domingo, 4 de julho de 2021

Segredos de Maringá: Xadrez, dinheiro, Centrão e Barros

O escândalo da compra superfaturada da vacina da Covaxin, que explodiu semana passada na CPI da Covid, no Senado, nos depoimentos dos irmãos Miranda, e segue causando estragos – depois de passar por caminhos suspeitos que começam nos labirintos de Nova Delhi, entram por empresas fictícias ou de fachadas, em paraísos fiscais e intermediários cabulosos no Brasil, tomam gabinetes no Ministério da Saúde, até cair no colo do presidente Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto – joga foco também sobre a cidade paranaense de Maringá. O país descobre que o bucólico e progressista burgo sulista é berço político do líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, manda chuva nacional do Centrão e pivô de um dos mais maléficos casos de corrupção nos intestinos do Governo Federal, por envolver desvios vultosos de dinheiro da saúde pública, em tempo sombrio de pandemia, que já matou mais de 520 mil brasileiros.


Maringá é bem mais do que se mostra ao visitante em seu tradicional city-tour: A cidade planejada, super arborizada, detentora de um dos melhores índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país. Além disso, também é pólo submerso de transações empresariais, políticas e partidárias, de gente que atua nas sombras e opera tenebrosas negociatas, contratos e acordos com a marca do Centrão, principal grupo de sustentação atual do governo. Sempre com antena ligada para captar novos sinais do vento a favor, para aderir ao poderoso da vez em Brasília. É nos desvãos deste espaço cinzento – que se abrem ou se fecham negócios envolvendo o poder público em mistura espúria com interesses privados (a exemplo da compra da vacina da Covaxin) – que atua o chefe maior do grupo, filiado ao PP (uma das “grifes” políticas mais notórias da corrupção nacional nas últimas décadas), o deputado Barros, que todos os sinais e revelações conhecidos até aqui apontam como envolvido até o pescoço nesta escandalosa negociata. Segundo revelou o deputado Luiz Miranda (DEM-DF), que levou dados do malfeito ao presidente em seu gabinete, e ouviu dele: “Isso é coisa do Barros, esse…”.

O estuário da política e dos negócios de Ricardo Barros, sabe-se agora, é também a cidade onde o líder do governo cuida de seu bunker dos acordos e jogadas. Aí, ele mantém um tabuleiro de xadrez, de pedras em mármore verdes e brancas, cores da bandeira do Paraná, sobre a mesa de reuniões de seu escritório político, no centro histórico de Maringá, principal reduto do parlamentar, que já foi prefeito do lugar, transformado em feudo de seus familiares, sócios, cabos eleitorais e amigos.

“As peças estão sempre arrumadas como que aguardando o movimento inicial, e servem de testemunhas silenciosas das reuniões deste líder do Centrão com prefeitos, empresários, parlamentares e altos funcionários públicos, como aparece em fotos nas redes sociais”, relata o atento e competente repórter Gil Alessi, em reportagem do jornal espanhol El País. Tem mais, muito mais, mas ficamos por aqui, por enquanto, até por questão de espaço. Semana que vem está marcado o depoimento de Ricardo Barros na CPI, aguardado com grande expectativa de revelações por alguns, e evidente nervosismo e temor por outros, instalados no núcleo do poder federal. Quem sabe a nação ficará sabendo a função e significado de cada peça do tabuleiro em Maringá. A conferir.

A milícia da Covid informa:

A correnteza encontra o seu leito natural. Espera de dois anos e meio, só toleráveis pelo acúmulo de certezas e comprovações que conduzem a correnteza para percursos legítimos, menos incivilizados, convincentes —o que golpes não oferecem.

"As instituições estão funcionando", diziam, e não era verdade. Por si mesmas, instituições não funcionam, nem se imobilizam. O que as move e lhes dá funcionamento coerente com seus meios e fins, ou os contrariam, são os seus ocupantes por direito ou privilégio.

A ministra Rosa Weber —uma garantia de integridade— submete Jair Bolsonaro à investigação que pode refazer a dignidade nacional. O Supremo Tribunal Federal, por maioria dos ministros, está reconhecendo as suas responsabilidades e dando-lhes vida. Chama o procurador-geral da República a comportamento decente, conduz com eficácia inquéritos sobre manifestações antidemocráticas, redes de desinformação/difamação e seus financiadores no empresariado.


Contribui para o andamento da CPI da Covid em passos legais. Faz pressentir a disposição de examinar, para valer, a conduta do ocupante da Presidência. Tudo à parte do aparente procurador-geral.

Augusto Aras desfez-se cedo de sua autoridade moral. É exemplar da dependência que o funcionamento das instituições tem. Seu desempenho é faccioso e imoral. Característica que o candidata a novo mandato para mais serviços desavergonhados a Bolsonaro e ao bolsonarismo. Se reconduzido, um movimento de resistência dos procuradores será tão necessário quanto justificado. E exigido pelos fatos como esperado pela população não fanatizada.

Gente de esquerda e gente de direita experimenta o entendimento no repúdio a Bolsonaro. Na Câmara, 11 partidos enfrentam a chantagem da adoção de voto impresso ou convulsão.

No Senado, até agora a CPI é o mais importante acontecimento não natural desde a posse de Bolsonaro. Comparável, com qualidade inversa, só à entrega do Ministério da Saúde à execução de meio milhão (por ora) de vidas brasileiras indefesas. Os fatos em apuração pela CPI foram agora levados ao encontro de sua origem e fins. Da verdade por trás de Bolsonaro: a corrupção.

O crime de desmatamento e o contrabando de madeira movem muito dinheiro, aqui e fora. Bolsonaro veio proporcionar-lhes proteção contra ações repressivas. De graça? O garimpo ilegal e a extração clandestina de minerais preciosos movem fortunas imensas. Bolsonaro veio lhes assegurar o afastamento dos obstáculos legais e a tranquila exploração em reservas indígenas. De graça? Com o controle dos recursos policiais e militares, completado pela ação corrosiva de marginais como Ricardo Salles, o projeto Bolsonaro não foi investigado e exposto.

A CPI inaugura a rota: descobre a milícia da Covid. A rede de patifarias que recusou vacinas e esbanjou dinheiro público em cloroquina, vista como expressão do negacionismo ideológico-religioso, teve a mesma sede e as principais figuras da gigantesca falcatrua construída, e já engatilhada, para compra de vacina Covaxin com o mais alto custo por dose.

Bolsonaro ainda diz que "não pode saber o que se passa dentro dos ministérios". No dia 22 de abril de 2020, naquela pornológica reunião ministerial, Bolsonaro gabou-se não só de ter um serviço de informação próprio, como de ser muito superior aos serviços oficiais. Em eventual falha desse FBI particular, saberia da trama o filho Flávio, de comprovada ligação com operadores da falcatrua bilionária. E, para dispensar mais citações indiciais, o próprio Bolsonaro documentou sua presença no que chamou de rolo. É bem clara a carta que mandou ao premiê da Índia para apressar a compra --já apressada aqui, com burlas também na tramitação e nas exigências técnicas.

Era um general. Acusado de incompetência e algumas condutas culposas. Já são o general, um tenente-coronel e dois coronéis no front do caso Covaxin. Sem contar os também militares que tomaram providências no Planalto, com o mesmo fim. E há mais no Ministério da Saúde.

Os militares que forçaram o resultado eleitoral e os do governo já podem iniciar a contabilidade do que o Exército não ganhou e o que perdeu, identificado, por intermédio deles, com Bolsonaro e seus feitos.

Mais um crime de Bolsonaro

Jair Bolsonaro prevaricou. Sabia das irregularidades envolvendo a compra da vacina indiana Covaxin pelo menos desde o dia 20 de março, talvez antes. Mas só depois de um vexaminoso puxão de orelha da ministra do STF Rosa Weber, a Procuradoria-Geral da República se coçou e pediu a abertura de inquérito contra o presidente. Preferia não fazê-lo, repetindo a omissão deliberada que tem caracterizado sua atuação desde que Augusto Aras chegou por lá.

No avesso das atribuições do Ministério Público – “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” -, a PGR tem se primado pelas vistas grossas a qualquer delito que passe perto de Bolsonaro, sua prole e os queridinhos do governo. Foi assim diante da participação do presidente em atos antidemocráticos e na investigação das fake news que militantes, o próprio Bolsonaro e seus zeros espalham. Esfriou as investigações sobre o envolvimento do ex-ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles com madeireiros e finge desconhecer as pregações diárias contra a legitimidade do voto e as ameaças de ruptura caso a cédula não seja impressa. Não move um dedo para impedir que Bolsonaro continue na sua cruzada em favor da disseminação do vírus.

A Procuradoria-Geral já havia sido instada a se pronunciar quanto à conduta do presidente na pandemia, sua pregação contra o distanciamento social e o uso de máscaras, incentivando, com seu comportamento pessoal, práticas que provocam danos coletivos, contágio e até morte. Negou-se a dar qualquer providência. Nada fez também quanto ao famigerado tratamento precoce, comprovadamente ineficaz, mas com o condão de levar milhares de brasileiros a crer na falsa cura e se infectar.


Diante de mais de meio milhão de mortes, a instituição, se séria fosse, nem precisaria ter motivação externa – e foram várias, incluindo uma por genocídio. Com fartura de provas, a começar pelas falas do presidente, deveria ter a iniciativa de abrir procedimentos. Mas optou por defender “Bolsonaro versus o Povo”, invertendo a lógica que deveria inspirar o Ministério Público.

Pressionada por Rosa Weber, a PGR voltou atrás na decisão inicial de só investigar o presidente no caso Covaxin depois da conclusão da CPI da Pandemia. Na sexta-feira, se viu forçada a solicitar ao STF a abertura de inquérito contra Bolsonaro, obtendo deferimento no mesmo dia. A prontidão da ministra não surpreende, vista a marca de diligência que construiu ao longo dos anos. Já a reação célere da PGR causa estranheza pelo histórico de inação diante de casos envolvendo o presidente.

A rapidez talvez se explique pela certeza de que esse inquérito pode empacar como o outro que corre no STF contra Bolsonaro – e pelos mesmos motivos. No ano passado, o presidente foi denunciado pela tentativa de intervir na Polícia Federal, ato exposto em áudio e vídeo da reunião ministerial de abril, a mesma da passagem da boiada defendida por Salles. A ação está parada porque o Supremo ainda não decidiu se o presidente tem de depor presencialmente ou se a ele é dada a deferência de fazê-lo por escrito. Mirando nesse (mau) exemplo, a PGR já adiantou que pretende ouvir Bolsonaro. Terá, portanto, de aguardar o pronunciamento do STF, previsto para setembro, para saber se de viva voz ou não. Um tic-tac de 90 dias que coincide com o prazo auto-estabelecido pela Procuradoria para a apuração dos fatos.

Mas o pior está por vir. Para além da prevaricação, a abertura de inquéritos sobre o que a CPI já colheu – opção do governo Bolsonaro pela imunidade de rebanho via contaminação em massa (mesmo ao custo de milhares de vidas), estímulo ao uso de medicamentos ineficazes, demonização do isolamento social e da máscara, atraso na aquisição de vacinas – também depende da turma de Aras. Ou de uma ação política poderosa capaz de fazer o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL) dar sequência a pelo menos um dos 120 pedidos de impedimento que dormem na sua gaveta.

Difícil imaginar que Aras, cuja indicação para o STF ou para renovar o mandato fala mais alto, muito menos Lira, chefe da trupe do “quanto mais o governo se enrolar mais caro vamos cobrar”, farão algo em favor do país. Para qualquer lado que se olhe, só as ruas, na direção do impeachment ou das urnas, podem restabelecer “O Povo versus Bolsonaro”.

Pensamento do Dia

 


Uma milícia de picaretas

A vacina com pixuleco de um dólar humilha um país onde já morreram mais de 500 mil pessoas e, entre os vivos, há 14,8 milhões de desempregados. Passados dois anos da promessa de uma “nova política” com Jair Bolsonaro, chegou-se a algo muito pior. Sabia-se que as tais “bancadas temáticas” que dariam suporte ao governo eram uma fantasia, prima do nióbio, do grafeno e da cloroquina. Tudo acabou nas mãos do Centrão, reforçado pelo primarismo das milícias.

Nenhum dos picaretas que atacou a bolsa da Viúva equiparou-se ao cabo da PM mineira Luiz Paulo Dominguetti Pereira. Ele denunciou que Roberto Ferreira Dias, o então diretor de logística do Ministério da Saúde, pediu-lhe um pixuleco de um dólar para cada unidade da vacina da Oxford/AstraZeneca numa encomenda de 400 milhões de unidades.

A um dólar por vacina o pixuleco seria de 400 milhões de dólares. Isso não existe, como não existe um rato de 400 toneladas. Na tarde de quinta-feira o senador Tasso Jereissati, com sua experiência de empresário bem-sucedido, demonstrou que o laboratório AstraZeneca não teria como entrar numa operação desse tipo. Se isso fosse pouco, a empresa nunca teria capacidade para fornecer 400 milhões de vacinas a quem quer que seja.


Num governo normal, o cabo Dominguetti seria desqualificado como um simples Napoleão de hospício, mas o de Bolsonaro não é um governo normal. Nele, os Napoleões internam o diretor do manicômio.

Em dezembro do ano passado, o coronel Elcio Franco, com seu brochinho de punhal ensanguentado, disse que o governador João Doria sonhava acordado ao prometer vacinas para janeiro: “Não brinque com a esperança de milhares de brasileiros. Não venda sonhos”. No dia 17 de janeiro a enfermeira Mônica Calazans recebeu a primeira dose da vacina CoronaVac, aquela que Bolsonaro garantia que não seria comprada.

Um mês depois da vacinação de Mônica Calazans, o cabo Dominguetti encontrou-se com Dias num restaurante de Brasília. Ele estava acompanhado pelo seu assessor, o coronel da reserva Marcelo Blanco, um dos 21 militares da ativa e da reserva que escoltavam o general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde.

Em março, ao deixar o cargo, o próprio Pazuello denunciou “a liderança política que nós temos hoje”. Atribuiu sua queda a um grupo de “oito atores (...) um grupo interno nosso” que “tentou empurrar uma pseudonota técnica que nos colocaria em extrema vulnerabilidade, querendo que aquele medicamento, a partir dali, estivesse com critérios técnicos do ministério, e ele (o medicamento) não tinha”.

O general deixou o ministério, subiu no carro de som de Bolsonaro e hoje está no Palácio do Planalto. Nunca explicou quem eram os oito, nem qual era o medicamento.

Três dias antes do jantar com o cabo Dominguetti, o tenente-coronel Blanco, assessor do então diretor de logística do Ministério da Saúde, abriu a empresa Valorem Consultoria em Gestão Empresarial. Já o diretor Roberto Dias estava com a cabeça a prêmio, pois Pazuello havia decidido demiti-lo, mas o senador Davi Alcolumbre segurou a lâmina na Casa Civil da Presidência. A mesma lâmina que meses depois cortaria o pescoço da médica infectologista Luana Araújo, nomeada pelo ministro Marcelo Queiroga para a Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19. Ela não merecia a confiança do governo, pois condenara o uso de drogas milagrosas.

O cabo Dominguetti operou a compra de vacinas vindo do andar de baixo.

Pelo andar de cima conhecem-se duas operações. Uma veio da autodeclarada Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas. Ela trabalhava com a Covaxin indiana, representada por Francisco Maximiano, o Max.

No braço da Oxford/AstraZeneca, que reiteraria nada ter a ver com a proposta, notáveis operadores tentaram, sem sucesso, formar um consórcio de empresas que trariam ao Brasil 33 milhões de vacinas. Como no caso dos 400 milhões de Dominguetti, ofereciam uma produção que a empresa não seria capaz de produzir.

Essa operação teve a simpatia de Fabio Wajngarten, então secretário de Comunicação do governo, do diretor jurídico do grupo Gerdau e do doutor Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias de São Paulo. Skaf desmentiu que tivesse perfilhado a proposta e ela sumiu na orfandade.

A dose da AstraZeneca do cabo custaria US$ 3,5 (sem contar o dólar do pixuleco). A do andar de cima sairia por US$ 23,79. Ainda não se conhece ainda a identidade do operador dessa proposta.

Enquanto toda sorte de espertalhões que tentavam atravessar contratos de vacinas e os çábios do governo obstruíam negociações com a Pfizer, foi o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, quem desemperrou as conversas.

Não disse uma palavra antes, durante, nem depois.

Os bárbaros mandam notícias

A primeira coisa que ouvi foi que ela era louca. Comportava-se como louca. Fiquei pensando, doidice faz isso? Quem tem alteração nas faculdades mentais age assim? A noção compartilhada por muitos é que, se alguém tem atitude desarrazoada, a bradar desaforos, sem respeito pelos outros, é sinal de loucura.

Louco ou louca não fica por aí agredindo a dignidade das pessoas, tentando desqualificar, humilhar o próximo. Foi o caso daquela mulher. De louca, não tinha nada. Doente mental não é racista. Quem se comporta com essa característica é criminoso, perigoso, inviável. Não podemos negar nem relativizar as questões: aquela mulher era – e continua sendo – um exemplar da barbárie dos nossos dias.

Na manhã de quarta-feira, uma senhora que se auto-identificou aos gritos, mas cujo nome não será citado, entrou descontrolada numa agência bancária de João Pessoa (PB), dizendo ofensas racistas contra um funcionário. Ela se postou diante da câmera da sala e esbravejou coisas indescritíveis, chocantes de ouvir. E espumava:

– Eu sou a maior racista do planeta. Tenho orgulho de ser!

Ela se enxerga como racista, declara-se como racista e tem orgulho de ser racista. Ao ser contida por seguranças, a não-louca-porém-criminosa foi conduzida à delegacia, juntamente com a pessoa que recebeu as ofensas. Depois, o vídeo foi parar nas redes sociais. Algumas pessoas que o assistiam, certamente sem saber como classificar aquela selvageria, diziam que a atitude era coisa de uma louca. Louca, não. Respeitemos ou loucos.

Vivemos tempos terríveis, com a sociedade assumindo, sem constrangimento, o processo de desumanização. A cena, que ocorreu na Paraíba mas poderia ter sido em qualquer lugar deste País, não é novidade alguma e mesmo assim ilustra os nossos dias mofados pelas faltas de ética individual, de políticas sérias e de leis eficazes.

Eu fico me perguntando, o que leva uma pessoa a se achar no direto de negar o valor humano da outra? Que deformação é essa que abre espaço para uma mulher como aquela a pensar e a julgar, segundo os próprios critérios, que outra pessoa, somente por causa da cor da pele, é menos digna da vida do que ela? O que permite alguém achar que a outra, por ser negra, é merecedora da humilhação, da opressão, da exploração?

Dizem que uma das diferenças entre o animal e o humano é a capacidade de o racional ser diabólico e cruel. Nas atitudes e palavras. Somente o humano é capaz de fazer uso do mal como projeto. Ou seja, de ser bárbaro. Assim caminha a humanidade: a extrema direita passa de um estágio para o outro, com aptidão. Evolui a olhos vistos.

 Cícero Belmar

Engasgos e soluços

“...un nobre potrillo que justo
en la raya afloja al llegar”
Carlos Gardel

Em 1958, quando publicou seu clássico Os Donos do Poder, Raymundo Faoro apresentou-nos uma tese deveras preocupante: a de que, desde os tempos coloniais, um “patronato político” se apropriara do Estado, apagando praticamente a distinção entre o público e o privado.

Curioso é que tal tese, por mais preocupante que fosse, permitia duas interpretações diametralmente opostas. Uma, pessimista, sugeria que tal sistema de domínio, o chamado patrimonialismo, fincara raízes profundas, a ponto de ninguém descortinar um caminho para a sua erradicação. Essa vertente sugeria que, do ponto de vista político, nossa melhor chance seria chegar a uma fachada democrática, atrás da qual o patronato prosseguiria com seus negócios; economicamente, estaríamos condenados ao mesmo grau de mediocridade, uma vez que tal sistema jamais permitiria uma transição efetiva para o capitalismo nem a opção para um totalitarismo dinâmico, como o da China atual. Na vertente otimista, asseverava-se que o patrimonialismo não resistiria ao crescimento econômico, à urbanização, à crescente intensidade da competição política – à modernização, enfim.

Retomando a questão original, a que conclusão chegaríamos hoje? Atrevo-me a afirmar que o cenário pessimista não só prevaleceu, como se tornou muito pior do que o concebido por Faoro. Não levo essa afirmação ao extremo de contestar que avançamos bastante na construção da democracia, tese que defendo em meu livro Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira, cuja segunda edição está no prelo. Parece-me, porém, certo que não logramos o mesmo índice de progresso em termos econômicos, sociais e educacionais. E mais certo ainda que a estagnação econômica e a degradação institucional das últimas duas décadas já ameaçam seriamente as próprias conquistas democráticas. Para substanciar essa avaliação, nossa renda anual per capita e nossos índices educacionais são mais que suficientes.


O gosto pelos eufemismos leva-nos a empregar termos como estagnação, cenário preocupante e análogos, mas o buraco é bem mais embaixo. O que estamos vendo, desde muito antes da pandemia, é um abismo profundo, ou um colossal retrocesso, como queiram. Nesse sentido, limito-me a sublinhar um fato. Com dez minutos de reflexão, qualquer cidadão é capaz de discorrer com propriedade sobre as consequências de uma radicalização entre Lula e Bolsonaro – ou da vitória de qualquer um dos dois – na eleição presidencial de 2022.

Para bem entender a hipótese do retrocesso, penso que dois importantes fatores precisam ser levados em conta. Primeiro, nossa cultura política, que sempre teve dezenas de defeitos, submergiu em mais alguns que nós, por indiferença, medo ou hipocrisia, não nos dispomos a discutir. Éramos atrasados, mas não éramos boçais. Como sociedade, nunca chegamos ao convívio pacífico e fraternal que os acólitos da ditadura Vargas tentavam nos vender como mercadoria valiosa, mas tampouco chegávamos sequer perto do radicalismo grosseiro que se configurou plenamente a partir da eleição de 2018. E aqui preciso suscitar o segundo fator novo a que acima me referi. Essa aceitação preguiçosa da realidade de um país em decomposição explica-se sobretudo pela inexistência, entre nós, de uma elite digna do nome, quero dizer, no sentido sério do termo.

A reversão do cenário pessimista que tentei delinear nos parágrafos precedentes exige a superação do patrimonialismo e, portanto, o robustecimento do setor privado da economia, e respeito pelas instituições democráticas e pela esfera pública, valores que não estão à vista. Essa revolução – sim, porque essa é a revolução de que necessitamos – requer o fortalecimento, dentro da elite, de uma parcela efetivamente voltada para o bem comum, expressão antiga, mas ainda útil. Um pedaço ao menos de uma elite orientada por objetivos públicos, e não “amigos do rei”, voltados para a obtenção de vantagens pessoais e para o favorecimento de grupos privados.

Justiça seja feita, um embrião de uma elite desse tipo existiu em vários momentos de nossa História, e existe ainda hoje, mas ela permanece exígua em relação ao conjunto. Permanece e permanecerá exígua enquanto a parte maior se deixar pautar pela indiferença, pelo medo e pela hipocrisia.

Esse é o quadro com que nos deparamos quando examinamos o funcionamento do nosso sistema político, expressão que compreende os três Poderes, as empresas estatais e toda a miríade de organizações que gravita em torno deles. Refazê-lo de alto a baixo tem de ser o alfa e o ômega de uma verdadeira reforma política do País.

Desde os tempos de Faoro, quando esperávamos a debilitação do tosco patrimonialismo de origem portuguesa, o que vimos foi a transformação dele numa grande máquina corporativista e corrupta, perpetuando a subjugação do País por interesses exclusivistas. A manter-se tal engrenagem, o que gostaríamos de chamar de desenvolvimento sustentável será apenas a mesma interminável série de engasgos e soluços que temos testemunhado desde pelo menos a 2.ª Guerra Mundial.

Fim às bastardas

Filhas bastardas do egoísmo e da avidez, as chamadas “elites” brasileiras não estão preparadas para a ética, o bom senso e a moralidade. É inútil tentar consertá-las. Mas como livrar-se delas? 
Joel Silveira, “Guerrilha noturna”

O legado da barbárie

O legado do desgoverno de Bolsonaro não se limitará às milhares de vidas perdidas pela falta de uma política decente de combate à pandemia, às florestas criminosamente devastadas ou à violência contra povos indígenas sob o auspício das autoridades constituídas; nem mesmo se restringirá à degradação de serviços públicos essenciais, obstruindo nosso processo de desenvolvimento econômico e social.

A absoluta falta de postura do presidente também se projetará sobre a própria disposição dos brasileiros de respeitarem a lei e os direitos dos outros. Não me refiro apenas à longa lista de alegados crimes de responsabilidade, que têm sido sistematicamente objeto de pedidos de impeachment, de denúncias de crimes comuns que começam a ser investigados pela Procuradoria-Geral da República, ou de eventuais crimes contra a humanidade sob escrutínio de tribunais internacionais.


Falo de condutas mais corriqueiras que expressam uma espécie de obstinação do presidente em demonstrar que não aceita se submeter à regra da lei, como não usar capacete, trafegar do lado de fora do veículo, aglomerar ou não usar máscara. Nenhuma dessas atitudes que simbolizam sua insubordinação ao direito se equiparam, no entanto, ao gesto do presidente de abaixar, com um sorriso escancarado, a máscara de uma criança, em meio a uma pandemia que já ceifou mais de meio milhão de vidas, numa atitude ao mesmo tempo negligente e de clara exploração política daquela criança.

Como dispõe o código moral mais básico da maioria das pessoas, incorporado pelo artigo 227 da Constituição Federal, crianças devem ser objeto de um cuidado especial por parte de todos, devendo ser colocadas a salvo de toda forma de negligência ou exploração. Ao abaixar a máscara de uma criança, profanando esse código moral elementar, o presidente demonstrou não apenas seu desprezo pela lei, mas também pelo outro, como sujeito de direito, mesmo que seja uma criança.

Convido a leitora e o leitor a pensar nas consequências desse tipo de conduta sobre nossa capacidade de viver sob o governo das leis, pelo qual autoridades e cidadãos se dispõem a pautar as suas condutas e resolver os seus conflitos com base no direito.

Múltiplos são os fatores que contribuem para que os cidadãos se submetam à autoridade do direito. Entre esses fatores, certamente, está o da disposição de adultos e autoridades de respeitar as leis, os direitos e os compromissos que eles mesmos estabeleceram para regular o próprio comportamento.

Somente a partir do momento em que os cidadãos tenham confirmadas as suas expectativas de que as autoridades respeitam direitos e compromissos estabelecidos pela lei, tenderão a reciprocamente respeitar as leis e os direitos dos outros. Isso é particularmente relevante para a educação das novas gerações.

A insistência dos governantes de plantão de explicitar, às escâncaras, o seu desprezo pelos direitos de grupos vulneráveis e pelos limites estabelecidos pelo Estado de Direito terá um efeito devastador sobre a disposição dos demais membros da comunidade em se comportar de acordo com o império da lei. Pior do que isso, servirá de incentivo ao oportunismo e mesmo à delinquência como padrões de comportamento a serem normalizados.

Reverter esse legado da barbárie é o desafio imediato de nossas instituições e, no limiar, do eleitor de 2022.

Vacina, impeachment, genocídio e, agora, corrupção animam as ruas

Por que o governo do presidente Jair Bolsonaro emprega tantos militares (quase sete mil), a maioria em lugares antes reservados a civis pelos próprios governos da ditadura de 64?

A justificativa oficial é de que os militares são tão capazes quanto os civis. Pode ser, mas como a comparação dispensa exames para atestar sua veracidade, tome-se isso como mera opinião.

O mais provável é que Bolsonaro militarizou seu governo com a pretensão de tornar-se “imbrochável, imorrível e incomível”, como disse um dia. Acrescente-se: inderrubável.

Como dono de um vocabulário primário e raso, tais expressões, ausentes de ilustres dicionários, são contribuições que ele dá para enriquecer a língua portuguesa.

A quantidade recorde de militares foi a maneira que Bolsonaro encontrou de retribuir o apoio que recebeu deles para eleger-se presidente. Essa história está à espera de ser bem contada.


Foi vista também por muitos civis como o modo de os militares voltarem legitimamente ao poder, de onde saíram pelas portas dos fundos quando a ditadura se esgotou em 1985.

De resto, ocupando posições de destaque, os militares poderiam controlar de perto o ex-capitão indisciplinado que eles mesmos afastaram do Exército por conduta antiética.

Falharam na missão. É o ex-capitão que os controla, demitindo ou calando os que o contrariam e estimulando generais, quando acha conveniente, a rasgarem os regulamentos militares.

A compra de vacinas a preço superfaturado trincou de vez a narrativa veladamente cultivada dentro dos quartéis de que os militares são também mais patriotas e honestos do que os civis.

O general Eduardo Pazuello não saiu do Ministério da Saúde porque recusou-se a pagar “pixulé” a políticos que o assediavam por mais verbas para seus redutos eleitorais e seus bolsos.

Saiu porque a pandemia se espalhara a tal ponto que alguma cabeça teria de ser entregue para salvar a cabeça do presidente, sócio do coronavírus e responsável pelo avanço da doença.

Agora, os militares que Pazuello levou para o ministério, e que ficaram por lá, estão encrencados com a roubalheira que só veio à luz porque um deputado bolsonarista decidiu denunciá-la.

Não o fez por amor ao país acima de tudo, só abaixo de Deus. Mas por amor ao irmão, servidor do ministério, exonerado por discordar da maracutaia que estava em curso.

A ação do deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) reverteu a exoneração do irmão, mas empurrou Bolsonaro para uma sinuca de bico: como defender-se sem sacrificar ex-colegas de farda?

É por isso que, em pouco mais de 10 dias, o governo já ofereceu pelo menos três versões diferentes para o que possa ter acontecido nos porões do ministério. É por isso que Bolsonaro está calado.

Quem, como ele, no passado, dizia, em tom desafiador, “Me chama de corrupto”, convencido de que a pecha jamais colaria em si, hoje começa a ser chamado de corrupto por ruidosas multidões.

Mais vacinas, impeachment, Bolsonaro genocida foram slogans que alimentaram as duas manifestações de rua anteriores contra o governo. A de ontem deu passagem à acusação de corrupção.

A voz do bolsonarismo nas redes sociais está confusa e fraca. Como defender seu guia sem jogar a culpa no líder do governo na Câmara Ricardo Barros (PP-PR) e nos militares da tropa de Pazuello?

Como defendê-lo se, de uma hora para outra, poderá surgir a vacina na cueca, quer dizer, o áudio onde Bolsonaro prometeu ao deputado Miranda que investigaria a denúncia e não investigou?

Forçada pelo Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria-Geral da República abriu inquérito contra Bolsonaro por suspeita de prevaricação. Ao fim e ao cabo, ele não será denunciado.