paralela do bolsonarismo. Na estrada, alguns caminhoneiros comemoram o estado de sítio e dizem que estão fazendo História.

As pessoas precisam compreender que não basta vestir uma camisa amarela, saudar o mito e comer sua macarronada para alterar o curso da História. As coisas são bem mais complicadas. Também para os que sempre fizeram oposição a Bolsonaro. O fato de tanta gente aceitar bandeiras que derrubam a democracia deve nos levar a uma reflexão. Até que ponto basta apenas defendê-la de seus inimigos, sem examinar suas fraquezas e tentar fortalecê-la no cotidiano?

Não é preciso apenas que Bolsonaro passe, mas que passem também as condições político-sociais que deram margem a essa ilusão coletiva. Na euforia do processo de redemocratização, não contávamos com retrocesso.

Estamos pagando um preço alto, em vidas humanas, recursos naturais, convivência fraternal, imagem externa; enfim, algo que já não temos como pagar no futuro. Hora de reconstruir.

O camburão de Petrônio

No feriado de 12 de outubro de 1977, o Palácio do Planalto amanheceu protegido por soldados e atiradores de elite em posições estratégicas. O presidente da República decidira exonerar seu ministro do Exército, Sylvio Frota, que era abertamente contra o processo de abertura lenta e gradual na política brasileira.

Naquele dia ocorreu o confronto decisivo entre os partidários da democracia e os defensores do regime fechado conduzido pelos militares.

Geisel enviou emissários ao aeroporto de Brasília onde ocorreu o estica e puxa político-militar. Uns generais eram convidados a ir para o Quartel General do Exército, outros para o Palácio do Planalto. O presidente venceu o confronto e determinou a exoneração de seu Ministro do Exército.

O episódio pavimentou o caminho para o general João Baptista Figueiredo subir a rampa do Planalto e promulgar a anistia. Os integrantes da chamada linha dura foram relegados à desimportância. O general Augusto Heleno era ajudante de ordens do ministro Sylvio Frota. Hoje é um dos principais conselheiros do presidente da República.



Os herdeiros daquela turma de perdedores se espalharam pela babel brasileira. Uns se envolveram com o negócio das drogas. Os jogos de azar atraíram alguns, outros decaíram para o grupo de ladrões profissionais do erário público e milicianos que infestaram áreas não protegidas pelos governos locais e nacional.

O jovem militar Jair Bolsonaro foi punido por tentar colocar bomba no quartel por causa de baixos salários. Nunca escondeu ser contra a anistia.

O presidente Bolsonaro pertence àquela turma. Manteve a admiração pelo coronel Brilhante Ustra, acusado de torturar presos políticos, sua alergia a assuntos ligados ao meio ambiente e a questão de gênero. Ele não consegue entender a vida democrática.

Desconhece o esforço de negociação do saudoso Petrônio Portela, ministro da Justiça do governo Figueiredo que, com paciência e determinação, negociou passo a passo a anistia. A medida permitiu que Brizola e Arraes, dentre centenas de expatriados, retornassem ao Brasil.

Bolsonaro gosta do poder. Ele enxerga nos milhares de seguidores a legitimidade para modificar a essência do regime político nacional. Não quer realizar a eleição, porque há o risco de derrota. A solução é sublevar o estado brasileiro, derrubar os conceitos constitucionais, assumir plenos poderes, suspender as garantias individuais, fechar o Congresso e modificar a constituição do Supremo Tribunal Federal para conseguir impor sua vontade.

Isso se chama ditadura, semelhante a que está no poder na Venezuela.

Ele gosta cada vez mais de exercer o poder de comando. Nomeia com prazer e demite com humilhação, inclusive generais. Prometeu liberalismo e entregou intervencionismo estatal. Acenou com radical presença contra a corrupção, mas demitiu o ministro que liderou a operação lava-jato e colocou no poder partidos políticos especializados em trabalhar em proveito próprio.

Defendeu com afinco os interesses pecuniários de filhos e apaniguados.

A esquerda evoluiu na esteira do Partido dos Trabalhadores, cujo líder, Luís Inácio Lula da Silva jamais foi comunista. Ele se envolveu no projeto do então deputado José Dirceu que se aliou a outras legendas para buscar a hegemonia no país.

Quase chegou lá. Perdeu-se quando os dinheiros e os interesses começaram a guiar suas prioridades. Foi resgatado pela surpreendente decisão do Supremo Tribunal Federal de libertá-lo. Este detalhe complica ainda mais o cenário político atual.

Bolsonaro começou sua administração demitindo assessores próximos, civis e militares. Moldou o governo à sua feição. Bajulou as polícias militares e fez questão de interferir no comando das Forças Armadas. Exigiu lealdade absoluta e inquestionável. Promoveu até o ridículo desfile de veículos militares fumacentos, a pretexto de lhe prestar apoio público.

O resultado da evolução dos fatos neste curto espaço histórico aparece nos dois comícios no dia 7 de setembro. Foi a tentativa de reverter aquilo que ocorreu em Brasília, há 43 anos. Ele não quer admitir que a democracia seja uma realidade no Brasil.

Petrônio Portela, quando negociava com os militares a abrangência da anistia, me disse numa conversa particular. ‘Se eu falhar, o camburão vai passar na minha casa. Mas, não se iluda: depois também vai passar na sua”. Achei que este tempo tinha ficado na história. Mas é atual. O golpe de estado foi ensaiado. O Supremo, com auxílio precioso de Michel Temer, segurou o movimento. Até agora.

O povo precisa de beleza

Minha primeira reação foi de indignação moral. O fedor da corrupção empesteou o ar. Isso tem sido comum na história da política. Nem mesmo a Dinamarca escapou. “Há algo podre no reino da Dinamarca!”, Shakespeare escreveu no “Hamlet”.

Aí vieram as explicações. O fedor era uma ilusão. Flatulências da oposição. Mas os instrumentos para detecção de odores mostravam que o fedor existia, sintoma de que havia algo podre também na República do Brasil.

Veio depois o espanto psicótico. Percebeu-se que o mau cheiro era produzido não só por intestinos apodrecidos pela corrupção mas também por mentes apodrecidas pela loucura.

Mas o que sinto agora é outra coisa: horror estético. Tudo ficou grotesco. Barreto Pinto: somente os velhos se lembram do nome desse deputado. Apareceu na revista “O Cruzeiro” vestido de sobrecasaca e cueca samba-canção. Sobrecasacas são vestimentas de suprema nobreza. Usam-nas os regentes de orquestra, os pianistas, personalidades ilustres em cerimônias de grande pompa. Por outro lado, não havia nada de indecente numa cueca samba-canção. Todos os homens as usavam. E as mulheres gostavam de ver os seus homens na intimidade usando as ditas cuecas, as únicas que havia. Imagino até que as cuecas samba-canção as excitassem. Eram símbolos masculinos. Mas juntar sobrecasaca com cueca samba-canção é, definitivamente, grotesco. Não só grotesco como psicanaliticamente revelador: em cima, o corpo dignificado pela beleza atemporal da casaca, a máscara. Embaixo, o inconsciente, o corpo revelado e humilhado na verdade que as calças escondem, as pernas finas de velho saindo pela boca larga da cueca branca. Seus colegas parlamentares sentiram vergonha. Não o perdoaram. Foi cassado por quebra do decoro parlamentar.


Fiquei intrigado com o sentido da palavra “decoro”. Não posso me valer de um dicionário porque estou escrevendo de um lugar numa serra de Minas onde não há dicionários. Valer-me-ei do meu dicionário particular que mora na minha memória: “Decoro parlamentar, s.m. Refere-se ao estilo de comportamento verbal e corporal que um parlamentar deve ter para que as normas da estética não sejam quebradas”. Se não é isso, fica sendo…

Corrupção se castiga. Loucura se trata. Mas o grotesco é inesquecível. Quem viu não esquece mais. E embora poucos saibam disso, um povo precisa de beleza. É da beleza que nasce a esperança. O Hino Nacional é belo. Lembram-se da Fafá de Belém cantando nos comícios pelas “Diretas Já”? Todo mundo tremia e chorava por causa da beleza. A bandeira é bela, ondulada pelo vento. Quantas coisas bonitas a bandeira evoca no seu silêncio! Meu filho chorou ao vê-la pendida triste, enrolada no mastro, humilhada, escondendo-se de vergonha… E o Congresso, como um dos símbolos da nação, tem também de ser belo!

Mas isso ele não é. É impossível esquecer o grotesco: os deputados elegeram o Severino como seu modelo. O tempo passou. O grotesco ficou. A Câmara ficará severinomórfica por muito tempo…

Lembro-me da sessão em que Collor foi cassado. Todos os deputados se sabiam vistos pelo povo. Queriam posar de heróis. Vestiram suas palavras com casacas. E a cada nome que se chamava ouvia-se o ridículo: “Por Deus, pela pátria, pela família, sim, senhor presidente!”, “Pela honestidade, pela justiça, pelo Brasil, sim, senhor presidente!”. E assim, sem fim… Eu fiquei com vergonha. As sobrecasacas verbais não escondiam as pernas finas que saíam das cuecas samba-canção.

Estou cansado do grotesco. Quem nos devolverá a alegria da beleza?
Rubem Alves, Folha SP 24;01/2006.

Sopa de letras

Qualquer pessoa de bom senso entende que nem todos os textos se podem ler ao pé da letra. É o caso da ficção, que pode transportar o leitor a mundos fantasiosos, pôr falas na boca de personagens imaginárias e inventar paisagens inexistentes. É o caso também da poesia em que o eu poético exprime sentimentos diversos das vivências do autor, onde as palavras são lapidadas como se fossem diamantes e as sonoridades contam.

Mesmo na prosa há figuras de estilo que funcionam como recursos utilizados para melhorar e embelezar o texto, para sugerir ideias, interpretações, sensações. As parábolas bíblicas integram essa estratégia tão cara às culturas antigas, ou as hipérboles que seriam absurdas uma vez levadas à letra. De facto, saber ler um texto tendo em conta o seu estilo literário é o primeiro passo para uma boa interpretação do mesmo.


O literalismo bíblico, porém, recusa a interpretação, ou melhor, impõe sempre uma interpretação literal a menos que não interesse à agenda da ideologia religiosa em questão. Nesse caso tenta desajeitadamente uma incursão para fora do campo da literalidade mas sem qualquer lógica ou enquadramento hermenêutico.

Os textos bíblicos incluem, entre outros estilos, literatura poética, de viagens, histórica, devocional, sapiencial e revelacional, mas também textos jurídicos e um pouco de apocalíptica. Ora, todos estes estilos necessitam de interpretação diferenciada. Por exemplo, ninguém lê poesia, que remete para o simbólico e cujos termos admitem uma generosa amplitude de cargas semânticas, da mesma forma como um texto jurídico, que se pauta por uma objectividade quase obsessiva, onde cada vírgula conta e cada termo deve ser o mais explícito e claro possível.

Conta-se que no interior do Brasil dos anos quarenta um recluso aderiu à fé cristã na cadeia. Ao tomar contacto com a Bíblia deparou-se com o seguinte texto do evangelho de Mateus: “Portanto, se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno. E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno” (18:8,9). Acto contínuo arrancou um dos olhos de modo a evitar cair no inferno…

Como é óbvio a tentação da literalidade é amiga dos fundamentalismos e tem as suas razões, a maior das quais será talvez a falta de cultura bíblica, que não tem em conta os contextos escriturísticos, culturais, políticos, sociais e religiosos das diferentes eras ao longo de milhares de anos.

Por outro lado trata indistintamente o Antigo Testamento e o Novo como se fossem escritos na mesma época, sem distinguir os termos nem os tempos das alianças e ignorando a entrada do Cristo Encarnado na história humana, da qual resultou um novo paradigma. Querem aplicar a lei de Moisés à Igreja, mas normalmente apenas a parte que interessa. Caso contrário assumem justificações casuísticas para as incongruências demasiado fortes que a literalidade não consegue ultrapassar.

Se os cristãos fossem hoje cumprir a Torah à letra estaríamos a apedrejar até à morte os adúlteros e os homossexuais, não poderíamos envergar roupa com incorporação de determinados tipos de tecidos, não podíamos comer um rol imenso de alimentos e satisfaríamos muitos outros interditos, além de guardar religiosamente o sábado, quando ninguém poderia trabalhar.

Portanto, a literalidade bíblica não pode servir apenas quando dá jeito, nem pode ser alvo de aplicação casuística sem qualquer lógica ou enquadramento hermenêutico. Uma boa exegese obriga a critérios claros e objectivos que não permitam devaneios interpretativos. Stephen Tomkins escreve no The Guardian que na declaração de fé da Convenção Baptista do Sul (EUA), o primeiro ponto é a Bíblia, antes de qualquer menção a Deus. Daí o célebre aforismo idólatra de William Chillingworth: “A Bíblia, digo, apenas a Bíblia, é a religião dos protestantes!”. Nestas coisas há uns que erram por excesso e outros por defeito.

O literalismo bíblico é uma pecha característica de alguns sectores religiosos. O verdadeiro problema está em que muitos, em vez de abordarem os textos bíblicos com toda a seriedade e disponibilidade mental e espiritual, usam-nos de forma instrumental, como ferramenta com o fim de validar os seus pressupostos doutrinários e a sua agenda religiosa. E já se vê que daí não pode resultar nada de bom. Fazer uma sopa de letras, quando se trata dos textos bíblicos (ou quaisquer outros), resulta sempre numa mistela intragável.