quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Pensamento do Dia

 


Amazônia, Minamata, Chernobyl

Há um mês, 300 balsas ocupadas por garimpeiros invadiram o rio Madeira e ameaçaram publicamente impedir a ordem da Polícia Federal (PF) de não garimparem em territórios reconhecidos como de posse e usufruto de tribos indígenas. A imagem nos jornais e emissoras de televisão daquele momento causaram forte impacto no Brasil, pela audácia do desafio à lei e à ordem e pelo abusado desprezo ao poder de fogo da PF, temido por traficantes de drogas, da política e da gestão pública. A barreira, contudo, se desfez e logo caiu no esquecimento um fato alarmante e secreto, como o orçamento clandestino do bolsolão. A morte insidiosa desliza no lugar das balsas na composição química de um metal tão precioso como o ouro, que os balseiros pretendem “bamburrar”, como se dizia nos tempos de Serra Pelada, sob o domínio do Major Curió. Ao contrário do novo coronavírus, que parou o Brasil e o mundo, o mercúrio não atua acobertado pela surpresa.


Seus efeitos contra a saúde e a vida dos seres vivos começaram a ser percebidos em 1930, quando a empresa Chisso instalou na cidade costeira de Minamata, no Japão, uma fábrica de insumos para matéria plástica aceltadeído e PVC. Em 1956, uma criança de cinco anos foi diagnosticada como portadora de uma doença contagiosa e desconhecida, dando início a pesquisas científicas que localizaram, vários anos e milhares de vítimas depois, o mercúrio, que nada tem de cromo e tudo tem a ver com coma. Seus sintomas, que demoram mais de dez anos até serem sentidos, passam da fadiga a dores de cabeça, comuns em gripes e covid 19, a formigamento em braços e pernas, que podem se confundir com preliminares de enfarte, e aparecem logo depois de se manifestarem em voos descontrolados de aves, além de disfunção muscular, loucura e morte entre os humanos, normalmente de famílias de pescadores e consumidores de pescados. Há mais de 60 anos, o mundo reconhece e evita o vilão mercúrio. O Brasil, não. Nestes tristes trópicos, como o francês Lévi Strauss descreveu após uma passagem pela Universidade de São Paulo, a Operação Uiara da PF, que, aliando-se ao mercúrio do coma, os garimpeiros ilícitos consideram inimiga de sua cobiça aurífera, achou nas águas traiçoeiras do Rio Madeira de 16 a 95 vezes níveis de mercúrio acima dos considerados normais pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Nos fios de cabelos coletados dos ribeirinhos foram encontradas níveis três vezes acima do máximo tolerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Do mineral diluído na água, usado para separar ouro de outros segmentos na garimpagem, foi encontrado em duas amostras de segmentos colhidos pela perícia com valores máximos identificados de 47 a 120 vezes maiores.

Segundo Edilson Martins, primeiro jornalista a assinar uma coluna na imprensa sobre meio ambiente, no Pasquim, à época da ditadura, disse na série Dois dedos de Prosa, no blog do Nêumanne no Portal do Estadão, “na Amazônia ficam 97% dos garimpos do Brasil. Pelo menos 17% de forma ilegal. A corrida ao ouro começou nos anos 1970, com o projeto Radam, que fez o mapeamento do solo e subsolo de toda a Amazônia, via radar, em aviões, no governo Médici. Foi revelado que ela é uma imensa reserva mineral. Em 1986, a Aeronáutica abriu uma pista de pouso na região dos Yanomami. No mesmo instante, criaram-se 50 pontos de garimpo. Antes do ouro, houve a corrida pelos diamantes no entorno do Monte Roraima. Hoje, em todos os rios onde há garimpo - Madeira, Tapajós, Xingu e bacia do território dos Yanomami - há mercúrio.”

Quando se fala em garimpo ilegal, a primeira tentação é inculpar o atual desgoverno. O facilitário nem sempre ajuda a enxergar a realidade inteira. Em 1980, o autor deste texto sobrevoou a floresta úmida de Serra Pelada a Marabá sem enxergar uma copa de árvore. Só fumaça. Ali já era evidente o que a ignorância de Bolsonaro não permite enxergar: a “floresta da chuva”, como dizem no Primeiro Mundo anglo-saxônico, queima, sim. Mas o fogo que produzia aquela nuvem de fumaça não queimava mata virgem, e sim preciosos e produtivos castanhais, garantiu Martins.

Naquele decênio, Chernobyl, na Ucrânia, incendiou cinco milhões de hectares de florestas. Aqui, o desmate, as queimadas e o mercúrio nas águas resultam de atentados à lei penal. Trata-se de alçada da polícia judiciária que conduziu a Operação Uiara. Para evitar a confirmação de que a mina mata mesmo e a destruição de 5 milhões de hectares, como aconteceu na Ucrânia, urge acionar a polícia. A hora de agir é anterior à eleição de 2022. A Indesejada das gentes, na forma de minerais preciosos, não poupará só a maior floresta tropical do mundo, mas o país que a consome de forma genocida. A hora é já. A mina mata japoneses, eslavos e as tribos indígenas, que a democracia dos civilizados de araque do Brasil trata como escórias da barbárie. A mortandade dos peixes e ribeirinhos do Madeira não pode assassinar o resto de espírito público, se é que ainda existe e resiste, na velha Pindorama de Diogo Velho e Pedro Cabral.

Só podemos derreter lágrimas...

Nesta época , escreve-se muito . O Natal permeia e incentiva a escrita. Aparecem lindos textos apelando ao que pode haver de melhor no coração dos homens. Desde poemas simples , frases soltas, elaboradas reflexões a longas epístolas de bem-aventurança. Todos eles trazem mensagens que acabam por nos tocar. Estamos abertos à celebração, embora nem sempre seja o nascimento de uma criança que esteja a ser festejado. Nascida há dois mil anos é ela o motor desta celebração. O Natal é assim a festa de toda a criança que se fez e fará Homem. Repetir, em cada ano, esse acontecimento é a necessidade que todos nós encontrámos para dar forma à solidariedade que se perde ou negligencia durante o ano. Tomamos a família e fazemos dela o encontro que foi, por vezes, adiado. Que Natal pode ser todos os dias é uma frase que se perde nas pregas das intenções. Basta olhar as imagens que, dia a dia, enchem os écrans televisivos para encontrar a legenda exacta para esta verdade. Ferem e agridem, mas não deixam de se repetir. E são tantas as imagens de crianças de todas as idades . Perdidas em campos de refugiados ou em marcha por esse mundo fora. Sujas , desgrenhadas, famintas, perdidas, abandonadas rasgam o coração , sem que a piedade do Natal as alcance. 

Papai Noel: um bilhão de dólares para as eleições de 2020

A televisão, particularmente, tem insistido nesses últimos trinta dias em disponibilizar dezenas de filmes com temas natalinos, relacionados com o amor, a solidariedade, a paz e a compaixão, contrapondo-os à enxurrada de enlatados policiais que tomou conta da telinha e da vida das pessoas, usurpando delas o tempo de recolhimento compulsório provocado pela pandemia.

O mundo natalino da TV tem direito, inclusive, a uma rainha: All I Want for Christmas Is You (Você é tudo que eu desejo no Natal), de Mariah Carey, que se insinua misturar a música pop com a sacralidade de Maria, mãe de Jesus. A música, lançada em 1994, ganhou popularidade em 2020, e graças ao sucesso alcançado, Carey passou a ser distinguida como a “Rainha do Natal”.

Diria que o espírito de Natal, às vezes um pouco piegas, seria uma espécie de” Agenda Positiva" para a sociedade, com a pretensão de amenizar a angústia de uma população cristianizada, desempregada e faminta, envolvida por uma retórica inconsequente de pessoas e políticos confusos, desocupados ou oportunistas. Fora da telelinha o cenário é dramático. Aqueles que se arriscam a dar uma volta pelas ruas das cidade brasileiras ou os leitores de jornal podem se surpreender com a cotidianidade, e os fatos correntes.


"Creche fecha e deixa 150 crianças sem abrigo". "Favelados abandonam os barracos para pedir ajuda nas ruas". Asilo está sem recursos para o atendimento regular a idosos". "Escola não tem dinheiro para alimentação das crianças ". As situações se repetem por todo o País, ao longo de toda história brasileira: a pobreza, a desigualdade, a fome e o analfabetismo. Repetem-se de governo à governo. O quadro social do Brasil é esse. Não tem assistência social ou política pública que chegue aí. Só estatísticas manipuladas e conversa fiada.

Jamais se venceu neste País esses inimigos reais da população e, é de se imaginar que, nem aprovando um rombo de R$ 113 bilhões para o Orçamento de 2022, esses problemas serão erradicados com se anuncia, com alto grau de vulgaridade, no mundo político. Vivenciar um quadro desses tira toda a motivação positiva e sacra que as comemorações de Natal possam conter.

Com o fim de tentar arrecadar fundos auto sustentáveis para melhorar as condições de vida de favelados, Carlos Lacerda, quando governador do Rio de Janeiro, com toda aquela inteligência, propôs pintar os barracos (Favela colorida) para atrair turistas. O governador do DF, aparentemente, pensa em coisa similar. Dobrou os recursos para financiar a iluminação de Brasília, que já é, sem dúvida, uma das melhores no mundo.

Os pedintes e desempregados vivendo em regime de pobreza absoluta estão espalhados pelas cidades brasileiras: na porta dos bares, das padarias, dos restaurantes, dos supermercados, nos estacionamentos, nos sinais de trânsito. Nas proximidades do campus da Universidade Brasília, há seis quilômetros da Praça dos Três Poderes, forma-se uma colmeia de barracos construídos com entulhos dos lixões, e cobertos com sacos plásticos. Há crianças por todos os lados. Um cartaz rústico, fincado ao longo da via que dá acesso à Praça, montado de parte de uma caixa de papelão, apela: "Ajude-nos a matar a fome neste Natal!"

Difícil de entender. O quadro aqui fora não combina com a euforia e as conquistas dos 513 deputados e 81 senadores, ao derrubar os vetos presidenciais ao Orçamento Geral para 2022. Ignorando o cenário com alto índice de desemprego e pobreza, no Congresso, os políticos festejam a dinheirama que conseguiram aprovar para financiar a campanha eleitoral de 2020: R$ 5,7 bilhões (Mais de um bilhão de dólares) para a realização das eleições; R$ 1,7 para o fundo partidário (US$ 450 milhões de dólares; e R$17,00 bilhões (3 bilhões de dólares) para as emendas parlamentares. E ainda aprovaram o tal estouro no Orçamento para 2022 de R$ 113 bilhões (2 bilhões de dólares).

Não se trata nem de festa. É farra mesmo com o dinheiro dos contribuintes, empresas, empresários e trabalhadores. São 35 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral, 28 com representação no Parlamento brasileiro (…) e pelo menos 52 tentando se organizar a tempo para as eleições de outubro e, assim, atrair para si parte desses recursos.

É o financiamento público da campanha eleitoral, que conta ainda, em alguns lugares, com inconfessáveis aportes privados. O brasileiro nem desconfia do que está acontecendo. O Brasil é um dos país, entre os 25 no mundo, que mais gasta com o processo eleitoral. Desta vez, contou também com a ajuda de Noel.

É Natal no Brasil (deles)

 


Sem estoques, Brasil flerta com o desastre

Falta orçamento, falta execução, falta vontade política. E faltam alimentos. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) possuía, conforme dados abertos de outubro, 34,7 mil toneladas de milho, 21,5 mil toneladas de arroz, uma tonelada de café e estoques zerados de açúcar, algodão, feijão e farinha de mandioca. Amendoim, castanha e fécula de mandioca também estão, há anos, no zero. Em um país agrícola, que se vangloria das exportações recordes de soja, os estoques públicos deste grão também são nulos, desde 2013.

A FAO (sigla em inglês para Food and Agriculture Organization), braço de alimentação e agricultura da ONU, recomenda aos países que armazenem estoques equivalentes a três meses de consumo da população, com a finalidade de garantir a segurança alimentar nacional. Alguns pesquisadores defendem que os países devem ter, pelo menos, seis meses de estoques. Além disso, a lei 8.171, de 1991, que dispõe sobre a política agrícola do país, determina que é papel do Estado manter estoques bem cuidados para abastecimento e calibragem de preços que devem ser adquiridos, preferencialmente, de pequenos e médios produtores.

Com os números atuais, no caso de uma emergência como uma enchente ou tornado, nossos estoques de arroz seriam suficientes para alimentar a população por menos de um dia. O estoque de milho, por um dia e meio. No “celeiro do mundo” – mas onde 43,4 milhões de pessoas não têm alimentos em quantidade suficiente, conforme dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) – estoques zerados de alimentos me parece de uma incoerência psicótica. O dramático derretimento dos estoques públicos, uma tendência iniciada ainda em 2013, acentuou-se no período Temer e chega ao ápice do desmonte no governo atual. Em 2019, a Conab colocou à venda 27 das atuais 92 unidades armazenadoras – em 1991, ano do início das suas atividades, a estatal tinha 349 armazéns que incluíam galpões, unidades de processamento e postos de comercialização. Guilherme Bastos, presidente da companhia vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), afirmou, na luz do dia, em entrevista à imprensa no ano passado, que o governo “tem que estar fora do estoque regulador”.

“Claramente, o que vemos é um posicionamento de política agrícola ultraliberal que entrega a regulação do mercado de alimentos de bandeja à iniciativa privada. Os interesses econômicos estão colocados acima do interesse público. Ficamos com o ônus ambiental de devastar biomas para cultivar grãos para exportação in natura; é o velho Brasil-Colônia presente ainda na atualidade. E temos, hoje, um Estado que não cumpre sua função social de garantir os direitos básicos da população”, critica Silvio Porto, ex-diretor de Política Agrícola da Conab por 11 anos e professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).

O economista Allexandro Mori Coelho, professor da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP), defende que a formação dos estoques públicos é importante como mecanismo de estabilização de preços, proteção dos pequenos agricultores e da população de baixa renda. “O Brasil tem uma população muito grande e é muito desigual. Então, os estoques são uma forma de garantir a segurança dos grupos vulneráveis, que na hora do aperto não tem para onde correr”, afirma.

Enquanto manter estoques para fins de segurança alimentar parece consenso, sobretudo em tempos de pandemia, a discussão sobre composição de estoques para regular preços gera controvérsias. A economista Juliana Inhasz acredita que para a política de estoques dar certo é preciso que o país esteja com a casa arrumada – política e economicamente. “Se o país está com a economia em ordem, caminhando bem no âmbito fiscal, tem um ambiente institucional forte e uma agenda bem definida de apoio à agricultura de pequena e média escala, e comprometimento firme com a segurança alimentar, então, formar estoques pode ser bom para o país” declara, “Mas de nada adianta gastar dinheiro com a armazenagem, que sai caro, com as contas bagunçadas. Eu questiono se vale a pena investir nesta política no Brasil…”, opina.

O argumento central dos economistas contrários aos estoques é o custo decorrente das atividades de armazenagem. Controle de temperatura e umidade dos silos (alguns comportam mais de 30 mil toneladas de cereais), fretes, seguros em geral, estiva, pesagem, capatazia e braçagem saem caro aos cofres públicos.

Já economistas a favor dos estoques insistem em um ponto-chave: o governo precisa ser forte e ter capacidade técnica o suficiente para executar uma política agrícola coerente com a realidade social do país, que não abandone os pequenos agricultores ao sabor dos ventos do mercado. Para eles, um governo forte e justo seria capaz de, ao mesmo tempo garantir a segurança alimentar dos cidadãos, preços acessíveis nos supermercados e a proteção do produtor rural, navegar bem entre os contratempos do comércio internacional, tudo isso sem desrespeitar as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e os acordos bilaterais que mantém. “O governo tem que dar a regra do jogo. E precisamos de um governo que assegure o bem-estar da população, tarefa crucial em países em desenvolvimento. Veja que uma adversidade climática com nossos estoques zerados pode representar um perigo imenso!”, alerta Claudemir Galvani, professor de economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Em tempos de mudanças climáticas afetando a produtividade agrícola em várias partes do mundo, e de forte inflação global de alimentos, o debate sobre estoques de alimentos precisa estar mais presente. E o assunto merece análise aprofundada, sem pressa, devido à complexidade das dinâmicas através das quais a economia agrícola opera em um mundo globalizado. A pressa pode ficar apenas em detectar quem são os agentes penalizados pelo desmonte dos estoques.

A meu ver, me parecem ser, naturalmente, as duas pontas que a Política de Garantia dos Preços Mínimos (PGPM), do Ministério da Agricultura, a razão de ser da Conab, pretende proteger. De um lado, a combalida agricultura familiar, dependendo das migalhas que lhe sobram no orçamento federal e de medidas provisórias que autorizem a compra urgente do grão que falta. Do outro lado, sofre o consumidor de alimentos, deixado à mercê da volatilidade dos preços nas gôndolas, determinado por um mercado violento. A classe média reclama, mas ainda pode comer. A classe pobre agoniza com a insegurança alimentar. E o Brasil, com seus armazéns vazios, segue firme novamente no mapa tenebroso da fome.

O fim do desenvolvimento

Título dúbio, este! O fim do “desenvolvimento” é, como um mal analista bom de marketing decretou e errou, o fim da história? Ou se refere à finalidade do processo? Ou, ainda, ao fim dessa ideia na economia e na política?

Não pode ser o fim da história, pois até que desapareçam, os humanos continuaremos a nos transformar e a alterar o ambiente em que vivemos. Então, mineiramente, que “trem” é esse?

Essa a pergunta necessária, sempre que se ouvir qualquer “receita” de “desenvolvimento”. Tantos são seus significados que a palavra se tornou um “trem”: significa quase tudo, algo mais e, pois, nada!

A vaga ideia geral é que países com grande parte da população pobre progressivamente reproduzam o estilo de vida daqueles onde há relativamente poucos pobres. Trata-se, por ser não realizável, de uma utopia enganadora.

Utopias são necessárias para indicar o rumo “desejável”. A obscura ideia corrente de “desenvolvimento” é irrealizável porque já hoje a humanidade extrai, transforma, usa e descarta materiais muito além da capacidade de suporte do planeta. Por isso é enganadora. Insistir nela é aprofundar a degradação da natureza, dos humanos e de outros seres vivos. Há, pois, que mudar o rumo, imaginar uma utopia realizável e agir para torná-la real!


Para se tornar realizável uma utopia precisa ser clara e ter prazo certo para se tornar realidade. Ou seja, deixar de ser sonho para ser meta; deixar de ser ideal para ser possível. Como diz o ditado: o ótimo é inimigo do bom!

Do fundo da série C, o time não pode “sonhar” ser campeão da série A, mas pode trabalhar para subir à B. Para o Brasil, e muitos outros países, melhor reconhecer que longas marchas se fazem a partir dos primeiros passos e são condicionadas pelo terreno: contornar desfiladeiros costuma ser mais prudente e fácil que escalá-los.

Com esse reconhecimento, definir avanços que melhorem a qualidade de vida da população, em poucos anos. São tantos os aspectos a melhorar! Faltam-nos, porém, objetivos claros a alcançar. Num horizonte de quatro anos, quais metas são desejáveis e possíveis na educação, na saúde, na segurança, na higiene coletiva e noutros campos?

Deve ser tarefa dos candidatos a qualquer cargo propor tais avanços e sugerir o caminho para torná-los realidade. Aqui no Brasil, porém, quem pleiteia cargo parece crer que quanto mais vago for, mais chances terá de sucesso eleitoral! No rumo em que temos andado, a evidência sugere que quanto mais sucesso eleitoral menos avanços na qualidade de vida da população! E, dadas as restrições físicas do planeta e as implicações destas sobre os estilos de vida possíveis de serem construídos, quais reformulações propõem para a ideia de “desenvolvimento”?

Há mais de meio século Keynes sugeriu, como realidade possível no início do século XXI, uma jornada de trabalho semanal de quinze horas. Algum candidato tem ideia melhor, ou propõe um caminho para concretizar tal utopia, hoje possível e, para muitos, desejável?

Alerta

Os tempos que virão não serão fáceis. As demandas por justiça e dignidade seguem presentes. Iremos avançar com passos curtos, mas firmes. Nunca poderemos ter de novo um presidente que declare guerra ao seu próprio povo
Gabriel Boric, presidente eleito do Chile

Longa travessia

É raro um discurso de paraninfo entrar para a História. O de Joseph Brodsky, pronunciado num 18 de dezembro de 33 anos atrás para formandos da Universidade de Michigan, é uma dessas raridades. Fugindo do convencional roteiro de colorir o futuro que aguarda os jovens, o laureado poeta e ensaísta descreveu em tons pouco faiscantes o mundo adulto à espera dos alunos. Brodsky conhecia a vida: nascera na antiga União Soviética, fora condenado a trabalhos forçados com banimento de sua literatura, acusado de parasita social e posteriormente expulso do país. Num de seus ensaios mais pungentes (“A part of speech”, de 1977) descreveu como, gradualmente, perdeu cabelos, dentes, consoantes e verbos. Exilado nos Estados Unidos, teve de aprender a escrever e a ser em outra língua. Fez da dura travessia uma continuidade existencial. Mas conseguiu, a ponto de receber o Nobel de Literatura em 1987.

Naquele dezembro de 1988, falou sobre tempo e vida aos formandos de Ann Arbor. Em tradução livre, o parágrafo abaixo dá o tom do que Brodsky se preocupou em dizer:

— O mundo que vocês haverão de adentrar, e em que passarão a existir, não tem boa reputação. Seu desempenho geográfico tem sido melhor que o histórico; ele continua a ser muito mais atraente visualmente que do ponto de vista social. Vocês haverão de descobrir que tampouco o mundo é um lugar propriamente acolhedor; e tenho dúvidas de que será muito melhor quando vocês o deixarem. Ainda assim, é o único disponível, não existe alternativa... Lá fora é uma selva, também um deserto, um precipício escorregadio e um atoleiro — tanto no sentido literal quanto metafórico...


Brodsky recorre a outro poeta, Robert Frost, para indicar o caminho: “The only way out, always, is through” (a única saída, sempre, é através).

É o que se está fazendo no Brasil com assombroso estoicismo desde 2019, para conseguir atravessar o atoleiro bolsonarista. Tudo em nome de uma transição razoavelmente democrática e irrefutável com o resultado das urnas em 2022. Cada nova pesquisa de opinião aponta para uma clara repulsa nacional ao estilo selvagem, destrutivo, do presidente. A saída do atoleiro, contudo, está distante. Nos dez meses que faltam até o pleito, o amontoado de energúmenos que compõem o governo Bolsonaro ainda é capaz de gerar estragos múltiplos em série. Como se vê cotidianamente no assalto ao meio ambiente ou na mineração ilegal, no combate à vacina e ao bom senso da Anvisa, ou nos ataques à cultura e à imprensa, as porteiras continuam escancaradas. A questão é saber o que restará de pé até voltarmos a ser uma sociedade com algum prumo. Convém não esperar por soluções rápidas — em matéria de “mito”, o empulhador atual superou de longe outro inquilino do Alvorada, Fernando Collor de Mello, o “caçador de marajás” dos anos 90.

Diante do bolsonarismo sem freios, semana sim outra também, o país se acostumou a viver numa corda bamba entre o cinismo e a resignação. Assim como a esperança sem pensar crítico é mera ingenuidade, o pensar crítico sem esperança acaba desembocando em cinismo — e cinismo é do que o Brasil menos precisa, pois ele leva a um dar de ombros cúmplice àquilo que se está pretensamente condenando.

Tome-se como exemplo a cena dos funcionários e executivos da Caixa Econômica Federal fazendo flexões de braço sob comando do presidente da instituição, o bolsonarista voraz Pedro Duarte Guimarães. Microfone em mãos, de pé, o chefão fez contagem regressiva até dez enquanto seus subordinados arfavam no palco, e a plateia parecia achar graça. Era uma comemoração de fim de ano, e Guimarães complementou sua porção MC pedindo aos selecionados que também tentassem fazer “estrelinha”. Houve quem tentasse. Houve quem se esborrachasse. Qual a graça? Para o presidente da Caixa, agradar ao capitão Jair Bolsonaro, que adora testar virilidades em sessões de flexões.

De resto, a cena filmada pareceu não agradar a ninguém. Ainda assim, pelo que se viu, nenhum dos protagonistas involuntários refutou a ordem — é a resignação de quem não vê saída ou teme a companhia do desemprego. Segundo reportagem de Geralda Doca e Marcello Corrêa, Pedro Guimarães é conhecido por ter afastado uma batelada inteira de funcionários que ocupavam cargos em governos anteriores.

Para empreender a tenaz travessia recomendada por Brodsky, sem cinismo, cada um precisa escolher se quer desarrumar o mundo tal qual ele está ou se prefere fingir que dele não faz parte. Já ficou claro demais que o presidente se alimenta de crises fabricadas em busca de escape das crises reais. Ao contrário do ex-secretário de Estado Henry Kissinger, a quem é atribuído o bordão “Fica proibido novo abismo — minha agenda já está lotada”, Jair Bolsonaro pretende se reeleger em meio ao pântano que criou. A ver. Como exercício futurista, vale a pena acompanhar o resultado das eleições chilenas deste domingo.