segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Fake news, injúria e conspiração

Notícias falsas, injúrias, teorias da conspiração, quase todas as semanas, sobem ao topo da pauta política no Brasil.

Nas redes, muito se falou do ataque a Felipe Neto, depois de sua aparição no “New York Times” criticando o governo Bolsonaro. A velha acusação aos comunistas, comem criancinhas, ganhou uma versão atualizada contra Felipe.

No campo editorial, tive a oportunidade de ler “A máquina do ódio”, um livro de Patrícia Campos Mello sobre fake news e violência digital no mundo. Ela conta, entre outros casos, a carga injuriosa que sofreu quando denunciou manipulação digital nas eleições de 2018.

Nem sempre foi assim no Brasil. Nesses tristes momentos de tecnopopulismo, costumo dar uma olhada na bela coletânea intitulada “Duelos no serpentário”, coligida por Alexei Bueno e George Ermakoff.

Trata-se de uma antologia de polêmicas intelectuais no Brasil, de 1850 a 1950. Havia alguma ironia, insultos aqui e ali, mas eles passavam dias, noites, escrevendo suas teses, sob a luz de lamparinas. O problema era convencer com ideias.

A polêmica gramatical entre Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro sobre o texto do Código Civil, se impressa no conjunto, daria um livro de mil páginas, capaz de entediar gerações inteiras de estudantes. Houve polêmicas para definir se o cinema falado era melhor que o cinema mudo. Vinicius de Moraes participou dela.

Em relação a esse período da história, talvez tenhamos regredido às medievais canções de maldizer e escárnio. Ou, mais que isso, entramos num campo que só o estudo da injúria pode abarcar.

Jorge Luis Borges escreveu a bela “História universal da infâmia”. Nas suas obras completas é possível encontrar também algumas notas sobre a injúria, uma categoria específica de agressão.

É um texto curto, intitulado “Arte da injúria”. Segundo Borges, o agressor deverá saber, conforme advertem os policiais da Scotland Yard, que qualquer palavra que diga pode ser voltada contra ele.

O sonho dele, portanto, é ser invulnerável. Isso foi escrito na década dos 30, muito antes da internet, que trouxe o conforto do anonimato.

O roteiro da injúria em Borges passa pelas ruas de Buenos Aires. O agressor sempre adivinha a profissão da mãe dos outros e quer que mudem para um certo lugar que pode ter diferentes nomes. Em português, é possível conciliar os dois tipos de injúria enviando a pessoa para um lugar que, em linguagem amenizada, é a ponte que partiu.

Ao longo de sua análise, Borges descobre que, nas “Mil e uma noites”, célebre texto árabe, há um xingamento que se tornou popular: cão.

E chega aos que parecem mais sofisticados e certeiros como este: “Sua esposa, cavalheiro, sob o pretexto de trabalhar num prostíbulo, vende artigos de contrabando”.

Borges destaca também a injúria mais esplêndida feita por alguém que não tinha contato com a literatura. Ele descreve um homem chamado Santos Chocano, dessa maneira: “Os deuses não consentiram que Santos Chocano desonrasse o patíbulo, nele morrendo. Aí está vivo, depois de ter fatigado a infâmia”. O personagem me lembra um pouco velhos políticos que ganham uma espécie de pele de elefante depois de tantas pancadas pela vida afora. Cansam até o xingamento.

Mas os insultos contra as pessoas que têm outra atividade costumam ser devastadores para suas relações familiares, de amizade e a própria autoestima. Sou solidário com elas e desejaria ver algo na lei que acabasse com a invulnerabilidade do agressor.

Pessoalmente, não guardo ressentimentos, sobretudo agora nessa idade. Não me ameaçam de morte, simplesmente afirmam que já morri e não me dei conta. Decretaram minha morte em algum momento do passado e reclamam por não ter levado a sentença a sério.

A idade também protege um pouco contra a repetição do mantra “viado e maconheiro". A maconha restou com alguma vitalidade. Sempre que escrevo algo que lhes desagrada ou parece estapafúrdio, dizem que fumei maconha estragada.

Ainda bem que sou de paz. Poderia acusá-los de apologia às drogas. Se as ideias estapafúrdias e equivocadas são fruto de maconha estragada, isso significa que a de boa qualidade traz limpidez e justiça ao pensamento.

Não se discute mais como antigamente. E eles estão com um enorme estoque de cloroquina para se preocupar com outra droga.

Brasil da grande vala


Deus está sendo usado de maneira cruel pelos oportunistas

A banalização do conhecimento médico pelos não médicos e a vulgarização que leigos fazem do uso de medicamentos que conhecem por ouvir dizer, com base num senso comum eivado de distorções anticientíficas, são indícios significativos de nosso atraso cultural e mesmo social e político.

Não é raro que pessoas se automediquem pela associação de remédios que o vulgo define como “fortes”, os que “deram certo” no tratamento de doenças graves que não aquela do uso que lhe dão hoje. Ou os recomendem a outros.

Ainda nestes dias, a mídia noticiou que, no Sul do país, autoridades locais estão distribuindo medicamentos para combater a covid-19. Uma mistura de remédios que têm eficácia reconhecida em casos de outras doenças, mas cuja eficácia no caso de agora não se conhece.

O próprio presidente da República, apesar de contaminado pela covid-19 e de ter o diagnóstico da doença confirmado pela terceira vez, há dias insistiu em exibir-se aos manifestantes que o “apoiam”, em frente ao Palácio da Alvorada, com uma caixa de cloroquina nas mãos, medicamento não recomendado para o caso, mas que ele recomenda.

Entre nós, esse tipo de “sabedoria” é antigo. Para compreender o quanto há de atraso nesse voluntarismo do governante e de outras pessoas que o apoiam no proselitismo extracientífico, o quanto teimamos no atraso que já conhecemos e deploramos há muito, não posso deixar de citar a escritora paulista Teresa Margarida da Silva e Orta, nascida em 1711: “A arte de governar se acha com a prudência, se defende com a ciência e com a experiência se conserva”.

Poeta, romancista e pensadora iluminista, insurgente e desafiadora dos poderes, em nome da Razão, acabou presa num convento, em Portugal, durante sete anos, por ordem do Marquês de Pombal, privada da missa e dos sacramentos. Seria libertada pela rainha Dona Maria I, em 1777.

Numa outra reflexão, esclarece: “Se alguma vez erra quem se aconselha, raríssima vez acerta o que só pelo próprio juízo se governa”. E sem saber o que aconteceria no Brasil, mais de 200 anos depois de sua época e de seus escritos, recomendava: “Defendei mais a pátria que os parentes”.

Há enorme abismo entre persistentes concepções anticientíficas relativas à doença e à cura, na cabeça de toscos e de poderosos, no confronto com a lucidez de Teresa Margarida em sua “Obra Reunida”. Dolorosa evidência do que fizeram conosco e nós mesmos fizemos e continuamos a fazer para chegar a este novo tempo com uma visão das coisas e do mundo que é mera sobrevivência da barbárie.

Essas distorções deveriam ser levadas muito a sério. Seria interessante e útil que, nas ciências sociais, sociólogos e antropólogos realizassem pesquisas empíricas e objetivas sobre os fundamentos dessa espécie de ideologia retrógrada do que é doença e cura.

Aí temos de tudo. Desde a concepção de que a doença é um castigo divino que pune os crescentes pecados do homem, especialmente para que abra os olhos para os abusos e violações da vontade de Deus. Nela, as doenças sem cura são aquelas que Deus reserva para a invisível medicação de sua farmácia celestial e sua bondade seletiva.

Se bem observarmos, veremos que a dimensão medicinal da nova religiosidade fundamentalista se expande de modo geométrico na proporção igualmente geométrica da difusão de doenças desconhecidas ou mal conhecidas.

Na ideologia popular do que é o poder de Deus, usa Ele o castigo para chamar os homens à salvação. Algo difícil de compreender, como o de fazer-se mau para poder mostrar-se bom. Sem poupar mesmo os que se dizem terrivelmente cristãos.

Bem vistas as coisas, notaremos que o castigo da doença sem cura conhecida é instrumento muito eficaz de uma guerra ultraconservadora contra as grandes mudanças sociais do pós-guerra, especialmente dos últimos 50 anos.

O aumento significativo da liberdade pessoal de cada um, homens e mulheres, a emancipação da mulher, a profunda transformação no conceito de casamento e de família, a antecipação da maturidade das novas gerações, a libertação do discernimento de crianças e jovens, tudo isso fica reduzido à concepção de castigo pelo pecado da ruptura da ordem tradicional, conservadora e iníqua.

Deus está sendo usado, de maneira cruel, pelos oportunistas do mando e do autoritarismo para instituir uma nova sujeição social, em que as pessoas parecem livres, mas são de fato escravas de uma liberdade manipulável.

O novo homem é livre desde que se submeta ao estilo do mando antidemocrático que é o do autoritarismo dos micropoderes que estão em tudo, em todos e em todas as partes. Nesse sentido não é novo, é velho e antissocial, cúmplice das enfermidades que escancaram nossa pobreza de espírito.
José de Souza Martins

A política de guerra

Se a esquerda faz política demais, a direita por sua vez não sabe fazer política, não faz política nenhuma. Mas se ilude quem pensa que nosso presidente de direita, Jair Bolsonaro, se elegeu sem um programa claro, por puro prazer da aventura política contra a política, a antipolítica que ele tanto anunciou. Ele e sua turma nunca se interessaram pela política como modo de levar a sociedade em direção a uma agenda que corrigisse o passado e organizasse o futuro, não se prepararam para isso. Eles se prepararam para uma guerra e só pensam nela.

Uma guerra que só ainda não foi escancarada, fazendo mais vítimas e provocando mais tiroteios aleatórios e insanos, por causa da pandemia, por causa de um pequeno animalzinho, um quase nada, o vírus assassino que não permitiu que o bando de Bolsonaro assumisse o papel central de seu tempo. A guerra que programaram e pretendiam praticar é humanamente menor do que a calamidade pública provocada pela Covid-19.



Quem não se lembra das ameaças guerreiras feitas pouco antes de se tornar trágica a presença do vírus por aqui? Um dia, na televisão, Bolsonaro nos garantiu que tinha vencido a eleição de 2018 no primeiro turno e que, portanto, tinha sido roubado. O presidente afirmou que tinha provas disso e que ia mostrá-las à nação. Faz mais de oito meses que esse show passou na televisão... e cadê as provas? Quantas vezes ouvimos dele, de seus filhos e dos ministros mais queridos e alinhados, que haveria muito em breve uma ruptura inevitável, que não dava mais para suportar as perseguições dos outros Poderes ao Executivo? Quantas vezes ouvimos, desde há bastante tempo, expressões como “agora chega” ou “acabou” ou “não dá mais” ou coisa que o valha? Faz tempo que essas expressões de radicalidade começaram a ser usadas e, até agora, a guerra não passou de fuxico.

O Brasil tem hoje perto de cem mil vítimas fatais do coronavírus e mais de dois milhões e meio de infectados lutando contra a morte, fora os que não morreram mas se tornaram de alguma forma deficientes. Vemos todo dia, nos jornais, na televisão e nas redes sociais, as famílias feridas dessas vítimas, capazes de comover o mais endurecido dos corações. Menos os da turma dos Bolsonaros. Para eles, é tudo um exagero da “extrema imprensa”, o possível quase milhão de familiares enlutados tinham mais é que se conformar, pois todo mundo um dia morre. E daí?

Enquanto as vítimas e seus familiares têm a generosidade de pedir à população que não saia de casa, para que não morram mais brasileiros inutilmente, o presidente do Brasil, o principal responsável em última instância pelos cidadãos do país, manda invadir os hospitais para fotografar leitos vazios, a fim de provar que é tudo um exagero contra não sei quem. Aí o consórcio de imprensa, montado a partir das informações das secretarias de Saúde de cada estado, com a finalidade de neutralizar as mentiras que estavam sendo supostamente armadas pelo Ministério da Saúde para subestimar os números da crise e aliviar a responsabilidade do governo, impacta a nação com os verdadeiros números da tragédia.

Enquanto as famílias e os solidários a elas choram as vítimas da Covid-19, o presidente da República sorri feliz e sem máscara, abraçado a uma aglomeração no interior da Bahia, em cima de uma mula manca, fantasiado de caubói sertanejo, com um chapéu de falso couro de jagunço, inaugurando um bebedouro ornamental e vagabundo, mandado construir por outra responsável pela miséria do Brasil, Dilma Rousseff, numa região em que o povo morre, de verdade, de fome e de sede.

No meio da representação de sua farsa, Bolsonaro se explica, como um demônio sem compaixão, dizendo que está mesmo interessado é em salvar a economia do país, que está se dedicando a isso, certamente mais importante que os mortos inevitáveis. Pois bem, segundo o próprio IBGE, já foram fechadas, vítimas da pandemia, 522 mil empresas no Brasil. O que é que o governo fez por cada uma delas?

Bolsonaro não tem tempo de cuidar da economia dessas empresas porque seu pessoal está ocupado com a guerra. A meta bélica agora é acabar, a qualquer preço, com Felipe Neto, um jovem youtuber que, talvez sem se dar conta, também se preparou para ela e aprendeu a usar as redes sociais, alcançando mais de 60 milhões de seguidores. Para o bem do governo, Felipe Neto tem que ser destruído e está sendo perseguido com clássicas fake news imorais e incômodos pessoais, como o cerco no condomínio onde mora.

As mentiras hediondas, munição de uma guerra estúpida, estão fazendo de Felipe Neto um herói da resistência aos males que já foram e ainda serão feitos ao Brasil. Nunca tive a oportunidade de ver o influencer na internet, mas vou vê-lo logo e tratar de ser seu fã.

Mentiras e imoralidades ficam mais fáceis em um regime neofascista

Com um largo passo, afastamo-nos mais da democracia, dos nossos direitos civis e da vigência plena da Constituição. E como se isso não acontecesse ou, se percebido, não fosse importante. A falta de reação proporcional é tão grave quanto o passo a que fomos empurrados.

Todos os governos de índole fascista começam a torná-la realidade por três ou quatro medidas que tolhem a liberdade de discordância.

Uma dessas medidas clássicas da derrubada de democracias é a identificação, fichamento e vigilância sigilosa de reais ou potenciais opositores ao autoritarismo. Uma das primeiras providências do gorilismo de 1964, por exemplo, foi a criação do SNI, serviço de espionagem interna mais tarde chamado de monstro pelo próprio criador, o sinistro general Golbery.

Tem essa mesma finalidade a função atribuída à Seopi, Secretaria de Operações Integradas, pelo recém-ministro da Justiça,André Mendonça, não muito menos sinistro na sua fisionomia sem expressão.

As atuais revelações do ex-repórter especialíssimo da Folha e hoje encontrável em blog no UOL, Rubens Valente, partem de um dossiê da Seopi, datado de junho.

São os dados e às vezes fotos obtidos em sua “ação sigilosa sobre 579 servidores federais e estaduais de segurança, e três professores universitários, identificados como integrantes do ‘movimento antifascismo’”.

Título do dossiê: “Ações de Grupos Antifas e Policiais Antifascismo”. Antifas é como se denominam os adversários ativos do fascismo em qualquer das suas formas.

O título explicita, portanto, o propósito da ação e do dossiê contra os defensores do regime democrático em vigor, como são, no caso e por definição, os antifas e os policiais antifascismo. Logo, trata-se de uma ação, sob ordens do próprio ministro da Justiça, mais do que inconstitucional, contra a Constituição em seu teor e vigência.

A Constituição não admite ações ou pregação contra o regime nela formulado. Tem a sabedoria da prevenção. Porque o início contra servidores e alguns professores, se não recebe a reação proporcional e legal, será, logo, estendido a outras linhagens da cidadania. Se ainda não foi.

E os que têm o potencial e a obrigação de reagir, até como defesa de si mesmos, trataram o revelado avanço neofascista como mais um fato cotidiano. Sim, os de sempre, jornais e TV, juristas, advogados, professores, intelectuais, artistas, políticos democratas — os visados.

O confronto entre os dallagnois de Curitiba e o procurador-geral Augusto Aras teve a preferência, brigas têm mais sensação. Acusada de caixa de segredos, a Lava Jato rebateu com a afirmação de que os seus arquivos “são avaliados por diversos entes, incluindo toda a sociedade”. Se isso não fosse mentira, não haveria o choque público por recusa do compartilhamento de dados pretendido pela Procuradoria-Geral.

Os dallagnois explicaram ainda as 38 mil pessoas e empresas constantes no seu arquivo, motivo de suspeitas de Aras. São menções em relatórios do Coaf, órgão de alegado controle da Receita Federal, mandados à Lava Jato para verificar suspeitas de lavagem de dinheiro.

Mas a Lava Jato não tem poderes para se meter em buscas a granel das vidas financeiras de pessoas e empresas. Fazê-lo é mais um dos seus habituais abusos de poder.

Executor dos objetivos da Lava Jato, Sergio Moro defende-o: “A operação sempre foi transparente e teve suas decisões confirmadas pelos tribunais de segunda instância e também pelas cortes superiores”. Mentira também. Até a segunda instância no Tribunal Regional em Porto Alegre, ainda que a contragosto, derrubou decisões da parceria Moro/Dallagnol. Nas cortes superiores, Moro recorreu até a pedido de desculpa, para evitar vexame maior.

Mas não faltará um registro simpático: os generais do bolsonarismo são pais dedicados. E dedicados até a simples amigas. Buscam-lhes bons cargos no serviço público, apesar de não terem habilitação. Como a nova representante do Ministério da Saúde em Pernambuco, Paula Amorim, nomeada pelo mérito de ter “relação de amizade e confiança” com o general Eduardo Pazzuelo. Os generais falavam de imoralidade dos políticos.

Em regime neofacista as mentiras e as imoralidades ficam mais fáceis. Justifica-se, pois.

Por que os EUA têm os piores índices de pobreza do mundo desenvolvido

Este é um dos grandes paradoxos dos nossos tempos: os Estados Unidos, país mais rico do mundo, têm alguns dos piores índices de pobreza no grupo dos países desenvolvidos.

Mais de meio século depois que o presidente Lyndon B. Johnson declarou "guerra incondicional à pobreza", os EUA ainda não descobriram como vencê-la.

Desde a declaração de Johnson, em 1964, o país teve conquistas surpreendentes, como chegar à Lua ou gestar a internet. Entretanto, nesse período, conseguiu uma tímida redução no índice de pobreza, que caiu de 19% para cerca de 12%.

Isso significa que quase 40 milhões de americanos vivem abaixo da linha oficial de pobreza.

Milhares de famílias dependem da ajuda de bancos de alimentos
O problema é muito maior e mais antigo do que se vê na atual pandemia do novo coronavírus, que também vem revelando e intensificando questões sociais do país — os EUA têm o maior número de casos de covid-19 no mundo e agora enfrentam os piores níveis de desemprego desde a Grande Depressão de 1930.

Até hoje, segundo estudiosos, o aumento da pobreza foi contido nos EUA graças a uma expansão histórica de subsídios do governo.

Mesmo antes da crise na saúde, o país já destinava anualmente bilhões de dólares a programas de combate à pobreza, em quantias até maiores do que o Produto Interno Bruto (PIB) de alguns países da América Latina.

"Essa é a ironia: seria uma coisa se fôssemos um país pobre e realmente não pudéssemos fazer muito a respeito. Mas temos os recursos", diz Mark Rank, professor da Universidade de Washington em St. Louis, considerado um dos maiores especialistas em pobreza nos EUA, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Pesquisadores apontam para duas razões fundamentais por trás da pobreza nos Estados Unidos: uma tem a ver com simbologia e a outra é pragmaticamente econômica.

Primeiro, os EUA carecem de uma rede de assistência social forte ou programas de apoio à renda como outros países.

Os programas de assistência social que os Estados Unidos implementaram nas últimas décadas, como vale-alimentação ou seguro desemprego, permitiram reduzir em alguns pontos a pobreza, mas são considerados limitados.

Fatores culturais são geralmente lembrados para explicar isso.

"Nós tendemos a ver a pobreza nos EUA como um fracasso individual, ou seja, como se as pessoas não tivessem trabalhado duro o suficiente. Como se tivessem tomado decisões ruins ou não tivessem talento o suficiente. Assim, é algo como: cabe a você se erguer", afirma Rank.

"O resultado é que realmente não fazemos muito em termos de políticas sociais para tirar as pessoas da pobreza."

Somam-se a isso as desigualdades raciais: as minorias sofrem desproporcionalmente no país.

Enquanto 11% das crianças brancas nos EUA vivem na pobreza, essa taxa chega a 32% para crianças negras e 26% para crianças latinas, segundo dados do censo levantados pelo Centro de Dados Kids Count.

"A pobreza é frequentemente vista como um problema para os não-brancos, e isso também reduz a vontade de ajudar os outros", diz Rank.

"Existem estudos mostrando que em países mais homogêneos em termos de raça e etnia, existe uma rede de segurança mais robusta, porque as pessoas veem os outros como semelhantes — tendo maior probabilidade de querer ajudar."

Por outro lado, especialistas apontam para um fator econômico: a deterioração do mercado de trabalho americano para aqueles com salários mais baixos, que representam cerca de 40% do total e sofreram perdas em seus ganhos reais nas últimas décadas.

As razões vão do enfraquecimento dos sindicatos às transformações tecnológicas.

Assim, a desigualdade de renda e riqueza nos EUA aumentou e é maior do que em quase qualquer outro país desenvolvido, de acordo com o Council on Foreign Relations, um centro de pesquisas em Washington.

Christopher Wimer, codiretor do Centro de Pobreza e Política Social da Universidade de Columbia, argumenta que, nos EUA, "as oportunidades no mercado de trabalho tendem a ir para pessoas com formação superior e que se beneficiaram do crescimento econômico".

"E grande parte desse crescimento econômico não foi compartilhado nas faixas de renda ou escolaridade que vêm abaixo", contou à BBC News Mundo.

Mas houve sim, nas últimas décadas, alguns avanços sociais — como níveis mais altos de escolaridade e queda na mortalidade infantil.

Além disso, especialistas alertam que o cálculo do índice oficial de pobreza nos EUA se baseia apenas em renda, sem contar com auxílios do governo como créditos fiscais, cupons de alimentos ou assistência habitacional.

Um estudo recente de Wimer e outros pesquisadores de Columbia projetou que, sem ajuda emergencial aprovada na pandemia de coronavírus, a taxa de pobreza do país teria saltado de 12,5% antes da crise para 16,3%.

Mas esses benefícios, que incluem cheques semanais de US$ 600 a trabalhadores afetados pela pandemia, expiraram no final do mês. Sua continuidade depende de um acordo entre o Congresso e a Casa Branca.

Antes da covid-19, especialistas já alertavam que o país era condescendente com níveis muito altos de pobreza.

"Os Estados Unidos são um dos países mais ricos, poderosos e tecnologicamente inovadores do mundo. Mas nem sua riqueza, nem seu poder, nem sua tecnologia estão sendo usados ​​para resolver a situação em que 40 milhões de pessoas continuam vivendo na pobreza", indicou no final de 2017 o então relator especial das Nações Unidas para a pobreza extrema e direitos humanos, Philip Alston.

Entre outras coisas, Alston observou que os EUA tinham a maior mortalidade infantil no mundo desenvolvido, que a expectativa de vida de seus cidadãos era menor e menos saudável do que em outras democracias ricas.

E também que sua pobreza e desigualdade estavam entre as piores no clube dos países ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), além de uma taxa de encarceramento entre as mais altas do mundo.

"No fim das contas", afirmou ele, "particularmente em um país rico como os EUA, a persistência da pobreza extrema é uma escolha política feita pelos que estão no poder".

Luke Shaefer, diretor da iniciativa Poverty Solutions da Universidade de Michigan, defende políticas mais simples nos EUA e com uma abordagem mais universal.

Um estudo realizado por ele e outros especialistas da universidade indicou que os Estados Unidos investem US$ 278 bilhões (mais de R$ 1,4 trilhões) por ano em programas governamentais de combate à pobreza, sem contar os gastos com saúde.

Somando-se programas de saúde para os mais pobres, como o Medicaid, o investimento anual chega a US$ 857 bilhões (mais de R$ 4,4 trilhões), ou seja, mais do que o PIB da Argentina e do Chile somados.

"Muitos desses dólares não estão indo realmente para os mais pobres", alerta Shaefer.

As eleições presidenciais de novembro podem dar aos EUA uma nova oportunidade para repensar como melhorar esses gastos, acreditam aqueles que se dedicam ao tema há anos.

"Existem pessoas da esquerda e da direita falando que essa abordagem (atual) não está funcionando. Temos que fazer algumas coisas de maneira diferente, precisamos simplificar", diz ele.

"Tenho alguma esperança de que possamos progredir."