domingo, 25 de julho de 2021

A democracia morre no fim deste enredo

O agressor da democracia não vai parar. É como o agressor da mulher que, após perdoado, volta a atacar e muitas vezes o fim é a morte da vítima. Quem me fez esse raciocínio foi uma autoridade da República. Todos os dias a democracia apanha do presidente Jair Bolsonaro. Os generais e os civis que o cercam reforçam suas atitudes ou tentam justificá-lo. Essa violência só vai parar no fim deste governo, mas deixará cicatrizes. Quando as instituições estão funcionando, ninguém precisa dizer em notas e declarações.

— O presidente fala uma coisa e na hora que aperta ele recua, igualzinho ao homem que agride mulher. O agressor recua, garante que a ama, algumas pessoas asseguram que ele vai mudar e a violência cresce. Um dia ele chegará com um revólver e vai matar a mulher. É dessa certeza que surgiu a Lei Maria da Penha — explicou a pessoa com quem eu conversei sobre as crescentes ameaças do presidente e dos generais que o seguem, da reserva ou da ativa, nessa mesma lógica de agredir e negar que agrediu, prenunciando outro ato que seja ainda mais forte.


Nesse último episódio, revelado pelo “Estadão”, o ministro da Defesa, Braga Netto, enviou um recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira, com o seguinte teor: “a quem interessar, se não tiver eleição auditável não terá eleição.” Foi dentro de uma escalada de agressões. Tudo se passou entre os dias 7 e 8 de julho. A nota do ministro da Defesa e dos comandantes militares tentando coagir a CPI do Senado foi no dia 7. No dia 8, Bolsonaro afirmou que ou vai ter o voto impresso ou não vai ter eleição, o general Braga Netto mandou o mesmo recado golpista, e o comandante da Força Aérea deu uma entrevista ao GLOBO elevando o tom da ameaça contida na nota, sendo em seguida apoiado pelo comandante da Marinha. O atentado foi combinado. Eram instituições funcionando. Com o objetivo de destruir a democracia.

O roteiro que se seguiu era previsível. Vieram os desmentidos com palavras ambíguas, as afirmações de que a democracia vai bem, e novo ataque do presidente. A nota de Braga Netto repetiu a ingerência em assuntos sobre os quais as Forças Armadas não têm que se pronunciar, ao defender o voto impresso que eles apelidaram de “auditável”. A quem disse que o ministro da Defesa estava invadindo a esfera política, Bolsonaro respondeu. “Quando vejo algumas autoridades tuitarem que isso é uma questão política, que certas pessoas não devem se meter nisso, quero dizer a vocês que isso é uma questão de segurança nacional. Eleições são uma questão de segurança nacional”, disse o presidente fechando aquele dia de debate sobre o recado do general. Isso autoriza as intervenções militares no tema que o presidente elegeu como pretexto. Todo golpe autoritário inventa seu pretexto. Esse é o de Bolsonaro. O de Donald Trump foram as acusações mentirosas de fraude. Ao fim, os trumpistas invadiram o Capitólio.

O agressor da democracia brasileira instalou cúmplices em postos estratégicos. Braga Netto é da reserva, mas a carreira militar é usada para ele sempre falar escudado nas Forças Armadas. Os atuais comandantes assumiram com o mandato de mostrar que os militares defendem o projeto político de Bolsonaro. Foram escolhidos para apoiar o agressor. O general Luiz Eduardo Ramos quando foi para o governo era da ativa e estava no comando do II Exército. Ele fez parte do canal dessa bolsonarização dos militares. O almirante Flavio Rocha, da SAE, está ainda na ativa. O projeto é deixar sempre a impressão de que as Forças Armadas vão agir para proteger Bolsonaro.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, e seus auxiliares diretos agiram várias vezes de forma contrária ao papel constitucional da PGR. O ministro André Mendonça teve atitudes e defendeu teses que feriam a Constituição. A Polícia Federal colocou seus documentos sob sigilo quando a publicidade tem que ser a regra numa República. Aras foi reconduzido, Mendonça foi indicado para a corte constitucional, um delegado da Polícia Federal é o ministro da Justiça. As agressões à democracia deixam cicatrizes. Algumas delas podem ser permanentes.

A democracia está sendo agredida. O agressor é o presidente da República. Ele tem ajudantes militares e civis. O maior risco é não ver o perigo, porque, como nos casos de violência contra a mulher, o fim pode ser a morte.

Alimento da baderna

A mentalidade anarquista do presidente age para destruir e desmoralizar as instituições e banalizar o desrespeito pessoal, funcional e institucional. Isso alimenta o fanatismo e terminará em violência
Santos Cruz,  general ex-ministro do governo Bolsonaro

Manifesto de igrejas evangélicas apoia o movimento 'Fora, Bolsonaro'

As igrejas evangélicas começam a abandonar Bolsonaro, que aposta na morte contra a vida. Mais de 40 movimentos e coletivos dessas igrejas assinaram, segundo o site Brasil 247, um manifesto denominado “Coalizão evangélica contra Bolsonaro”.


O manifesto é todo baseado em demonstrar que a política de Bolsonaro contradiz os textos evangélicos e será lançado em uma transmissão ao vivo da Frente Evangélica pelo Estado de Direito. O documento começa com um duro texto do Evangelho de João (10:10), que diz: “O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”.

Todo o manifesto evidencia que a política de Bolsonaro que valoriza a destruição da vida e esquece os fragilizados e desamparados se opõe diretamente aos valores do cristianismo original, todos eles voltados para salvar vidas e resgatar o que o mundo despreza.

“Na contramão disso”, diz o texto, “vemos o (des)governo do presidente Jair Bolsonaro como um agir maligno, que já permitiu a morte desnecessária de mais de meio milhão de irmãos e irmãs em nosso querido Brasil”.

O texto dos evangélicos afirma, sem rodeios, que “Bolsonaro não esconde suas pretensões autoritárias de implantar novamente uma ditadura, tendo loteado seu Governo com milhares de militares, de quem espera apoio aos seus planos de opressão e poder, destruindo de vez a Constituição Federal de 1988, que promete ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária, sem discriminação de raça, sexo, cor, religião ou quaisquer formas de discriminação’”.

O texto dos evangélicos destaca as “inúmeras ameaças de golpe feitas ao país, tanto pelo presidente Jair Bolsonaro como por alguns de seus aliados”, e afirma, com dureza, que Bolsonaro “veio para roubar, matar e destruir” e por isso, diz, “nos colocamos ao lado das inúmeras organizações que se movimentam em defesa do nosso povo e contra os avanços autoritários dos dominadores do poder”.

Uma das afirmações mais graves é quando assevera que Bolsonaro “governa à base de mentiras e manipulando o discurso do Evangelho” e acrescenta que “as vidas dos brasileiros, principalmente dos negros, dos pobres, dos indígenas, das mulheres, dos LGBTQIA+ e dos favelados estão sendo roubadas todos os dias”. Por tudo isso, os evangélicos, diz o manifesto, “em nome da vida e em nome de Jesus, clamamos pelo Fora Bolsonaro!”

O documento termina com uma citação da Bíblia, a de Provérbios 31.8, que diz:

“Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados. Erga a voz e julgue com justiça; defenda os direitos dos pobres e dos necessitados”.

É a primeira vez no Brasil que toda uma série de grupos evangélicos levanta sua voz contra os abusos de um Governo e de um presidente que, dizendo-se cristão, age em total desacordo com os ensinamentos dos livros sagrados. Esses evangélicos desmascaram com o manifesto a farsa de um movimento político como o bolsonarismo, que em nome de Deus pisoteia todos os valores essenciais dos ensinamentos de Jesus.

O manifesto deverá ter ressonância não só no Brasil, mas no exterior, onde é acompanhada com interesse e preocupação a involução do movimento das igrejas evangélicas com a conduta genocida e golpista de Bolsonaro. É o início de uma ruptura que deverá ter reflexos nos próximos movimentos da política negacionista e golpista em que o Brasil se precipita, ameaçado a cada dia com um golpe militar que cerceia as liberdades conquistadas com tanto esforço por uma sociedade que apostou na democracia que hoje, como escreveu Jamil Chade neste jornal, “está mais ameaçada do que nunca”.

O fato de 40 grupos de igrejas evangélicas terem aderido ao “Fora, Bolsonaro”, acusando-o de governar contra a vida e a favor da morte e da democracia, é uma novidade importante, pois até agora o evangelismo parecia apoiar maciçamente o bolsonarismo, em clara contradição com os ensinamentos cristãos de que o líder golpista se serviu para atrair votos evangélicos, com o slogan “Deus acima de todos”.

A dissidência evangélica que parece ter tomado o caminho do “Fora, Bolsonaro” poderá ter repercussão nas próximas manifestações nacionais de protesto contra o genocida. Pode ser um precedente para que outras entidades continuem aderindo a esse movimento para arrancar do poder um presidente que se mostra cada vez mais radical em seus afãs autoritários e golpistas enquanto crescem as massas de brasileiros que mergulham na pobreza e até na miséria.

Este despertar das igrejas evangélicas, que começam a ver a contradição de um presidente que se proclama cristão enquanto toda a sua política se baseia em atropelar os ensinamentos da Bíblia, pode ser um germe de oposição capaz de contagiar outros grupos que estão se conscientizando de que o Brasil com Bolsonaro está mergulhando no abismo autoritário do desprezo pela vida e a cada dia se distancia mais dos princípios de democracia e liberdade cunhados na Constituição.
Juan Arias

O cheiro do golpista

Pode não ser verdade, mas é bem provável que seja. O episódio golpista que envolveu o general Braga Netto, ministro da Defesa, tem traços genuínos e cheiro de verdade. Só o “Estadão”, que publicou a matéria em que conta a ameaça às eleições feita pelo general, pode garantir a veracidade da informação. E o jornal não só garantiu como reafirmou sua convicção na correção da matéria. Todos os demais podem afirmar que ela é bem provável, ou muito provável, ou mais do que provável. O general tem sotaque de golpista, cacoete de golpista e é amigo e subordinado do golpista-mor da República. Só por um milagre ele próprio não seria um golpista potencial.

Braga Netto é também subserviente ao presidente de maneira absoluta. Parece um cão de guarda, com a diferença que o militar age por vezes por imitação. O cachorro só se manifesta se ordenado pelo dono. A ameaça do general teria ocorrido depois de inúmeras declarações de Bolsonaro no mesmo sentido. No dia 8 deste mês, o presidente reafirmou que poderia não haver eleição se ela não fosse auditável (que na linguagem golpista significa voto impresso). Bolsonaro falou no cercadinho do Alvorada ao grupo de cegos apoiadores que aplaudem e riem de todas as suas tolices. No mesmo dia, Braga teria mandado alguém avisar o presidente da Câmara que se a eleição não for com voto impresso e auditável não haverá eleição em 2022. Alguma dúvida?

Um acinte. Um abuso. Uma violência típica de generaleco de republiqueta. Pode não ter ocorrido, mas Braga já deu outras demonstrações de seu afeto ao golpismo. Na posse do comandante do Exército, no dia seguinte à sua própria posse na Defesa, o general disse que as Forças Armadas estariam prontas para garantir a manutenção do projeto escolhido nas urnas pelos brasileiros. Seria o mesmo se dissesse que os militares não aceitariam um revés que ameaçasse o mandato de Bolsonaro, o presidente que cometeu mais de 30 crimes de responsabilidade pelos quais poderia ser legalmente afastado. Sob qualquer ângulo que se veja, aquela declaração só poderia ser feita por um general golpista, querendo entrar com o seu coturno pesado num jogo para o qual não foi convidado.


Mais adiante, há duas semanas, publicou nota intimidando o presidente da CPI da Covid. Omar Aziz, para quem não se lembra, disse que a banda podre das Forças Armadas envergonham os bons militares. A nota, assinada por Braga e pelos comandantes militares, afirmou que Exército, Marinha e Aeronáutica “não vão aceitar ataques levianos”. Parecia querer dizer que militar ladrão não incomoda militar honesto, poderia ter acrescentado “somos todos companheiros de farda”. Francamente. Braga Netto terá que se entender ele mesmo com a CPI, afinal era chefe da Casa Civil e coordenador do grupo de combate à Covid quando ocorreram todos os equívocos que vêm sendo relatados na comissão. E que resultaram em milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas.

O desmentido do general à reportagem do “Estadão” foi solene, mas não definitivo. Ele deveria ter dito o que disse o vice Hamilton Mourão: “É lógico que vai ter eleição (mesmo sem o voto impresso). Quem é que vai impedir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos uma república de banana”. Não, Braga preferiu manter-se general menor e voltou ao velho lenga-lenga de que as Forças Armadas estão “comprometidas com a estabilidade institucional do país e com a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”, embora essas não sejam atribuições conferidas a elas pela Constituição. Até porque, sabe-se lá o que ele entende por liberdade do povo. Em nome dessa liberdade, outros generais já cometeram inúmeras atrocidades registradas pela História.

As armas dos desarmados

O Brasil tem o privilégio de não ter conflito com vizinhos, ou mesmo com países distantes, nem motivações imperialistas. Nosso Exército surgiu para consolidar o território nacional, Com exceção da guerra contra a invasão paraguaia e da heróica participação na defesa da democracia nos campos de batalha da Itália, nossos tanques de guerra, mesmo quando silenciosos, parecem apontar para os centros do poder civil, o Planalto, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal. A história mostra que nossas Forças Armadas se sentem um poder moderador, pronto para intervir diante da corrupção, de desmandos ou do que eles considerem desvios ideológicos dos políticos civis.


Com exceção da Abolição e da República, e da luta contra o fascismo na Europa, nossas Forças Armadas parecem estar sempre do lado das forças civis conservadoras que defendem o status quo contra a distribuição de riquezas e aumento nos direitos dos trabalhadores. Mas saíram delas líderes comunistas como Prestes e Lamarca, além de muitos oficiais, generais, almirantes e brigadeiros, presos, cassados e expulsos em 1964.

Se estes fossem maioria no comando, o poder moderador teria imposto um caminho contrário, como ocorreu em 1889, quando o golpe militar destituiu o imperador e implantou uma república. O problema de dar às Forças Armadas o poder de intervir não é a visão ideológica que seus comandantes têm, porque eles são substituídos e mudam, o problema é que eles já demonstraram que não são opção melhor do que os civis, seus métodos são muito piores do que os democráticos e não permitem correção de erros e rumos.

Entre 1964 e 1985, o Brasil viu que a calma imposta pelos quarteis contra a desordem civil não foi a solução para a construção da nação eficiente, justa e sustentável, caminhando para o progresso. Apesar de que a nossa tem demonstrado incompetência de gestão, preferência pelos ricos e privilégios e irresponsabilidade com recursos públicos, ela é um caminho histórico mais eficiente para acertar e para corrigir erros. Por mais que errem, como nas eleições de 2018, no longo prazo da história, 100 milhões de eleitores acertam mais do que meia dúzia de ditadores, sejam generais ou caciques civis.

Os desarmados acertam mais do que os armados, por argumentarem e aceitarem derrotas. Para os desarmados, perder um argumento é visto como grandeza, apertam a mão do vencedor e continuam em frente. Para o armado, perder um argumento é desonra e ele se sente rendido, não derrotado, e não aceita. Os generais Geisel e Figueiredo tiveram a grandeza de aceitar a perda do poder para os argumentos do frágil poder civil.

Os constituintes que assumiram o poder não souberam desarmar definitivamente as Forças Armadas dentro do território. Abriram mão de arma nuclear que ameaçaria possíveis ou ilusórios inimigos externos, mas deixaram que os tanques dos aviões e de guerra possam apontar para nossas instituições democráticas. Ameaçando interrompê-las sempre que os civis demonstram incompetência e descuidos com a coisa pública.

Muitos continuam acreditando no espírito público dos comandantes, mas este espírito pode ser prisioneiro do imediato e instigado a intervir, salvar a pátria no presente, embora condenando seu futuro. Eles afirmam que a culpa seria dos políticos que não souberam usar a democracia para servir ao país, e em nome de defendê-lo ameaçam a democracia. Por isto, se sentem no direito de ameaçar usando as armas que dispõem para conseguirem o que desejam, sem necessidade de usá-las. Até porque o perigo das armas não está apenas em serem usadas para matar ou assustar a vítima, mas em desmoraliza-la com a simples ameaça de seu uso.

Por isto o poder não deve se submeter a aceitar o uso de armas militares, nem mesmo apenas como chantagem de ameaças de uso delas. Aceitar a ameaça de uso de armas é pior do que ser vítima fatal delas, porque além de perder o rumo da história perde-se a honra e a forças da legalidade estas armas dos desarmados.