domingo, 13 de outubro de 2024

Era uma vez o Líbano

Devastaçãso em aldeias libanesas - Avi Scharf


A vida posta em risco na roleta

Bastou a Alexei Ivanovitch jogar uma única vez para que o vício se instalasse (Dostoeivsky, em "O Jogador"), com todas as consequências de destruição e ruína. Para o adicto, o fundamento do jogo não é ficar milionário, mas substituir o tempo real por uma mitologia que absorve a angústia do tempo e da morte. A compulsão decorre de uma seriação detentora do poder imaginário de redefinir as condições reais de vida e finitude. O motor neurótico do sistema, verdadeira raiz da paixão, é ganhar e perder sem fim, satisfação e decepção, até que o jogador se autodestrua.


Nessa época de intenso pessimismo político, moral e cultural, é também essa a lógica da religião da matéria oferecida como consolação às massas pelos cultos da prosperidade. Aposta-se que um investimento monetário em Deus retornará multiplicado. E o crupiê pastoral adverte que é a primeira coisa a fazer com o salário, pois "Deus não gosta de restos".

Na roleta financeira, os lances são altíssimos, claro, para quem pode. Mas é idêntica a pulsão: o corpo-imagem do sujeito, fabricado pelas novas tecnologias da comunicação, é instado a experimentar o gozo imediato do risco.

Agora soou um alarme: os populares jogos de apostas online, conhecidos como bets, são suspeitos de afetar negativamente o bem-estar da população e a economia nacional. "Ludópata" é a designação científica para o viciado, cujo tratamento ainda não encontra lugar em clínicas médicas.

A questão não é, porém, terapêutica. Sob o capitalismo algorítmico, toda estrutura social passa a funcionar como cassino. O projeto neoliberal consiste no desmantelamento do estado de bem-estar social e na definição do indivíduo como criador único de si mesmo, livre para a obtenção de riquezas. Cada um rodando em torno de si próprio, como uma roleta.

Esse giro, se excessivo, beira a catástrofe. O nazifascismo foi um giro alucinado e maquinal ao redor dos próprios princípios, sem admitir relações nem limite externo, ou seja, a essência mesma da loucura. O fenômeno ressurge como forma soft de poder, em que se imbricam a razão econômica, a digital e a biológica, para acabar com a distinção entre homem e máquina, entre espírito e matéria. O culto da prosperidade é aspecto popular dessa despercebida religião inespiritual, que absorve crentes e ateus.

Jogos de azar, sempre houve. O que agora acontece é a perfeita adequação entre risco e uma ordem social voltada para a construção do sujeito como empreendedor individual, descomprometido com o comum. Mas o capital disponível contempla só as classes abastadas. Nas subalternas, a carência é consolada pela retórica da prosperidade, que não aponta para trabalho produtivo, e sim para o imaginário da riqueza aleatória.

Aposta-se em tudo: na sobrevivência pessoal, no templo e agora nas bets, o novo cassino online, que o governo se empenha em legalizar, interessado apenas em arrecadar. A Fazenda criou até mesmo uma Secretaria Geral de Apostas e Prêmios. Bet é nada menos que o crack virtual, obscenamente oferecido a crianças, que se tornam crupiês mirins. Fala-se em ludopatia epidêmica, mas se esconde a fonte verdadeira da compulsão. A hipocrisia é oficial.

O homem, a guerra, o desastre e o infortúnio

Que estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego coletivo. O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em ação. Da paz se diz que é podre, porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inatividade, a derrota que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.


Imaginar o mundo pacificado em aceitação e contentamento consigo é apenas o mito que justifique a continuação da guerra. A paz é insuportável como a pasmaceira. Nas situações mais vulgares, nós vemos a imperiosa necessidade de desafiar, irritar, provocar, agredir, sem razão nenhuma que não seja a de agitar a quietude, destruir a estagnação, fazer surgir o risco, a aventura. É o que leva o jogador a jogar, mesmo que não necessite de ganhar, pelo puro prazer de saborear o poder perder para a hipótese de não perder e ganhar. A excelência de nós próprios só se entende se se afirmar sobre o que o não é.

Numa sociedade de ricaços ninguém era feliz. Seria então necessário que por qualquer coisa houvesse alguns felizes sobre a infelicidade dos outros. O homem é o lobo do homem para que este possa ser o cordeiro daquele. Nenhuma luta se destina a criar a justiça, mas apenas a instaurar a injustiça. O homem é um ser sem remédio. Todo o remédio que ele quiser inventar é só para sobrepor a razão ao irracional que de fato é. Toda a história das guerras é uma parada de comédia para iludir a sua invencível condição de tragédia. A verdade dele é o crime. E tudo o mais é um pretexto para o disfarçar. A fábula do lobo e do cordeiro já disse tudo. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais imaginação para inventar razões. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais hábitos de educação. E a razão é uma forma de sermos educados.”
Vergílio Ferreira, "Conta-Corrente IV"

Day after?

Alguém viu "o dia seguinte" ultimamente? Nos estúdios de televisão, eles disseram que era a única coisa que impedia a vitória, mas desapareceu. Sem deixar rastros. O governo não está pedindo a ajuda do público em sua caçada por ele. 

O povo de Hitler

Não é porque a historiografia trata de eventos que já aconteceram e por definição não podem mais ser alterados que ela não avança. O acesso a mais fontes, mudanças em perspectivas teóricas, além do desenvolvimento de novas tecnologias, permitem quando não recomendam a reinterpretação de fatos pregressos.

Em "Hitler´s People" (o povo de Hitler), Richard Evans tenta responder àquelas questões que jamais vão embora. Como os alemães, um dos povos mais instruídos da Europa, puderam apoiar Hitler? Por que persistiram por tanto tempo nesse apoio?


Evans toma como modelo obras consagradas sobre o nazismo, como as de Joachim Fest e Ian Kershaw, e se beneficia da abertura, nos anos 90, de arquivos soviéticos que lançaram novas luzes sobre velhas figuras. Esse material não provoca nenhuma reviravolta interpretativa, mas fornece detalhes importantes.

Evans tenta responder às questões seminais traçando perfis das figuras que tornaram o nazismo possível. E o faz em camadas. Começa com Hitler, continua com os paladinos (Göring, Goebbels, Röhm, Himmler, Von Ribbentrop, Rosenberg e Speer), passa a uma espécie de segundo escalão, no qual se destacam personagens como Heydrich, Streicher e Von Pappen, e conclui com o que chama de "instrumentos", pessoas que não tinham envolvimento profundo com a cúpula nazista, mas trabalharam a favor dessa ideologia, como a cineasta Leni Riefenstahl e o general Von Leeb.

O resultado são quase 600 páginas muito bem escritas e altamente informativas. Ficamos sabendo não apenas o que os biografados fizeram nos anos sombrios do nazismo mas também como, em alguns casos, operaram paras se livrar das responsabilidades. Speer, por exemplo, teve sucesso em fazer uma espécie de lavagem de seu passado nazista.

Evans também se beneficia do afastamento temporal. Para os contemporâneos do nazismo e as primeiras gerações posteriores a ele era importante, por exemplo, tentar pintar Hitler como uma figura que de alguma forma não pertencia à humanidade. Hoje sabemos melhor do que humanos são capazes.

Com cesáreas sem anestesia e recém-nascidos subnutridos, palestinas pagam alto preço

"Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma 'voz masculina'", reflete a Nobel de Literatura Svetlana Alexijevich nas primeiras páginas de um dos seus mais famosos livros, "A guerra não tem rosto de mulher", escrito a partir de relatos femininos da Segunda Guerra Mundial. Embora décadas separem os dois acontecimentos, grande parte do que vem a público sobre o conflito na Faixa de Gaza, que completa um ano nesta segunda-feira, também são informações sem gênero. Um relatório da organização internacional ActionAid, porém, revelou as consequências ocultas da ofensiva israelense na vida das palestinas — de cesáreas sem anestesia devido ao colapso no sistema de saúde, a um ambiente de completa insegurança dentro de abrigos superlotados e bebês que já nascem subnutridos na esteira da subnutrição de suas mães.



Cerca de 42 mil pessoas foram mortas durante os confrontos na Faixa de Gaza no último ano, entre elas mais de 11 mil mulheres. De acordo com estimativas das Nações Unidas, 37 mães são mortas diariamente no enclave, e até 25 mil menores perderam ao menos um dos pais.

Além das vítimas fatais e dos milhares de feridos, a guerra provocou uma profunda crise de deslocamento para os cerca de 2 milhões de sobreviventes — muitos, obrigados a migrar de abrigo mais de uma vez. Os constantes deslocamentos têm um peso ainda maior sobre as mulheres, que relataram uma enorme perda de privacidade e segurança, sendo vítimas de assédio e abuso em acampamentos superlotados, aponta o relatório "Agentes de mudança: O papel das organizações lideradas por mulheres da Palestina na crise", da ActionAid.

— No passado, as paredes eram nossa proteção. Hoje, é apenas um pedaço de náilon — relatou uma palestina ouvida pela organização.


De acordo com o documento, divulgado em primeira mão no Brasil pelo O GLOBO, 39% das palestinas sofreram ao menos uma forma de violência doméstica após a guerra, com 14% relatando terem sido vítimas de agressões físicas e 18%, de abuso financeiro. Segundo a ActionAid, conflitos como Gaza são propícios para "ameaças crescentes de estupro, feminicídio, casamento forçado, exploração e desapropriação da vida, do corpo e do território das mulheres".

O ambiente de instabilidade causado pelos deslocamentos frequentes tem incentivado homens a impor o casamento forçado às meninas de suas famílias como um "mecanismo de sobrevivência" em meio à falta de alimentos, fechamento de escolas e o temor de que sejam vítimas de violência sexual nos abrigos.

— Casamento precoce! Nenhuma lógica está ajudando as pessoas [a entenderem], não conseguimos alertá-las para que não façam isso. Os homens pensam em proteger suas meninas por meio do casamento. Mesmo que ela tenha sido abusada sexualmente quando casada, é melhor do que quando não está casada — relatou Buthaina, diretora da Wefaq Association for Women and Childcare, ONG palestina que apoia mulheres em Gaza.

Mesmo diante dessas condições, elas têm assumido jornadas dobradas de trabalho em campos de deslocados, que vão desde a funções fisicamente desgastantes, como carregar enormes baldes de água e cozinhar em fogueiras abertas, até se encarregarem de responsabilidades adicionais de cuidado. Em meio à escassez de alimentos, depoimentos do relatório destacam que muitas têm optado por comer por último e em menor quantidade para garantir que toda a família esteja alimentada.

— A pior coisa que as mulheres fazem é se colocarem em último lugar em tudo, as últimas da lista, despriorizando a si mesmas e cuidando dos outros — comenta Hala, membro da Alianza por la Solidaridad, organização humanitária espanhola parceira da ActionAid.

Na Cisjordânia, que viu uma escalada das tensões após a eclosão da guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas, a situação também é dramática. Segundo o documento, palestinas sofrem com a violência tanto de soldados israelenses quanto de colonos, que muitas vezes demolem arbitrariamente residências na região. Em um dos depoimentos coletados pela organização, uma ativista de Hebron disse que viu uma vizinha ser “levada para dentro de uma sala [por soldados israelenses], todas as suas roupas [foram] tiradas e [eles] deixaram [um] cachorro atacá-la na frente do marido e dos filhos”.

— É terrível que essa guerra tenha continuado por tanto tempo sem um cessar-fogo. Estamos extremamente preocupados com as mulheres e meninas com quem trabalhamos em Gaza, bem como na Cisjordânia, que está se tornando mais perigosa e volátil a cada dia — conta ao GLOBO Riham Jafari, coordenadora de Advocacy e Comunicações da ActionAid Palestina.

A destruição quase total do sistema de saúde em Gaza também representa um duro golpe às palestinas. Segundo a ONU, há cerca de 155 mil mulheres grávidas ou amamentando no enclave. Embora estimativas apontem que 183 mulheres deem à luz todos os dias, com um bebê nascendo a cada dez minutos, apenas dois dos 12 hospitais parcialmente em funcionamento hoje têm uma maternidade — antes do conflito, 36 estavam operando. Nesse cenário, as mulheres são forçadas a parir sem os cuidados devidos, incluindo cesarianas e operações de emergência "sem esterilização, anestesia ou analgésicos".

Por outro lado, a escassez de alimentos e a falta de atendimento pré-natal elevou o número de abortos espontâneos, partos prematuros e complicações. De acordo com Adnan Radi, consultor e chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital al-Awda, há bebês já nascendo com desnutrição:

— A fome afeta negativamente muitas mulheres grávidas, e as crianças ficam desnutridas desde o nascimento.

Sem o fornecimento suficiente de contraceptivos, o risco de gravidez indesejada também aumentou, segundo a ActionAid. Mesmo outros métodos além dos preservativos e das pílulas, como o DIU, são difíceis de serem adotados.

— A inserção de um DIU não é possível devido à falta de esterilização dos materiais necessários para o médico inseri-lo. A esterilização e a limpeza são limitadas e indisponíveis, levando à disseminação de infecções — pontua Feryal Thabet, gerente de um centro de saúde para mulheres.

Outra face da crise sanitária no enclave são as condições de higiene às quais as mulheres estão submetidas nos abrigos. Segundo a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), 690 mil mulheres e meninas menstruam em Gaza. A falta de acesso a absorventes e produtos de limpeza, porém, tem sido uma preocupação. Segundo especialistas da ONU, aquelas que conseguem acesso a pílulas anticoncepcionais têm feito uso contínuo para evitar menstruar em condições anti-higiênicas. Outras precisam enfrentar banheiros compartilhados com centenas de pessoas.

— No momento, a falta de produtos de higiene é um grande problema. Nossos parceiros estão distribuindo kits de higiene repletos de itens essenciais, como sabonete, shampoo e produtos para menstruação — contou Jafari à reportagem, explicando que também são distribuídos alimentos e roupas, transferências em dinheiro para mulheres comprarem diretamente o que precisam.

Por outro lado, sem um cessar-fogo no horizonte para o conflito que já dura 365 dias, as consequências podem ser ainda maiores para elas.

— No curto prazo, estamos extremamente preocupados com a chegada do inverno [verão no Hemisfério Sul]. Mulheres e meninas já estão gravemente debilitadas pela desnutrição e não têm roupas quentes nem abrigo adequado contra a chuva e o frio que se aproximam, o que as deixará mais suscetíveis a doenças e enfermidades — destacada Jafari. — Em longo prazo, as meninas de Gaza perderam um ano inteiro de educação, e toda a população sofreu um trauma profundo. Isso terá consequências graves para o futuro delas.

Por isso, pontua a coordenadora, "suas vozes e perspectivas não podem ser deixadas de lado" no dia seguinte do conflito:

— Chegou a hora de as partes interessadas locais e internacionais valorizarem a contribuição essencial das mulheres, aumentando o financiamento para organizações lideradas por mulheres e garantindo que elas tenham um lugar à mesa quando decisões cruciais sobre a Palestina e seu futuro estiverem sendo tomadas.

Após a avalanche da direita, qual país verás?

Que país pode existir enquanto fronteira e laboratório de práticas financeiras e comerciais ultraliberais? Um país mistificado, em transe resultante da última e da próxima guerra santa por inventar. Autorizados pelo espírito de salve-se quem puder e como puder, entram em cena os falsos vingadores, vangloriando-se de pilhar o que já foi previamente estigmatizado e vulnerabilizado: os biomas, as periferias, os povos e seus imaginários entrelaçados.

Em um país convertido em plataforma de superacumulação de capitais errantes, o esvaziamento último é o de sentido e o de destino. A orfandade multitudinária resultante encontra alívio nos braços de pastores, mitos, capitães e delegados, terceirizando sua autoimagem para aqueles que os retêm, seletivamente, em meio à dissipação. É por isso que os candidatos a próceres da extrema direita se apresentam como exterminadores de alteridades, de gênero, raça e comportamento, dos bandidos, imigrantes, comunistas e demais rótulos demonizáveis.

De um lado, hordas de mercenários armados, material e digitalmente, à disposição para manter a exceção permanente, ou seja, o poder de fato. De outro, uma legião de parlamentares e gestores sempre a postos para privatizar bens públicos e para tornar a legislação cúmplice ou leniente com o crime financeiro-empresarial organizado. Por sobre este bloco, como abóboda, se espraiam religiões verticalistas e salvacionistas, em consonância com think thanks neoconservadores e neonazistas, oferecendo paraísos de segurança e de consumo para os “escolhidos”.


Em tempos de guerra social total e assimétrica, ficam suspensos os limites protetivos do mundo do trabalho, dos territórios e do imaginário social. A liberdade de acelerar e atropelar o que estiver na frente do caminho é o âmago programático deste bloco representado por títeres como Trump, Marianne Le Pan, Netanyahu, Milei, entre outros na esfera internacional. No Brasil, Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, Marçal e congêneres repetem o mesmo lema como num jogral. Não casualmente, o crescimento de lideranças políticas com esse perfil é acompanhado pelo crescimento das bolsas e movimentos especulativos determinados: quanto maior o solavanco na contratualidade anterior, maiores são lucros extraordinários realizados em detrimento do futuro de coletividades e de patrimônios comuns.

Investidores especializados na incorporação de ativos estatais exigem padrão SABESP de privatização, sem freios nem contrapartidas. Os superávits primários dilatados que a dupla Palloci e Meireles ofereciam entre 2003 e 2015, como prova de fidelidade aos mercados, depois de Temer e Bolsonaro foram automatizados como piso regulamentar. No novíssimo velho Comitê de Política Monetária do Banco Central, a definição dos juros passa a ser feita de forma assumida para manter e ampliar as margens de ganhos financeiros com serviços e títulos da dívida pública. É o fim da política monetária como instrumento anticíclico, que forneça a liquidez necessária para garantir soberania econômica em tempos de crise. A política de juros no Brasil é movida pelo medo de contrariar interesses particularistas: quanto mais emprego e renda gerados, mais restritiva deve ser a política monetária para neutralizar eventuais dinamismos que escapem à lógica do rentismo. Cara e coroa da mesma moeda: juros preventivos e guerras preventivas contra as retomadas de território e de crescimento autossustentado.

Austericídio é pouco para caracterizar este descomunal butim de recursos públicos repartidos entre conglomerados financeiros por meio da multiplicação de mecanismos artificiais de endividamento do Estado e da sociedade. Enquanto se refestelam com os despojos dos fundos públicos e dos bens ambientais da nação, os grandes conglomerados financeiros e seus corvos midiáticos arrotam denúncias de gastança, corrupção e má gestão do Estado. Subsídio é o que se condena nos setores ainda não financeirizados completamente. Para bancos e fundos de investimento, há sempre almoço (banquete) grátis sem que haja contrapartidas em termos de emprego, inovação e qualificação. Não há sistema financeiro no mundo mais subsidiado e protegido que aquele que opera no Brasil. Um grande paraíso financeiro como este requer um Banco Central que seja olhos e ouvidos dos reis-investidores. É o que se quer manter com sua autonomia plena, iniciada com Guedes e Campos Neto, e mantida, com reverência servil, por Haddad e Galípolo.

Conglomerados de commodities agrícolas e minerais desfrutam a mesma condição paradisíaca, blindados e protegidos de todos os lados. O território nacional adquire a forma de uma gigantesca incubadora de novas plantations e províncias minerárias. Estes empreendimentos estão autorizados a promover desastres em série, devidamente precificados, para que prossigam expandindo seu raio de atuação. Os setores exportadores, valendo-se do barateamento de trabalhadores, comunidades e biomas, se tornam os “setores-líderes” do país.

O crime, em larga escala, contra povos, a natureza e a economia popular, compensa. E continuará a compensar, a depender das vozes tonitruantes que fazem calar sistemas de justiça, órgãos de fiscalização e controle. Despachantes parlamentares se apressam em aprovar legislações antiambientais e antissociais que criminalizam sujeitos coletivos que se coloquem na contramão desta corrida desenfreada. Passada a boiada, fecha-se a porteira e nela se enfileiram os fuzis. Nem Deus, nem pátria: “segurança jurídica” da propriedade acima de tudo.

Sem margem ou horizonte para firmar ou revisar acordos interclassistas, pactos sociais ad hoc que sejam, resta o estouro do alarme e o comportamento de manada. A pauta particular dos grandes proprietários – a segurança do patrimônio – vira pauta de todos que aspiram à única condição considerada digna. Melhoria e direitos não “engajam” mais, privilégio é o que se almeja, ou se é VIP ou não se é nada. Modalidades de serviços e de tratamento (pretensamente VIP) são oferecidas aos sedentos por reconhecimento e por olhares de inveja prometidos nas telinhas. Por isso a extrema direita é pop.

O culto ao Todo Poderoso se desdobra no culto à concentração infinita. Fechados os caminhos para um padrão universal de tratamento ao longo dos anos 90, apesar das melhores intenções e cartas de direitos, legadas de décadas e séculos anteriores, adeuses são dados sem que se perceba. É “Adeus Rosseau” e não apenas “Adeus Lênin”. Não é só o socialismo que fica para trás, mas também todas as promessas da modernidade e de democracia liberal. Os ricos e pobres não se encontrarão nem se aproximarão, ninguém mais ousa vislumbrar o cenário de uma grande classe média em expansão a partir da “equalização das oportunidades”. Morte ao meio, ao meio real e almejável por todos.

Qualquer política social ou instrumento de regulação pública para fazer prevalecer interesses difusos e intergeracionais é pichada imediatamente como “socialista”. No capitalismo financeirizado não cabem mais dádivas aos debaixo. A disfunção, a fraqueza ou pobreza torna-se instantaneamente sinal de “não merecimento”. Meritocracia dos vencedores, eugenia econômica, aporofobia, supremacismo, nenhuma classificação consegue captar a sordidez da fórmula.

As políticas ultraliberais e as culturas narcísicas em circulação implodiram as pontes de ligação e os canais de interação social. Se é livre a defesa e ostentação da fortuna, é porque a igualdade perdeu importância como princípio legitimatório. Do alto descem os sinais de asco e repugnância contra os descartáveis, aqueles que não deveriam existir. Pragmaticamente, os que podem se salvar mandam para o inferno os que não podem.

No imaginário generalizado, fabricado com terror, sequestro e bombas, o inimigo é aquele que interrompe ou ameaça interromper sua ascensão. São taxados de corruptos, ditadores e bandidos todos que pleiteiem ou justifiquem a adoção de mecanismos redistributivos da renda. As bandeiras de Israel nas manifestações bolsonaristas são didáticas, expondo os cruzamentos de estratégias fundamentalistas. Inimigo no vórtex, todas as armas e métodos são abençoados. Grande Israel, senha da grandeza de todas as ordens, para os “escolhidos”. Todo poder e toda a glória para os “filhos diletos”.

No caso brasileiro, o que une todas as direitas é a demonização das práticas políticas dedicadas a desconcentrar saber, poder e renda. O PT, a esquerda e a bandeira vermelha, são alvos mais manejáveis, mas é a luta social e o conjunto de memórias de resistência da classe trabalhadora e das comunidades o que se quer erradicar.

No andar de cima, no campo da regulação das finanças, do agronegócio e da indústria extrativa, há cada vez mais autorregulação inter-monopolística. E o que sobra no andar de baixo? Ficamos com a disputa pela intermediação do que sobra da dívida, do que sobra de poder regulatório? A disputa possível não estaria em espaços de poder oclusos e paralelos, construídos por décadas de mobilização social?

Enfrentamos nas últimas décadas uma sequência de contrarreformas que tratou de restaurar e depois exponenciar graus e ritmos de acumulação de capital. Seu itinerário é a destruição dos referenciais coletivos de organização e das garantias objetivas e subjetivas dos direitos sociais e políticos da classe trabalhadora. Cortes profundos na carne com a imposição de bloqueios políticos e institucionais de tudo o que possa ser democratizado e socializado no país.

Nesse cenário, é indispensável resgatar a memória das lutas, memória do processo, não apenas do resultado. Não cabe qualquer saudosismo acerca das chances e espaços anteriormente alcançados. A visão estática e legalista dos direitos, típica da filosofia política liberal, se podia fazer algum sentido em períodos de relativa estabilidade econômico-política, não tem mais lugar no bojo das convulsões estruturais do capitalismo e de avanço subsequente de formas políticas autoritárias e neofascistas.

O lamento da perda deve ser passagem para a evocação. Para encontrar atalhos e saídas, será preciso criar as condições objetivas e subjetivas para que os dominantes temam novamente os dominados e admitam a definição de limites e freios à sua sanha expansionista. É preciso dimensionar o tamanho dos estragos e a profundidade das ofensivas promovidas nestes anos. Ao mesmo tempo, é preciso medir o poder social que ainda detemos e resguardamos e a partir daí conjecturar como viabilizar as contraofensivas necessárias.