sexta-feira, 7 de março de 2025
'Capitães da Areia' continua a retratar o Brasil, 88 anos depois
O livro "Sobre o Romance Social: Ideologia e Significação em Capitães da Areia", de autoria de Leandro Lima Ribeiro, mestre em Linguística e Semiótica, lançado no final de 2024, analisa a linguagem e os significados da obra Capitães da Areia, de Jorge Amado, publicada em 1937. Segundo Ribeiro, o Brasil vive uma realidade muito semelhante à década de 1930 por conta da ascensão da extrema direita. Em sua obra, Jorge Amado conta a história de um grupo de crianças que morava em um trapiche e vivia pelas ruas de Salvador. “A partir daquele contexto que a gente vivia durante a pandemia [de 2020], de muitas pessoas em situação de rua, que chegaram até mesmo a falecer, eu pensei por que não trazer Capitães da Areia para os dias de hoje e entender ele a partir dos mesmos problemas que o Jorge Amado aponta em 1930, que continuam escancarados?”, diz Leandro Ribeiro.
De acordo com o pesquisador, por muito tempo, o romance foi ignorado pelo meio acadêmico, que considerava que seu viés político-partidário era mais importante do que a estética do texto e que, por isso, era uma literatura panfletária e de baixa qualidade. Já Leandro Ribeiro explora essa linguagem que se dizia ser desimportante: “a gente, obviamente, não desconsidera a ideologia, mas a nossa preocupação é compreender a semiótica, a significação e sua importância”, explica.
A narrativa de Jorge Amado traz trechos de jornais fictícios para representar a opinião da elite de Salvador, que dizia que os garotos eram “meninos assaltantes e ladrões que infestam nossa urbe”, segundo escrito na obra. Jorge Amado produz seu romance em um sentido contrário, colocando as crianças como sujeitos políticos, em mazela e abandonados, lutando por sua sobrevivência. Logo após o lançamento de Capitães da Areia, centenas de exemplares do livro foram queimados em praça pública pela Comissão de Busca e Apreensão de Livros da ditadura do Estado Novo, acusados de serem “propagadores do credo comunista”, como publicou o Jornal da Bahia.
- Acho [Capitães da Areia] uma obra que representa bem o Brasil da década de 1930 e o de hoje. A nossa configuração atual é muito parecida, porque a gente vê uma guinada da extrema direita adentrando os espaços, essas visões retrógradas. Ninguém pode ser diferente, todo mundo tem que seguir uma agenda moral e civilizatória à risca, e o que diverge disso, é sancionado.
Leandro Ribeiro defendeu o mestrado em Semiótica e Linguística Geral em 2022, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Agora, está no programa de doutorado na mesma área e com o mesmo orientador, Antônio Vicente Pietroforte. O pesquisador estuda, atualmente, a carnavalização da linguagem.
O estudo de Leandro explora as ideias e os papéis sociais em Capitães da Areia, que se apresentam de maneira oposta ao senso comum. O conceito de liberdade das crianças, por exemplo, não está relacionado com bens materiais, mas sim com a liberdade das ruas e com o poder de se esquivar das normas sociais. O especialista chama isso de carnavalização da linguagem, “que é a ótica do reverso. As dicotomias que a nossa cultura judaico-cristã nos impõe, como bom e mal, Deus e demônio, céu e inferno, é tudo ao reverso. Não existe só céu e inferno. Por que não pensar em um terceiro termo, em um outro modo de ser?”. De acordo com o especialista, o carnaval não está apenas nas festas, mas também na cultura brasileira, nas obras e nas expressões artísticas.
Outra questão que o pesquisador apresenta é a semântica de Exu, que explica como os capitães da areia são vistos pelos outros. Exu, entidade da umbanda e orixá do candomblé, é designado socialmente como parte de uma religião inferior e, ao mesmo tempo, causa medo e é chamado de demônio. As crianças passam por um estigma semelhante: são invisibilizadas, pois estão às margens da sociedade, e são (ultra)visibilizadas, termo criado por Leandro, já que são consideradas como ameaça por essa mesma sociedade. Leandro Ribeiro acrescenta que, de certa forma, toda a população de rua, negra e periférica e, também, as pessoas LGBTQIA+ passam por essa estigmatização.
O pesquisador destaca o papel da universidade de trazer visões diferentes sobre questões que parecem certezas, mas que não são, e para solucionar questões sociais e desfazer preconceitos. “O ensino, a pesquisa e a extensão devem ser voltados para a formação de cidadãos críticos e com autonomia intelectual”, diz. Ele afirma que apenas o conhecimento é capaz de transformar a sociedade e abrir espaço para novas possibilidades.
A narrativa de Jorge Amado lida constantemente com o emocional das personagens e, portanto, do leitor. Para analisar esse aspecto, Leandro Ribeiro escolheu o Sem-Pernas, tanto por ser a personagem que mais o sensibilizou, quanto por sua história ser diferente das outras crianças. Sem-Pernas desejava ter o carinho de uma família, por mais que isso fosse contrário ao conceito de liberdade do grupo. Quando percebe que não é possível, ele cria um sentimento de ódio contra a vida, chamado de cólera. O processo é tão violento que o garoto tira a própria vida.
O ódio de Sem-Pernas se inicia no momento em que ele entende que não possui os direitos humanos básicos e começa a ter a percepção de que não é um ser humano como os outros “e, portanto, ele recorre ao único direito possível, que é o direito à morte. Eu venho da periferia e a gente sempre lembra dos nossos amigos que brincavam conosco durante a infância e que perderam a vida, se entregaram à violência, à criminalidade, às drogas. Acho que ele representa muito bem isso”, relata o pesquisador.
Um censo realizado pela prefeitura de São Paulo em 2022 registrou que há 3.759 crianças e adolescentes em situação de rua na cidade. Deles, 80% mantém vínculos familiares e está nas ruas para gerar renda e ajudar a sustentar suas famílias, diferente da história de Jorge Amado, em que os jovens são órfãos.
Questionado, Leandro Ribeiro afirma que as questões problemáticas da infância na rua que aparecem em Capitães da Areia estão sendo mascaradas, mas permanecem. O especialista explica que o romance retrata a experiência de viver nas ruas por um lado relativamente positivo, mas que há questões negativas que perduram, como a criminalidade, a prostituição, sobretudo a infantil, e o uso de drogas. “É por isso que é uma encruzilhada, porque você fica diante dela e não sabe para onde vai”, complementa Leandro. Segundo ele, “o discurso da esfera pública começa a dizer que é melhor a criança desempenhando aquele papel [de sustentar a família] do que roubando ou matando, só que o problema em si não é superado”.
De acordo com o pesquisador, por muito tempo, o romance foi ignorado pelo meio acadêmico, que considerava que seu viés político-partidário era mais importante do que a estética do texto e que, por isso, era uma literatura panfletária e de baixa qualidade. Já Leandro Ribeiro explora essa linguagem que se dizia ser desimportante: “a gente, obviamente, não desconsidera a ideologia, mas a nossa preocupação é compreender a semiótica, a significação e sua importância”, explica.
A narrativa de Jorge Amado traz trechos de jornais fictícios para representar a opinião da elite de Salvador, que dizia que os garotos eram “meninos assaltantes e ladrões que infestam nossa urbe”, segundo escrito na obra. Jorge Amado produz seu romance em um sentido contrário, colocando as crianças como sujeitos políticos, em mazela e abandonados, lutando por sua sobrevivência. Logo após o lançamento de Capitães da Areia, centenas de exemplares do livro foram queimados em praça pública pela Comissão de Busca e Apreensão de Livros da ditadura do Estado Novo, acusados de serem “propagadores do credo comunista”, como publicou o Jornal da Bahia.
- Acho [Capitães da Areia] uma obra que representa bem o Brasil da década de 1930 e o de hoje. A nossa configuração atual é muito parecida, porque a gente vê uma guinada da extrema direita adentrando os espaços, essas visões retrógradas. Ninguém pode ser diferente, todo mundo tem que seguir uma agenda moral e civilizatória à risca, e o que diverge disso, é sancionado.
Leandro Ribeiro defendeu o mestrado em Semiótica e Linguística Geral em 2022, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Agora, está no programa de doutorado na mesma área e com o mesmo orientador, Antônio Vicente Pietroforte. O pesquisador estuda, atualmente, a carnavalização da linguagem.
O estudo de Leandro explora as ideias e os papéis sociais em Capitães da Areia, que se apresentam de maneira oposta ao senso comum. O conceito de liberdade das crianças, por exemplo, não está relacionado com bens materiais, mas sim com a liberdade das ruas e com o poder de se esquivar das normas sociais. O especialista chama isso de carnavalização da linguagem, “que é a ótica do reverso. As dicotomias que a nossa cultura judaico-cristã nos impõe, como bom e mal, Deus e demônio, céu e inferno, é tudo ao reverso. Não existe só céu e inferno. Por que não pensar em um terceiro termo, em um outro modo de ser?”. De acordo com o especialista, o carnaval não está apenas nas festas, mas também na cultura brasileira, nas obras e nas expressões artísticas.
Outra questão que o pesquisador apresenta é a semântica de Exu, que explica como os capitães da areia são vistos pelos outros. Exu, entidade da umbanda e orixá do candomblé, é designado socialmente como parte de uma religião inferior e, ao mesmo tempo, causa medo e é chamado de demônio. As crianças passam por um estigma semelhante: são invisibilizadas, pois estão às margens da sociedade, e são (ultra)visibilizadas, termo criado por Leandro, já que são consideradas como ameaça por essa mesma sociedade. Leandro Ribeiro acrescenta que, de certa forma, toda a população de rua, negra e periférica e, também, as pessoas LGBTQIA+ passam por essa estigmatização.
O pesquisador destaca o papel da universidade de trazer visões diferentes sobre questões que parecem certezas, mas que não são, e para solucionar questões sociais e desfazer preconceitos. “O ensino, a pesquisa e a extensão devem ser voltados para a formação de cidadãos críticos e com autonomia intelectual”, diz. Ele afirma que apenas o conhecimento é capaz de transformar a sociedade e abrir espaço para novas possibilidades.
A narrativa de Jorge Amado lida constantemente com o emocional das personagens e, portanto, do leitor. Para analisar esse aspecto, Leandro Ribeiro escolheu o Sem-Pernas, tanto por ser a personagem que mais o sensibilizou, quanto por sua história ser diferente das outras crianças. Sem-Pernas desejava ter o carinho de uma família, por mais que isso fosse contrário ao conceito de liberdade do grupo. Quando percebe que não é possível, ele cria um sentimento de ódio contra a vida, chamado de cólera. O processo é tão violento que o garoto tira a própria vida.
O ódio de Sem-Pernas se inicia no momento em que ele entende que não possui os direitos humanos básicos e começa a ter a percepção de que não é um ser humano como os outros “e, portanto, ele recorre ao único direito possível, que é o direito à morte. Eu venho da periferia e a gente sempre lembra dos nossos amigos que brincavam conosco durante a infância e que perderam a vida, se entregaram à violência, à criminalidade, às drogas. Acho que ele representa muito bem isso”, relata o pesquisador.
Um censo realizado pela prefeitura de São Paulo em 2022 registrou que há 3.759 crianças e adolescentes em situação de rua na cidade. Deles, 80% mantém vínculos familiares e está nas ruas para gerar renda e ajudar a sustentar suas famílias, diferente da história de Jorge Amado, em que os jovens são órfãos.
Questionado, Leandro Ribeiro afirma que as questões problemáticas da infância na rua que aparecem em Capitães da Areia estão sendo mascaradas, mas permanecem. O especialista explica que o romance retrata a experiência de viver nas ruas por um lado relativamente positivo, mas que há questões negativas que perduram, como a criminalidade, a prostituição, sobretudo a infantil, e o uso de drogas. “É por isso que é uma encruzilhada, porque você fica diante dela e não sabe para onde vai”, complementa Leandro. Segundo ele, “o discurso da esfera pública começa a dizer que é melhor a criança desempenhando aquele papel [de sustentar a família] do que roubando ou matando, só que o problema em si não é superado”.
Tanto fez que agora tanto faz?
“São todos iguais”, “este rouba, mas ao menos faz”, “só querem é tachos”, “é preciso dizer umas verdades”, “só quem não trabalha é que tem tudo de mão beijada, a mim nunca me deram nada”, “já não se pode dizer nada”, “isto só lá vai com um Salazar em cada esquina”, “este país não se governa nem de deixa governar”.
Estas frases soam familiares? Quantas vezes as ouvimos todos já no café do bairro, na banca de hortaliças no mercado, no restaurante mais caro, na caixa de comentários do jornal ou no Twitter, numa conferência ou num estúdio de televisão, num táxi ou à porta da escola dos miúdos?
Todas estas frases, de uma maneira mais polida ou mais boçal, traduzem o mesmo sentimento: uma enorme impotência. São frases que nos dizem que não há nada a fazer, porque não há alternativa. São frases que nos põem no nosso lugar, no lugar dos que se indignam, mas não têm força para mudar nada. São frases que mostram que precisamos de um ser iluminado, de um técnico, de um especialista, de um D. Sebastião. São frases que nos dizem para desistir, porque nunca faremos a diferença. São frases de quem já nada espera ou de quem acha que a única coisa que tem a fazer é esperar.
Frases como esta andam por aí há muitos anos. Acho que as ouvi toda a minha vida e já não vou para nova. Mas cada vez se repetem mais, como um muro que se ergue à nossa frente. Elas ganham a força que nós vamos perdendo.
São frases perigosas porque, cada uma à sua maneira, ajudam a que olhemos para a democracia como um instrumento obsoleto. Ouvi, esta semana na rádio, um ouvinte desiludido sentenciar por fim: “O povo português não tem maturidade para viver em democracia”.
Eu entendo o ouvinte. Depois de muitos anos a levar com estas frases, ele conclui que faz parte de um povo que não tem as qualificações mínimas para exercer o direito à sua autodeterminação. Já não é só a democracia que tem falhas (porque as tem), somos nós que não estamos à altura dela. Somos politicamente desqualificados.
Quem já tenha lido sobre o que passou na Primeira República sabe o quanto, a dada altura, os jornais se encheram de artigos a glorificar a ditadura. E não faltam razões para o fazer.
Nada é mais estável do que uma ditadura. Sob uma ditadura, não há crises políticas nem escândalos. Não é porque não estejam uns quantos a roubar e a ser corrompidos (sabemos bem que é o regime mais corrupto de todos), mas nunca saberemos ao certo quem nem como e seguramente não seremos incomodados com notícias sobre corrupção, nepotismo e tráfico de influências. Haverá corrupção, nepotismo e tráfico de influências, mas não se escreverá uma linha sobre isso nem se abrirá um processo, a menos que os crimes tenham sido cometidos por quem já não interessa ao regime e, nesse caso, também nunca saberemos se os acusados são ou não culpados, porque também deixará de haver julgamentos justos.
Imaginem o sossego! Acabam-se as notícias sobre casos, casinhos e megaprocessos. Acabam-se mesmo as notícias. A não ser aquelas que sirvam para exaltar as virtudes do ditador e do seu regime. Uma limpeza! Acaba-se com aqueles jornalistas ofegantes e comentadores maledicentes. Ninguém faz perguntas e ninguém chateia. Claro que se formos vítimas de uma injustiça nos vai custar talvez um pouco não a poder denunciar. Mas quem se importa com isso? Temos sempre o Tik Tok e o Instagram e o X e o Facebook, que lá falamos sem filtros. Ou será que não? Será que nos podem apagar comentários, bloquear a conta, tornar-nos invisíveis manipulando o algoritmo?
Não importa. Ao menos vai tudo a eito. Limpamos o pântano. Cortamos a direito com uma motosserra. E nós, os nacionais puros, os trabalhadores, os que não temem porque não devem, teremos tudo aquilo de que precisamos. Ou será que não? Como faremos se o plafond do seguro acabar quando nos chega o cancro? Como conseguiremos viver na velhice se alguém declarar que a Segurança Social é um Esquema de Ponzi? Como estudarão os nossos filhos se os preços dos colégios dispararem por já não haver escola pública?
E isso que importa? Viverão os mais fortes. E quem são os mais fortes? Somos nós, os vencedores. Aqueles que agora vivem tolhidos pelo inconveniente da crise política, que só não ascendem aos píncaros da fortuna porque são obrigados a pagar impostos, os que têm de levar com a maçada de votar.
Que chatice que é votar. Para que é que querem saber a nossa opinião? Que esbulho que é pagar impostos! Quem é que pode achar boa ideia contribuir com uma parte do seu trabalho para que todos possam ter acesso a saúde, educação, justiça, pontes e estradas. Mas se tudo isso falha, estamos a pagar para quê? Sim, falhará alguma coisa por agora, mas podemos dizer que falha sempre? E daquela vez em que a nossa mãe foi assistida por ter um cancro? E quando precisámos de recorrer ao centro de saúde ou à escola? Bem, não interessa. Havemos de ser dos que prosperam e não precisam do Estado para nada. E se não formos, é porque somos uns falhados e merecemos morrer.
E morrer, já se sabe, tem pelo menos uma enorme vantagem: não precisamos de ir votar.
“É preciso estabilidade política”, “se o País não cresce, nunca vai ser possível aumentar salários”, “os portugueses não querem eleições”, “não se pode dar tudo a todos”, “é preciso chamar os técnicos, afastar os políticos”, “vamos nomear uma comissão independente, um grupo de trabalho, chamar a sociedade civil”, “ele é bom porque é independente, não veio dos partidos”.
Estas frases soam familiares? Quantas vezes as ouvimos todos já no café do bairro, na banca de hortaliças no mercado, no restaurante mais caro, na caixa de comentários do jornal ou no Twitter, numa conferência ou num estúdio de televisão, num táxi ou à porta da escola dos miúdos?
Todas estas frases, de uma maneira mais polida ou mais boçal, traduzem o mesmo sentimento: uma enorme impotência. São frases que nos dizem que não há nada a fazer, porque não há alternativa. São frases que nos põem no nosso lugar, no lugar dos que se indignam, mas não têm força para mudar nada. São frases que mostram que precisamos de um ser iluminado, de um técnico, de um especialista, de um D. Sebastião. São frases que nos dizem para desistir, porque nunca faremos a diferença. São frases de quem já nada espera ou de quem acha que a única coisa que tem a fazer é esperar.
Frases como esta andam por aí há muitos anos. Acho que as ouvi toda a minha vida e já não vou para nova. Mas cada vez se repetem mais, como um muro que se ergue à nossa frente. Elas ganham a força que nós vamos perdendo.
São frases perigosas porque, cada uma à sua maneira, ajudam a que olhemos para a democracia como um instrumento obsoleto. Ouvi, esta semana na rádio, um ouvinte desiludido sentenciar por fim: “O povo português não tem maturidade para viver em democracia”.
Eu entendo o ouvinte. Depois de muitos anos a levar com estas frases, ele conclui que faz parte de um povo que não tem as qualificações mínimas para exercer o direito à sua autodeterminação. Já não é só a democracia que tem falhas (porque as tem), somos nós que não estamos à altura dela. Somos politicamente desqualificados.
Quem já tenha lido sobre o que passou na Primeira República sabe o quanto, a dada altura, os jornais se encheram de artigos a glorificar a ditadura. E não faltam razões para o fazer.
Nada é mais estável do que uma ditadura. Sob uma ditadura, não há crises políticas nem escândalos. Não é porque não estejam uns quantos a roubar e a ser corrompidos (sabemos bem que é o regime mais corrupto de todos), mas nunca saberemos ao certo quem nem como e seguramente não seremos incomodados com notícias sobre corrupção, nepotismo e tráfico de influências. Haverá corrupção, nepotismo e tráfico de influências, mas não se escreverá uma linha sobre isso nem se abrirá um processo, a menos que os crimes tenham sido cometidos por quem já não interessa ao regime e, nesse caso, também nunca saberemos se os acusados são ou não culpados, porque também deixará de haver julgamentos justos.
Imaginem o sossego! Acabam-se as notícias sobre casos, casinhos e megaprocessos. Acabam-se mesmo as notícias. A não ser aquelas que sirvam para exaltar as virtudes do ditador e do seu regime. Uma limpeza! Acaba-se com aqueles jornalistas ofegantes e comentadores maledicentes. Ninguém faz perguntas e ninguém chateia. Claro que se formos vítimas de uma injustiça nos vai custar talvez um pouco não a poder denunciar. Mas quem se importa com isso? Temos sempre o Tik Tok e o Instagram e o X e o Facebook, que lá falamos sem filtros. Ou será que não? Será que nos podem apagar comentários, bloquear a conta, tornar-nos invisíveis manipulando o algoritmo?
Não importa. Ao menos vai tudo a eito. Limpamos o pântano. Cortamos a direito com uma motosserra. E nós, os nacionais puros, os trabalhadores, os que não temem porque não devem, teremos tudo aquilo de que precisamos. Ou será que não? Como faremos se o plafond do seguro acabar quando nos chega o cancro? Como conseguiremos viver na velhice se alguém declarar que a Segurança Social é um Esquema de Ponzi? Como estudarão os nossos filhos se os preços dos colégios dispararem por já não haver escola pública?
E isso que importa? Viverão os mais fortes. E quem são os mais fortes? Somos nós, os vencedores. Aqueles que agora vivem tolhidos pelo inconveniente da crise política, que só não ascendem aos píncaros da fortuna porque são obrigados a pagar impostos, os que têm de levar com a maçada de votar.
Que chatice que é votar. Para que é que querem saber a nossa opinião? Que esbulho que é pagar impostos! Quem é que pode achar boa ideia contribuir com uma parte do seu trabalho para que todos possam ter acesso a saúde, educação, justiça, pontes e estradas. Mas se tudo isso falha, estamos a pagar para quê? Sim, falhará alguma coisa por agora, mas podemos dizer que falha sempre? E daquela vez em que a nossa mãe foi assistida por ter um cancro? E quando precisámos de recorrer ao centro de saúde ou à escola? Bem, não interessa. Havemos de ser dos que prosperam e não precisam do Estado para nada. E se não formos, é porque somos uns falhados e merecemos morrer.
E morrer, já se sabe, tem pelo menos uma enorme vantagem: não precisamos de ir votar.
'Vamos sorrir. Sorriso'”
A citação do título é da brasileira Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, deputado demitido pela ditadura militar que oprimiu o Brasil de 1964 a 1985. Ele foi retirado de casa, torturado e assassinado no quartel do Exército em 1971, mas sua família só conseguiu obter a certidão de óbito após 25 anos de dura luta. A história real de Eunice e sua família é contada no longa-metragem de Walter Salles Ainda Estou Aqui , vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional. A vitória, celebrada (quase) como a final de uma Copa do Mundo no Brasil em meio a uma catarse carnavalesca , encontra hoje cinco crianças sem o corpo do pai para enterrá-lo; para um país com um presidente de centro-esquerda encurralado pela extrema direita, em grande parte um defensor dessa mesma ditadura; Nenhum dos cinco autores identificados foi punido, uma demora que já permitiu que três deles morressem sem responder pelo crime; a corrosão mundial da democracia, que ficou explícita numa cerimónia de Óscar sem qualquer crítica contundente ao horror diário praticado por Donald Trump e Elon Musk , como se os artistas abdicassem da sua responsabilidade pública e espontaneamente colocassem uma mordaça. A covardia parece ser uma das crueldades extras do novo fascismo.
Muitos esperam que o apoio e as comemorações da vitória unam, ao menos por um momento, um Brasil profundamente dividido, onde a possibilidade de diálogo foi rompida. Mas, como Eliana Paiva, uma das filhas, relembrou em entrevistas, o filme é sobre um assassinato brutal. E de um corpo insepulto. O que aponta para muitos outros corpos não enterrados.
Ao contrário de países como a Argentina, o Brasil não processou os crimes da ditadura militar. A falta de responsabilização, que até hoje permite que torturados encontrem seus torturadores na padaria da esquina, está no DNA da extrema direita representada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. O premiado filme, que traz a memória a um país que optou por apagá-la, é mais um pequeno ato de resistência. “Vivemos em uma época em que a memória está sendo apagada como um projeto de poder, então criar memória é extremamente importante”, disse o diretor aos repórteres após a cerimônia.
A campanha do Oscar — e antes dela outros prêmios, como o Goya de melhor filme ibero-americano e o Globo de Ouro de melhor atriz para Fernanda Torres, que interpreta a protagonista Eunice Paiva — estourou bolhas e já levou mais de cinco milhões de brasileiros às salas de cinema. Infelizmente, isso não se traduz em mais horror contra os torturadores e assassinos, que continuam agindo contra os negros pobres nas favelas e periferias do Brasil, nas delegacias e prisões.
O filme de Walter Salles merece todos os prêmios, mas seu sucesso de público mostra que as elites brasileiras (e mundiais) ainda têm mais facilidade de se identificar com uma família branca, de classe média, com uma mãe de cinco filhos dedicada ao lar e à família. Investigações da Comissão Nacional da Verdade revelaram 434 mortos e desaparecidos, a maioria deles brancos. A ditadura exterminou pelo menos 8.000 indígenas.
Para ser eficaz, a memória não pode ser seletiva. Eunice Paiva entendeu que as desigualdades também estão presentes na esquerda progressista. Após a violência contra sua família, ela se formou em direito e trabalhou por muitos anos para proteger os povos indígenas e seus territórios na Amazônia.
“Vamos sorrir. “Sorria” é um mantra de resistência. Eunice Paiva escolheu a vida, e essa é a escolha mais revolucionária, aquela que todos devemos fazer neste momento em que a democracia e o futuro humano no planeta estão sob ataque.
Muitos esperam que o apoio e as comemorações da vitória unam, ao menos por um momento, um Brasil profundamente dividido, onde a possibilidade de diálogo foi rompida. Mas, como Eliana Paiva, uma das filhas, relembrou em entrevistas, o filme é sobre um assassinato brutal. E de um corpo insepulto. O que aponta para muitos outros corpos não enterrados.
Ao contrário de países como a Argentina, o Brasil não processou os crimes da ditadura militar. A falta de responsabilização, que até hoje permite que torturados encontrem seus torturadores na padaria da esquina, está no DNA da extrema direita representada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. O premiado filme, que traz a memória a um país que optou por apagá-la, é mais um pequeno ato de resistência. “Vivemos em uma época em que a memória está sendo apagada como um projeto de poder, então criar memória é extremamente importante”, disse o diretor aos repórteres após a cerimônia.
A campanha do Oscar — e antes dela outros prêmios, como o Goya de melhor filme ibero-americano e o Globo de Ouro de melhor atriz para Fernanda Torres, que interpreta a protagonista Eunice Paiva — estourou bolhas e já levou mais de cinco milhões de brasileiros às salas de cinema. Infelizmente, isso não se traduz em mais horror contra os torturadores e assassinos, que continuam agindo contra os negros pobres nas favelas e periferias do Brasil, nas delegacias e prisões.
O filme de Walter Salles merece todos os prêmios, mas seu sucesso de público mostra que as elites brasileiras (e mundiais) ainda têm mais facilidade de se identificar com uma família branca, de classe média, com uma mãe de cinco filhos dedicada ao lar e à família. Investigações da Comissão Nacional da Verdade revelaram 434 mortos e desaparecidos, a maioria deles brancos. A ditadura exterminou pelo menos 8.000 indígenas.
Para ser eficaz, a memória não pode ser seletiva. Eunice Paiva entendeu que as desigualdades também estão presentes na esquerda progressista. Após a violência contra sua família, ela se formou em direito e trabalhou por muitos anos para proteger os povos indígenas e seus territórios na Amazônia.
“Vamos sorrir. “Sorria” é um mantra de resistência. Eunice Paiva escolheu a vida, e essa é a escolha mais revolucionária, aquela que todos devemos fazer neste momento em que a democracia e o futuro humano no planeta estão sob ataque.
A mentira como verdade
O principal canal de Donald Trump para disseminar mentiras chama-se Truth Social —Confederação da Verdade ou algo assim. É a rede social fundada por ele em 2021, destinada a disparar textos, posts e arquivos para os lorpas americanos. Mas, se a extrema direita acha que essa tática de fazer da mentira a verdade é de sua invenção, engana-se. Foi usada com grande sucesso pela União Soviética de 1917 a 1991, através de seu jornal oficial, Pravda, editado pelo Partido Comunista com a função de encobrir os crimes do Estado. Pravda, em português, quer dizer verdade.
Outra tática dos comunistas era inverter o sentido de certas palavras. Os países-satélites da URSS no Leste Europeu, tristes ditaduras subjugadas a Moscou, eram chamados de repúblicas "populares" ou "democráticas". O povo a que elas se referiam era o Comitê Central do Partido Comunista local, que supostamente o representava. Da mesma forma, na Alemanha, o nazismo era uma abreviatura de "nacional-socialismo". Não tinha nada de socialista, mas a palavra ajudou-o a consolidar-se.
Corromper palavras é típico dos autoritários de qualquer cor política. Bolsonaro e seus esbirros, adeptos da ditadura militar que asfixiou o Brasil por 21 anos, têm o cinismo de gritar por "liberdade de expressão" —liberdade que querem usar justamente para suprimi-la se voltarem ao poder. É o mesmo cinismo com que dizem "o Brasil acima de tudo" enquanto municiam Trump para afrontar a soberania brasileira.
O perigo não está só na mentira, mas, pior ainda, na mentira como verdade.
Em "1984", romance de George Orwell, a mentira era também a especialidade do Ministério da Verdade, órgão dedicado a "corrigir" periodicamente a história, falsificando informações e convertendo antigos heróis em inimigos do regime. Seu slogan era "Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado". Seu modelo era o mesmo Pravda, que apagava das fotos os velhos revolucionários que tinham se voltado contra Stalin.
Outra tática dos comunistas era inverter o sentido de certas palavras. Os países-satélites da URSS no Leste Europeu, tristes ditaduras subjugadas a Moscou, eram chamados de repúblicas "populares" ou "democráticas". O povo a que elas se referiam era o Comitê Central do Partido Comunista local, que supostamente o representava. Da mesma forma, na Alemanha, o nazismo era uma abreviatura de "nacional-socialismo". Não tinha nada de socialista, mas a palavra ajudou-o a consolidar-se.
Corromper palavras é típico dos autoritários de qualquer cor política. Bolsonaro e seus esbirros, adeptos da ditadura militar que asfixiou o Brasil por 21 anos, têm o cinismo de gritar por "liberdade de expressão" —liberdade que querem usar justamente para suprimi-la se voltarem ao poder. É o mesmo cinismo com que dizem "o Brasil acima de tudo" enquanto municiam Trump para afrontar a soberania brasileira.
O perigo não está só na mentira, mas, pior ainda, na mentira como verdade.
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