quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

No que aposta Bolsonaro para completar o mandato e ganhar outro

Quem mudou? O ex-capitão ou o Exército?

E o governo federal faz de conta que mortes por falta de oxigênio no Norte do país é problema dos governos estaduais, que culpam os municipais, que devolvem a responsabilidade aos estaduais, que suplicam em vão por socorro ao federal. Segue o baile.

O deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, reuniu-se com o embaixador da China no Brasil. Pediu pressa na remessa de insumos para a fabricação da vacina chinesa Coronavac. Foi desautorizado em nota pelo governo federal.

Diz a nota que é atribuição do governo federal, e só dele, defender os interesses do país em conversas com representantes de outros governos. Tanto mais em meio a uma pandemia que matou quase 213 mil pessoas até ontem, das quais 1.381 nas últimas 24 horas.

Governo esquisito, este. O presidente Jair Bolsonaro vive dizendo que o Supremo Tribunal Federal impediu-o de combater a Covid-19, o que é uma mentira. Mas quando um membro de outro poder da República combate e tenta ajudá-lo, ele repele.

Vidas não importam a Bolsonaro, somente política, e logo ele que se apresentou aos brasileiros há dois anos como o antipolítico por excelência, embora deputado federal de sete mandatos. O Brasil nunca esteve em pior situação e, o presidente, idem.

Como é incapaz de admitir erros, Bolsonaro reuniu seus ministros e cobrou-lhes duas coisas em termos duros – o que significa uma explosão de palavrões onde “porra” é o mais leve. A primeira: que defendam o governo. A segunda, que trabalhem melhor.


A cobrança por um trabalho melhor foi dirigida, principalmente, ao general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde. Ora, Pazuello não é médico, não sabia o que era SUS e não se ofereceu para ser ministro. Bolsonaro foi quem o convocou e lhe deu a tarefa.

Como na caserna missão dada é para ser cumprida, Pazuello perfilou-se, bateu continência ao chefe das Forças Armadas e encarou o desafio. Afinal, logística militar é sua especialidade. E uma pandemia se enfrenta também com logística, certo? Pois.

Cadê o cargueiro da Força Aérea Brasileira que poderia estar voando para abastecer o Norte do país com cilindros de oxigênio suficientes para que ninguém morresse? Foi despachado para uma manobra militar junto com a Força Aérea dos Estados Unidos.

Cadê o avião da Força Aérea americana que o governo federal disse que pediria aos Estados Unidos uma vez que o avião da Força Aérea Brasileira está indisponível? Trump, o amigo de Bolsonaro, deixou a Casa Branca e não mandou.

O presidente empossado Joe Biden seria mais sensível a um pedido dessa natureza. Por que Bolsonaro não pede a ele? Só por que torceu abertamente por sua derrota? Só por que foi o último chefe de Estado a cumprimentá-lo pela vitória?

Só por que foi o único chefe de Estado a justificar a invasão do Capitólio por hordas que Biden batizou de terroristas domésticos? Biden haverá de entender que, no passado, Bolsonaro planejou jogar bombas em quartéis. Perdeu a farda.

Foi um momento de fraqueza de Bolsonaro. Faltou-lhe coragem para lançar as bombas. Contra todas as provas, negou em depoimentos, negou por escrito, negou pelo mais sagrado que tivesse planejado atos terroristas. O Exército não acreditou.

Mudou Bolsonaro ou mudou o Exército que agora confia 100% nele a ponto de um general da ativa fazer parte do governo? Os gabinetes mais importantes do Palácio do Planalto são ocupados por generais da reserva. O governo emprega 3 mil militares.

Bolsonaro aposta na farda para completar o mandato e conquistar outro. Faltam menos de 88 semanas para a eleição do ano que vem. Que passem rápido, com oxigênio hospitalar para quem precisa.

Crianças à solta

Vamos simplificar as questões de política externa do governo Jair Bolsonaro. Supunha-se que os adultos – militares com formação acadêmica e experiência direta de conflitos internacionais – fossem supervisionar as crianças. Aconteceu o contrário. As crianças é que emparedaram os adultos.

Em alguma medida, é uma repetição do que aconteceu na Casa Branca, onde gente de excelente formação profissional nas áreas de segurança, estratégia e relações internacionais foi chutada por um inepto como Donald Trump, que Bolsonaro escolheu emular. No Brasil, os órgãos de assessoramento da Presidência da República e o próprio Itamaraty acabaram sendo subordinados à profunda ignorância em matéria de relações internacionais de um filho do presidente e suas preferências pessoais.

Os resultados negativos se acumulam. Com o resultado das eleições americanas, o Brasil conseguiu a proeza de se estranhar ao mesmo tempo com as duas principais potências do planeta, pois já se dedicava em provocar a China. Como 11 em 10 analistas de relações internacionais assinalaram, o campo da política externa é, por definição, o campo da impessoalidade, e o alinhamento automático de Bolsonaro ao perdedor Trump é um erro crasso não importa o mérito, postura ideológica ou intenções de qualquer um dos dois.

O mesmo vale em relação à China e à Índia. Somadas, essas duas gigantescas potências asiáticas têm mais ou menos uns 8 mil anos de experiência em política externa e conflitos geopolíticos de enorme amplitude. O Brasil desdenhou da Índia na Organização Mundial do Comércio, e tomou o troco ao ser jogado para o final da fila dos países para os quais os indianos estão exportando vacinas e insumos.



No caso da briga dos elefantes (China contra Estados Unidos) o Brasil desperdiçou a oportunidade que a geografia lhe dá de tratar a ambos com distanciamento e equilíbrio. Ao contrário, preferiu cutucar os chineses da forma infantil característica de amadores que acham que entendem de política externa, como acontece na assessoria internacional de Bolsonaro, ou confundem a repetição de lemas de movimentos de extrema-direita (contra a China, por exemplo) como afirmação de postulados nacionalistas.

Cego aos dados da realidade, Bolsonaro ainda não demonstrou ter compreendido a natureza das várias rasteiras internacionais que tomou nas últimas semanas, e o impacto que essas fragorosas derrotas – como o chute eleitoral levado por Trump e a recusa da Índia e China na questão das vacinas em nos atender nos prazos que pretendíamos – acarreta na posição política interna de um presidente que só pensa em reeleição.

O tamanho dos reveses exigiria de Bolsonaro uma rápida e nítida correção de rumo. Sim, estaria admitindo ter cometido erros grosseiros – por escolhas, repita-se, pessoais – mas dado os trunfos que o Brasil ainda dispõe (Amazônia e produção de alimentos) conseguiria se reposicionar no cenário internacional. Um passo desses, porém, pressupõe dois fatores que não se vislumbra no momento.

O primeiro é Bolsonaro entender que na raiz das derrotas que Trump sofreu está o desprezo e a negligência em relação aos “staffs” profissionais treinados para tratar de complexas questões internacionais e suas implicações para os interesses do País. Ao se apegar ao que seu filho e amigos acham que é a política internacional, e relegar a terceiro plano a burocracia meritória do Itamaraty, por exemplo, o presidente apenas reitera uma conduta evidentemente errada.

O segundo fator que não se vislumbra está ligado à postura daqueles adultos – militares formados em academia de ótimo nível – que não foram capazes de entender que calar-se para os grotescos erros de política externa, apegados a princípios como lealdade ou hierarquia, compromete as instituições (Forças Armadas, por exemplo) às quais pertencem e, no final das contas, os torna cúmplices no estrago na defesa de interesses da Nação.

Em lugar nenhum eles aprenderam que o Brasil deveria ser um pária internacional. A posição na qual chegamos.

Brasil fúnebre

 


O fósforo de Aras no paiol de Bolsonaro

O estado de calamidade é a antessala do Estado de Defesa, assim como este antecede o Estado de Sítio, que é o prenúncio de um golpe de Estado. Quem faz esta escalada é um ministro do Supremo Tribunal Federal estarrecido com a nota em que o procurador-geral da República, Augusto Aras sugere a decretação de um Estado de Defesa.

O PGR não se limitou a perder os aliados ocasionais com os quais contava no Supremo. A autoridade cuja missão constitucional é a defesa do regime democrático acenou com uma medida que levaria o país, 35 anos depois do fim da ditadura, a um regime de exceção na véspera de os Estados Unidos se despedirem da maior ameaça autoritária de sua história. A conspiração do PGR também se deu 24 horas depois de o presidente da República declarar que são as Forças Armadas que decidem se um povo vive sob democracia ou ditadura.

Aras ofereceu tapete vermelho para um presidente cercado por livre e espontânea iniciativa. Jair Bolsonaro amplificou, com a gestão do Itamaraty e da Saúde, a tragédia da pandemia. Conseguiu brigar com as duas maiores potências do planeta de uma única vez e colocou, no ministério da Saúde, um titular cuja principal função é se manter como general da ativa e amarrar as Forças Armadas ao descalabro da administração federal. Não é com uma carta como aquela que enviou ao novo presidente americano que Bolsonaro apagará o prontuário de sua política externa.

A nota de Aras caiu em Brasília como um gesto desesperado do PGR pela última vaga que se abrirá no Supremo Tribunal Federal neste mandato de Bolsonaro, a do ministro Marco Aurélio Mello, em julho. Um outro ministro do Supremo lamenta que Aras tenha jogado fora todo o esforço de construção de medidas excepcionais para o enfrentamento da pandemia, como o Orçamento de Guerra, construído por dentro das instituições, para sugerir, de bandeja, um reforço unilateral dos poderes do presidente da República. O ministro Dias Toffoli foi o único a lhe prestar solidariedade (“Tem atuado do ponto de vista a não trazer problemas”).

Na nota, Aras se limita a prestar contas da investigação criminal sobre o governador do Amazonas e o prefeito de Manaus mas delega ao Legislativo a persecução de “eventuais ilícitos” que levem à responsabilização dos Poderes da República. No afã de se defender, o PGR se omite. Há registro de pelo menos 51 casos de asfixia por falta de oxigênio em Manaus, apesar de documentadas advertências ao Ministério da Saúde sobre a falta iminente do insumo.

Por mais que o ministro Eduardo Pazuello agora se exima da prescrição de medicamentos sem efeito para a Covid-19, há portarias que a registram e um aplicativo para celular, que o Ministério da Saúde colocou e depois tirou das plataformas, em que o cadastrado também recebe a mesma orientação para uso dos medicamentos. A conclusão de que o PGR prevarica é de um supremo togado: “Omite-se ante homicídio doloso”.



A avaliação no Ministério Público é a de que Aras, de fato, errou a mão depois que os procuradores, acuados por perseguições internas, foram acordados pela tragédia manaura. Hoje viram a noite para coletar evidências e instruir denúncias que, engavetadas pelo PGR, acabam chegando à imprensa. Da primeira vez em que foi acossado para representar contra o presidente, no primeiro semestre do ano passado, durante os atos antidemocráticos e ante as evidências de interferência na Polícia Federal, o PGR respondeu puxando o ex-ministro Sérgio Moro para a roda. Angariou simpatia tanto no Congresso quanto no Supremo Tribunal Federal. Naquele momento, Aras conseguiu transformar a pressão por uma denúncia contra o presidente numa revanche contra a Lava-jato.

Agora, sem poder lançar mão do mesmo recurso, o PGR foi para o tudo ou nada. A nota de Aras azedou a campanha do candidato governista à Presidência da Câmara. Arthur Lira já tinha até aderido ao auxílio emergencial na tentativa de pôr fim ao fla x flu na Casa. Sinalizou aos seus pares que, ao abrigar o auxílio emergencial, impediria a corrosão na popularidade do governo, mantendo viva a galinha dos ovos de ouro da rapaziada. A adesão enfureceu o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Quando parecia que Lira estava a caminho do pódio, Aras despejou a nota e reacendeu o nós contra eles, uma polarização amplificada e repaginada pela vacina. Tem até empresário bolsonarista raiz que hoje dá entrevista para cobrar a vacina sob a condição de não responder perguntas sobre seu apoio eleitoral ao presidente. Se há resistência parlamentar ao impeachment, maior ainda é o rechaço a um instrumento que restringe as liberdades individuais num momento em que as pessoas se vêem cerceadas em seu direito à saúde (vacina) e sobrevivência (auxílio).

Se a nota de Aras azedou a vantagem de Lira, no Senado ocorre o inverso. É o futuro do próprio PGR que está em jogo. Dê Rodrigo Pacheco (DEM-MG) ou Simone Tebet (MDB-MS), Aras não parece salvaguardado de um processo de impeachment. Em nenhuma instituição, porém, a pressão é tão grande quanto naquela encabeçada pelo PGR. Seis dos oito integrantes do Conselho Superior do Ministério Público manifestaram ontem um rechaço público à nota de Aras cobrando a responsabilização de agentes públicos como atuação mais condizente com o Estado de direito do que sua menção ao Estado de Defesa.

O próximo passo é a convocação do Colégio de procuradores. A última vez em que o colegiado se pronunciou foi na disputa de prerrogativas entre Ministério Público e Polícia Federal configurada na PEC 37. A defesa dos poderes do MP acabou por ser uma das principais bandeiras de mobilização das manifestações de junho de 2013.

Sob um cerco desta magnitude Aras ruma para se deparar com duas opções. A primeira é continuar a desafiar a missão que lhe foi conferida pela Constituição e perder seu mandato. A segunda é se conformar em ter chegado ao topo da carreira do Ministério Público e exercer seu papel de denunciar o ministro da Saúde e seu comandante-em-chefe.

Indiferença coletiva e inação dos governantes são crimes mortais

Se você tem menos de 60 anos, provavelmente não pensa na morte. No entanto, depois, esse pensamento fica recorrente. A pergunta é esta: como eu gostaria de morrer? E a resposta mais frequente: durante o sono, à noite. Ou de dia, vá lá, mas sem sofrimento.

A transição suave para a morte é uma das maiores preocupações da medicina paliativa, especialidade relativamente nova que abarca todas as profissões de saúde. Defendendo que a morte digna é um direito humano, a OMS lançou um documento pioneiro sobre o tema em 2018. O problema é que não é fácil definir em que condições um paciente deve ter o direito à morte humanitária.

A pandemia de Covid-19 agravou a questão. Já se morria sem querer morrer: de bala perdida, doenças infecciosas, subnutrição ou obesidade, infarto causado por estresse... Agora estamos morrendo às multidões com insuficiência respiratória aguda, sem respiradores e oxigênio em falta. O ar não dá conta de um pulmão tão atingido: é preciso intervir para tentar salvar o paciente, nem sempre com chances de sucesso. Cabe então suavizar sua transição se a morte for inevitável. Em grandes catástrofes, esse dilema médico — ajudar a viver ou ajudar a morrer — se torna cada vez mais social, extrapolando o indivíduo e alcançando a sociedade como um todo, principalmente seus governantes.




Em condições de pandemia com tantos atingidos, tudo o que a OMS comentou em 2018 se tornou mais pungente e urgente, porque muitos doentes graves poderiam retomar uma vida normal, e não conseguem por irresponsabilidade coletiva e dos governantes. Torna-se séria infração ética a recusa ao uso de máscara, a negação dos dados da ciência e a falta de planejamento em logística, porque não apenas causam mortes, mas também agravam o sofrimento dos que morrem na porta de hospitais sem leitos nem oxigênio.

Nessa situação catastrófica, dois requisitos humanitários exigidos pela OMS para com os pacientes individuais se estendem a toda a sociedade. A compaixão é um deles, o discernimento é outro. Há compaixão nos profissionais de saúde que tentam desesperadamente prover condições de sobrevivência aos pacientes graves de Covid-19. Mas será que há compaixão nas pessoas que se aglomeram nas baladas, e nos gestores que duelam por priorizar os bônus políticos das vacinas e da vacinação? Discernimento é outro requisito. O profissional de saúde deve avaliar com critérios científicos as reais chances de sobrevivência de cada paciente. Os gestores devem também planejar suas ações nessa linha, para salvar vidas e suavizar as mortes.

Mas será que há discernimento no atraso de meses em reconhecer uma pandemia que já ceifou 200 mil vidas, ou na recomendação oficial de medicamentos inadequados para um tratamento inexistente?

Vidas perdidas por inação e medidas erráticas dos gestores seria como assistir aos profissionais de saúde recusarem-se a cuidar de um paciente próximo da morte, seja para evitá-la ou para suavizá-la. Não são erros, são crimes morais. Crimes de responsabilidade.
Roberto Lent

O silêncio cúmplice dos generais

A Academia Militar das Agulhas Negras é uma escola de ensino superior do Exército Brasileiro. Copiei essa frase da Wikipédia para não errar na definição. Ensino. Superior.

Lá se formam os oficiais de carreira das Armas de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações, do Quadro de Material Bélico e do Serviço de Intendência do Exército. Não é qualquer um que tem acesso à AMAN. Jovens militares entre 17 e 22 têm que prestar concurso público para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, onde passam um ano antes de ser admitidos.

O ensino é puxado. Só no primeiro ano, por exemplo, os alunos têm que aprender idiomas estrangeiros, Economia, Estatística, Filosofia, Introdução à Pesquisa Científica, Informática, Língua Portuguesa, Técnicas Militares e Química, entre aulas de tiro e de treinamento físico. Eles têm ainda aulas de Direito e Psicologia no segundo ano e Metodologia do Ensino Superior no terceiro, e concluem os estudos com Direito Administrativo e Relações Internacionais, entre muitas e muitas matérias de cunho especializado.



Eu não conhecia os detalhes desse currículo até consultar a Wikipédia, mas, como todo mundo, conhecia a fama da AMAN, tida por formadora de pessoas disciplinadas e com bons conhecimentos técnicos.

Como os militares tiveram o bom senso de se manter em low profile depois da ditadura, muitos brasileiros passaram a acreditar no preparo dos seus generais. Eles podem não ser democráticos — ninguém que obedece hierarquia às cegas é inteiramente democrático —, mas imaginava-se que seriam bem preparados.

Bolsonaro é egresso da Academia Militar das Agulhas Negras, mas não teve sucesso como militar. Não mancha a imagem das Forças Armadas diretamente, porque elas tiveram a sorte (ou o bom senso: há divergências) de livrar-se dele a tempo.

Indiretamente, porém, os danos feitos pela sua eleição são incalculáveis. Cada vez que um general alçado à administração pública se revela incompetente, ou dá declarações fora de propósito, ajuda a destruir mais um pouco a reputação que as Forças Armadas levaram tantas décadas para recuperar.

Nenhum estrago, porém, se compara ao general Eduardo Pazuello, o “especialista em logística” que garantiu a pior resposta possível à pandemia — e que garante ao governo o vexame diário de ver os números da contaminação e da mortalidade divulgados por um consórcio de empresas jornalísticas, já que nos dados oficiais é impossível confiar.

Ele é a desmoralização concreta das FFAA, um homem que não se envergonha de faltar com a verdade, um estrategista incapaz de fazer uma simples licitação pública para comprar seringas, um ministro da Saúde que, até agora, não entendeu o que está acontecendo.

Um general que derruba, sozinho, o mito da boa preparação dos oficiais superiores do Exército Brasileiro.

Não é que não dê para se imaginar como chegou ao ministério: o fraco do presidente por pessoas inadequadas é bem conhecido. Num governo que tem Ricardo Salles no Meio Ambiente e Ernesto Araújo nas Relações Exteriores, Eduardo Pazuello faz todo o sentido na Saúde.

O que não dá para imaginar é como chegou ao generalato.

É duro constatar que, enquanto brasileiros morrem asfixiados pela sua incompetência, seus colegas de farda observam calados.
Tomem tenência, senhores: quem cala é cúmplice.

Nosferatu

Num voo noturno
Pousou nesse solo
Um ser abjeto,
Dentes pontiagudos,
De secretos dolos
E pesados coturnos.

Trouxe à tiracolo
Um pesado livro
De pesadelos soturnos,
Que abriu, espalhando
A desgraça: fruto
Do seu próprio crivo.

A ave indigente
De ares sisudos
E olhos de fel,
Não sabe ser gente,
É réu da desgraça,
Senhor da discórdia.

Por onde ele passa,
Espalha, sem dó,
A franca mixórdia;
- Paródia do demo,
Triste criatura,
Que habita o supremo!

Ana Bailune

A toda a velocidade, alegremente, contra um icebergue

Lembram-se do cenário de guerra que todos temíamos? A rutura do SNS que desde março se queria evitar? Os efeitos dramáticos de não achatarmos a curva, que tentámos a todo o custo fintar, com enormes danos sociais e económicos? Pois. Está tudo estragado. Esse cenário bateu-nos à porta. E nós vamos, alegremente, a toda a velocidade em direção a um icebergue.

Lideramos os rankings mundiais em novos casos por milhão de habitantes. A situação que se antevê para os próximos dias nos hospitais é de absoluta catástrofe. Basta fazer as contas. Em Portugal, em média, por cada dia com 10 mil novos casos, chegarão à unidades de cuidados intensivos 150 pessoas cerca de 10 dias mais tarde. Segundo os especialistas, ao fim de sete dias nestes valores, é expectável que cheguem cerca de mil pessoas às UCI portuguesas. Já tivemos 9 dias à volta dos 10 mil novos casos. Hoje, num domingo, um dia em que tradicionalmente os números caem, não saímos desta marca. A própria capacidade de testagem do País está no limite. O cenário é ainda pior do que aquele que estamos a ver. Há muitas centenas de novos casos por dia não contabilizados que ficam fora do sistema, dizem os especialistas.

Não seria um problema dramático se tivéssemos espaço suficiente para doentes graves nos cuidados intensivos do País. Acontece que não temos. Nem lugares, nem equipamentos, nem médicos. Aumentámos muito as vagas disponíveis, é um facto, mas que no limite, segundo a ministra da Saúde podem chegar às 1000. Em nove dias, supondo que as médias se mantêm, 1300 doentes terão necessidade de entrar nas UCI. Que mesmo que estivessem completamente vazias à sua espera (cenário obviamente inverosímil), já não existiria capacidade suficiente. Os privados pouco ou nada podem ajudar – a sua capacidade nos Cuidados Intensivos não chega aos 200 lugares.



Já estamos, como é evidente, a ver a ponta deste icebergue em que vamos embater. E ainda estes contágios dos últimos dias não estão a chegar às UCI. Já só estão a ser enviados para lá os doentes que têm mesmo hipóteses de sobreviver, e não todos, como acontecia antes e é devido. Uma pequena hipótese é uma hipótese, e merece ser atendida. Agora não é. Deixa-se morrer.

Os hospitais estão no limite, as urgências mergulhadas no caos e as enfermarias a rebentar pelas costuras. Já se morre à porta dos hospitais dentro das ambulâncias em fila. A taxa de mortalidade nas UCI saltou de 18% para 40%. Os médicos estão esgotados, física e psicologicamente. Ninguém está preparado para ver morrer tanta gente em tão pouco tempo.

Enquanto isso, o que se passa por este Portugal?

Está tudo alegremente a tentar fingir que não vê a montanha branca que surge claramente ao fundo.

Temos um Estado de Emergência light. Um confinamento que é só “assim assim”, com tantas exceções como os buracos que um queijo suíço. Não é suposto andar na rua, mas pode-se fazer uma série de coisas na rua. Passear o cão, ir às compras, fazer aquele passeio higiénico que dá para tudo. As escolas continuam abertas – sem quaisquer estudos que confirmem as declarações benevolentes de que os contágios não acontecem nestes espaços fechados onde se acumulam miúdos. Os talhos, as mercearias, os bancos, as lojas de ferragens e de telecomunicações, os oculistas, os mercados, os hortos, as papelarias e quiosques, os jardins, os paredões, as praias – está tudo aberto e à pinha. Os cafés e restaurantes servem ao postigo e em take away, e à porta acumulam-se clientes em amena cavaqueira.

As campanhas eleitorais de todos os candidatos (exceção feita a Tino de Rans), essas, prosseguem como se nada fosse, com candidatos a passearem-se por aí, a juntarem pequenas comitivas e a acumularem pessoas em espaços fechados ou nas deslocações. Há mesmo jantares-comício onde se juntam 170 pessoas à mesa. O que se passa é uma absoluta irresponsabilidade e um péssimo exemplo para os cidadãos.

Nas televisões generalistas há uma realidade paralela diariamente a entrar pela casa das pessoas e a fazer crer que nada acontece. Nos programas da manhã e da tarde, está tudo nos estúdios a conviver sem proteção. Exatamente aquilo que não é suposto a população fazer em suas casas.

E o governo, o que faz? Gerir uma pandemia nestes moldes é uma tarefa altamente complexa, ninguém duvida. Mas nos últimos meses, não faz o suficiente. Lembra-me a orquestra do Titanic a tocar e a animar a audiência. Muniu-se de wishful thinking, distanciou-se da realidade e tem falhado a sua missão. Tem confiado demais no bom senso da população, que infelizmente não existe, depois de tantos meses de saturação. E não acautelou bem esta vaga nos hospitais, quando ficou claro logo no dia 30 que ela iria acontecer. Finge que está tudo bem, mesmo quando está uma catástrofe anunciada. A cada dia que passa, perde autoridade.

Não gosto de fazer de arauto da desgraça, mas mais uma vez, não, não está tudo bem. Já não vamos a tempo de desviar o Titanic da rota do icebergue. O governo não se pode demitir e tem de chefiar esta manobra de emergência com determinação: tem de fechar as escolas e tem de reduzir as exceções imediatamente. É evidente que agiu tarde e falhou. E é bom percebermos que temos todos de arregaçar as mangas, vestir os coletes e preparar o botes salva-vidas. O perigo é real, e é para todos – doentes Covid e não Covid. É tempo de levar isto a sério, com toda a responsabilidade. Não é admissível que se continue a assobiar para o lado.

Pensamento do Dia

 




Faca manchada de sangue

O colapso do sistema de saúde pública em Manaus, por falta de oxigênio, indignou a sociedade, além de traumatizar os profissionais de saúde do país inteiro, porque o episódio provocou a morte por asfixia de pacientes que estavam estabilizados e chegou a obrigar a transferência de crianças recém-nascidas para outros estados, ou seja, que não tinham nada a ver com a pandemia de covid-19. Dois dias antes do colapso, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, fora avisado da falta de oxigênio. Esteve em Manaus, com o propósito de convencer as autoridades locais a prescreverem em massa o “tratamento precoce” da covid-19, que vem sendo a opção preferencial dos militares à frente da pasta para combater a pandemia.


Trata-se de um coquetel utilizado em larga escala por médicos clínicos, como tratamento alternativo: hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D, além da ivermectina, já usada preventivamente, a cada 15 dias, de forma generalizada, por parte da população de baixa renda, como santo remédio contra o novo coronavírus. Rejeitada pelos infectologistas, por falta de comprovação científica, na surdina, essa fórmula virou o eixo da política sanitária do Ministério da Saúde. Na cabeça do presidente Jair Bolsonaro, o coquetel é mais eficiente e mais barato do que as vacinas, além de dispensar as políticas de distanciamento social, ao supostamente transformar a covid-19 numa “gripezinha”.

Apesar de criticado por infectologistas e sanitaristas, o “tratamento precoce” é uma prerrogativa da clínica médica, ao qual muitos recorreram e acham que, por isso, foram salvos da morte. Entretanto, a essência da política de saúde pública é preventiva. Por essa razão, o descaso em relação à necessidade de distanciamento social, para desacelerar a propagação da pandemia, e o atraso na vacinação em massa, para imunizar a população, mais cedo ou mais tarde, além da falta de insumos, como oxigênio, seringas e agulhas, resultarão em investigações e processos criminais na Justiça.

O general Pazuello está no cargo por ter fama de especialista em logística e para levar adiante o “tratamento precoce”. Mas esse é clamoroso erro de conceito, tanto assim que os dois ministros que o antecederam se recusaram a cumprir essa orientação do presidente Bolsonaro. Erros de conceitos, geralmente, provocam fracassos estratégicos, e transformam eventuais qualidades de seus executantes em grandes defeitos. O sujeito vira o “burro operante”. É o caso, por exemplo, do secretário-executivo do Ministério da Saúde, o coronel do Exército reformado Antônio Elcio Franco Filho, cuja experiência como secretário de Saúde de Roraima o guindou ao cargo operacional mais importante de todo o Sistema Único de Saúde (SUS). Nas entrevistas, exibe na lapela uma faca ensangüentada, broche de ex-integrante de equipe de operações especiais, cujo lema é “O ideal como motivação/ A abnegação como rotina/ O perigo como irmão e/ A morte como companheira”. Sem dúvida, o Brasil precisa de soldados treinados para “causar o máximo de confusão, morte e destruição na retaguarda do inimigo”, mas o lugar deles não é o Ministério da Saúde.

Na quarta-feira, em entrevista coletiva, o “faca manchada de sangue” se jactava da operação que estava sendo montada para buscar 2 milhões de doses da vacina de Oxford produzidas na Índia. O governo federal pretendia realizar uma grande jogada de marketing, iniciando a campanha nacional de imunização com a vacina que também será produzida pela Fiocruz, antes de autorizar o uso da vacina do Instituto Butantan, cuja eficácia o presidente Bolsonaro não perde uma oportunidade de colocar em dúvida. O avião da Azul adesivado para transportar as vacinas não pode decolar, porque as autoridades da Índia não haviam liberado as vacinas.

O Brasil, porém, é um grande país, mas não é para principiantes. Começamos a produzir 8 milhões de doses/mês da vacina russa Sputnik V, em Santa Maria, no Distrito Federal, e em Valparaíso de Goiás, no Entorno de Brasília. Os russos contrataram a União Química, que possui mais 7 fábricas no Brasil, para produzir a vacina desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Pesquisa em Epidemiologia e Microbiologia e financiada pelo Fundo de Investimentos Diretos da Rússia. Todas as doses da vacina russa produzidas no Brasil serão exportadas para países da América Latina que já registraram o imunizante, como Argentina e Bolívia, enquanto aguarda autorização da Anvisa para realização de testes clínicos no Brasil. Ou seja, em breve teremos 3 vacinas produzidas aqui: a CoronaVac, do Instituto Butantan; a Oxford, da Fiocruz; e a Sputnik V, da União Química (privada), um “business” russo. Apesar de tanta incompetência, a esperança não morreu.

Vice complacente

[Bolsonaro] não foi o responsável pelas pessoas saírem para a rua. Aí tem uma responsabilidade compartilhada entre todas as esferas de governo. Nenhum dos nossos governadores e prefeitos conseguiu implementar um lockdown para valer.
Hamilton Mourão, general vice-presidente

Crimes de responsabilidade

Já não é nenhuma novidade, tampouco causa nenhum escândalo. A cada dia, mais pessoas admitem abertamente que a conduta do presidente Jair Bolsonaro – tanto as ações como as omissões – durante a pandemia de covid-19 pode configurar crime de responsabilidade.

Ressalta-se que essa afirmação sobre o comportamento de Jair Bolsonaro não tem surgido apenas de setores da oposição, como se fosse mais uma tentativa de causar desgaste ao adversário político. Quem tem dito que o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade durante a pandemia são pessoas das mais variadas tendências, de diferentes trajetórias profissionais, muitas delas sem nenhuma vinculação partidária.

Ante a ampla diversidade de vozes, essas afirmações sobre a conduta do presidente Jair Bolsonaro não podem ser atribuídas, portanto, somente a eventual interesse político. Na realidade, muitas dessas declarações têm antes o tom de um reconhecimento a contragosto.

Além disso, mais do que o resultado de um raciocínio sofisticado, a exigir difíceis passos lógicos, a correlação entre o comportamento de Jair Bolsonaro durante a pandemia e crime de responsabilidade ganha, a cada dia, uma dimensão de evidência. Não é tarefa fácil argumentar que o presidente da República não cometeu, desde março do ano passado, algum crime previsto na Lei 1.079/1950.


Ao tratar dos atos do chefe do Poder Executivo federal, a lei diz que “são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (i) a existência da União; (ii) o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; (iii) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; (iv) a segurança interna do País; (v) a probidade na administração; (vi) a lei orçamentária; (vii) a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; (viii) o cumprimento das decisões judiciais”.

Em especial, há um artigo na Lei 1.079/1950 que exige do presidente da República respeito à vida. “São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: (…) violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição” (art. 7.º, 9).

O art. 141 da Constituição de 1946, a que faz referência a Lei 1.079/1950, dispõe sobre a “inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade”.

Trata-se de uma situação peculiar. A rigor, crime de responsabilidade é algo gravíssimo, que pode levar o presidente da República ao afastamento do cargo e à perda do mandato. No entanto, nos tempos atuais, parece que a imputação de crime de responsabilidade perdeu seu caráter controvertido.

O quadro chegou a tal ponto que até o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou, no dia 15 de janeiro, que o afastamento do presidente Jair Bolsonaro do cargo, “de forma inevitável, será debatido (pelo Congresso) no futuro”. Até então, Rodrigo Maia vinha, de forma recorrente, refutando qualquer possibilidade de abertura de processo de impeachment contra o presidente da República.

Não é uma situação confortável para Jair Bolsonaro, até porque a lei brasileira optou por um controle amplo dos crimes de responsabilidade. Segundo a Lei 1.079/1950, qualquer cidadão pode denunciar o presidente da República ou ministro de Estado por crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados. Até o ano passado, havia mais de 50 pedidos de impeachment contra o presidente da República na mesa do presidente da Câmara, a quem compete avaliar o preenchimento dos requisitos legais desses atos.

Por suas muitas e graves consequências sobre o País, o recebimento de uma denúncia contra o presidente da República exige especial prudência e cautela. Mas isso não pode significar omissão. As leis do País continuam vigentes. Assim, as denúncias contra Jair Bolsonaro devem ser devidamente avaliadas.

Plataforma do Ministério da Saúde indica cloroquina até para o meu gato Moreré

Quando esteve em Manaus há poucos dias atrás, Eduardo Pazuello lançou uma plataforma, chamada TrateCov, com os protocolos do Ministério da Saúde para que médicos iniciassem um tratamento precoce em pacientes com suspeitas de covid-19. Acessei a plataforma nesta quarta-feira para ver como funcionava e preenchi a ficha médica com o nome de meu gato, Moreré, de 1 ano. Coloquei alguns dados que poderiam ser de uma criança da mesma idade —8 quilos, 70 centímetros— e sintomas de febre e fadiga por apenas um dia. A página criada pelo Governo Jair Bolsonaro entendeu então que ele poderia estar com covid-19 indicou possíveis tratamentos precoces com remédios sem eficácia comprovada contra a doença.

De acordo com o Ministério da Saúde, o meu gato de 1 ano poderia receber, ao longo de cinco dias, 6 comprimidos de Difostato de Cloroquina 500 mg; 12 comprimidos de Hidroxicloroquina 200 mg; 1 comprimido diário de Ivermectina 6mg; 5 comprimidos de Azitromicina 500 mg; 10 comprimidos de Doxiciclina 100 mg; ou ainda 14 comprimidos de sulfato de zinco por 7 dias.

Um detalhe importante: na parte em que devo indicar se o paciente possui alguma comorbidade, marquei que ele possui insuficiência cardíaca. De acordo com análises médicas, a cloroquina e hidroxicloroquina, usados contra a malária, pode afetar os batimentos do coração. Mesmo sabendo desse risco, o algoritmo da plataforma do Governo Federal indica os medicamentos.

O TrateCov não chega a pedir o CPF do paciente, mas indica um espaço para que o profissional da saúde preencha seus dados e coloque seu CRM. A plataforma é “um ambiente de simulação” que provisoriamente está “disponível, exclusivamente, para médicos e enfermeiros que atuam na Secretaria de Saúde do Município de Manaus, na Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas e Hospitais privados do Município de Manaus”, conforme está descrito.

 


Diante da repercussão negativa, o site foi atualizado nesta quarta-feira com a seguinte descrição: “O Ministério da Saúde esclarece que o TrateCov orienta opções terapêuticas disponíveis na literatura científica atualizada e oferece total autonomia para que o profissional médico decida o melhor tratamento para o paciente, de acordo com cada caso”, afirma. “A pasta também esclarece que a lista de medicamentos sugeridos na plataforma pode sofrer alterações de acordo com os estudos científicos em andamento”, explica. Também afirma que a plataforma é “uma ferramenta criada para auxiliar médicos na coleta de sintomas e sinais na presença dos pacientes, desenvolvida para uso exclusivo e facultativo de médicos cadastrados”. E conclui dizendo que “o diagnóstico e o tratamento sugerido pela plataforma sem a avaliação clínica pelo médico habilitado não possuem validade e não substituem o diagnóstico clínico realizado pelo profissional”.

Pazuello lançou a plataforma no dia 14 de janeiro, em meio a uma crise sem precedentes na capital amazonense, com pacientes internados com covid-19 morrendo asfixiados por causa da falta de oxigênio. Dias antes, o ministro havia estado na capital do Amazonas e afirmou que o “tratamento precoce” era um pilar de sua gestão. E deu a entender que o colapso no sistema sanitário da cidade poderia ter sido evitado se esse protocolo tivesse sido seguido.

Porém, depois que Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmou no último domingo que não existem tratamentos contra a covid-19 que não seja a prevenção pela vacina, Pazuello vem repetindo reiteradas vezes que sua pasta nunca indicou nenhuma forma de tratamento precoce. Ele vem falando agora em “atendimento precoce”. O TrateCov mostra que o ministro mente. Segundo os números oficiais, a pandemia já matou mais de 212.000 pessoas no Brasil. Recentemente, o país voltou a registrar mais de mil mortes diárias provocadas pela doença. Nesta quarta-feira, foram 1340.

Mais uma chance perdida do Brasil

Eu tive covid-19. De forma moderada, com febre, dores de cabeça e um pouco de fadiga. Após dez dias, me senti bem novamente. Apenas a perda do olfato permaneceu, e provavelmente ficará comigo por algum tempo. Admito que fico um pouco assustado quando leio relatos sobre possíveis sequelas a longo prazo, como dores nas articulações e problemas respiratórios - mesmo que eu não tenha sentido nada disso.

Onde fui infectado, eu não sei. Pode ter sido no supermercado, no jantar de Natal com amigos, no aeroporto, em um táxi ou na fila do caixa eletrônico. A única coisa que está claro é que o vírus está circulando.

Quando descobri que tinha covid-19, fiquei nervoso, porque você não sabe como a doença vai se desenvolver. O que antes era abstrato de repente se tornou concreto. Milhões de brasileiros já passaram por isso e se sentiram assim.

Por isso estou aliviado que a campanha de vacinação tenha finalmente começado, mesmo que tenha sido apenas semanas após o início da vacinação na Europa, nos EUA e na vizinha Argentina. O início da vacinação, porém, não é graças ao governo Jair Bolsonaro, mas a alguns poucos governadores responsáveis.

Se o estado de São Paulo não tivesse procurado a vacina chinesa Coronavac, o Brasil provavelmente ficaria hoje com apenas dois milhões de doses da vacina de Oxford e um avião de carga vazio, que seria enviado para buscar doses de vacina da Índia - sem que ao menos se tivesse combinado com os indianos.

Muitas vezes esquecida no momento é a vacinação Sputnik V da Rússia. Ela em breve poderá ser aprovada pela Anvisa. A Sputnik V também não foi adquirida pelo governo Bolsonaro, mas pelos estados do Paraná e da Bahia.

A indiferença do presidente à covid-19 é óbvia. Ele não leva a sério a pandemia e os mais de 210 mil brasileiros mortos. Pior, ele reage como se a pandemia existisse apenas para incomodá-lo pessoalmente e para obstruir seu governo.

Durante muito tempo Bolsonaro negou o vírus e o perigo que ele representa. Agora ele está sabotando a campanha de vacinação. Jair Bolsonaro é sempre "contra", não consegue evitar. Seu combustível é provocação e distúrbio. Ele parece com o menininho que, por ciúmes, destrói os castelos de areia das outras crianças no parquinho. Com a diferença de que a destrutividade de Bolsonaro custa vidas humanas.

Tudo isso é especialmente trágico também porque o Brasil estaria bem posicionado para realizar uma campanha de vacinação rápida e abrangente. O país poderia ser um modelo para o resto do mundo. Assim como o Bolsa Família, a luta contra a fome e os programas de alfabetização do Brasil serviram de modelo para outros países, o Brasil também poderia se distinguir internacionalmente através de uma ampla campanha de vacinação.

Mas este governo não tem vontade, competência ou a visão de futuro para organizar tal campanha. A única coisa que Bolsonaro consegue fazer bem: nomear militares para cada problema e cada posto vago. Competência? Não importa.

O SUS oferece boas condições para uma campanha de vacinação rápida e abrangente. A infraestrutura e a experiência estão lá. Qualquer pessoa que tenha tido que ir ao SUS para tratar um ferimento ou doença menor ou para obter uma vacina pode atestar isso, inclusive eu. Você tem que esperar, mas chega a sua vez e você vai ser atendido. Desde que não seja para cirurgias complicadas e doenças graves, o SUS está na verdade em uma boa posição, considerando que ele é público e gratuito.

Mas o SUS tem uma reputação péssima. É subfinanciado, e os recursos muitas vezes não são utilizados de forma eficiente. Uma das razões para isso: a Emenda Constitucional do teto de gastos (EC 95), criada pelo governo Michel Temer e endossada por Jair Bolsonaro. Segundo o médico e professor da PUC de Campinas Pedro Tourinho, o SUS já perdeu 22 bilhões de reais por causa disso.

E assim, mais uma vez, o Brasil está jogando fora um de seus pontos fortes. O maior dilema do Brasil é, sem dúvida, o de não fazer nada com suas enormes oportunidades. Poderia ser um dos países mais ricos e bonitos do mundo. Em vez disso, é dilacerado por conflitos internos, injustiça, violência e pobreza.

A vontade de destruir é provavelmente o traço mais característico do governo Bolsonaro. A crise do coronavírus confirma isso novamente. Está destruindo o meio ambiente do Brasil, o maior tesouro desta nação. Ela prejudica instituições reconhecidas como o Ibama, o Instituto Palmares ou o Ministério das Relações Exteriores, que está sob o controle do teórico da conspiração Ernesto Araújo. Ele também destrói a vida de milhares de brasileiros com suas políticas negacionistas na pandemia. Ao fazer isso, está prolongando a crise.

Bolsonaro está destruindo o último pedaço de reputação que o Brasil já teve internacionalmente. É nos momentos de crise, costuma-se dizer, que o verdadeiro caráter de uma pessoa é revelado. O presidente e seus apoiadores revelam, acima de tudo, uma coisa: cinismo.