domingo, 14 de julho de 2024

Pensamento do Dia

 


'Arma' sacra

Você não deve ter medo de alguém que tem uma biblioteca e lê muitos livros; você deve temer alguém que tem apenas um livro, e o considera sagrado, mas nunca leu
Friedrich Nietzsche

Brasília é uma usina de reciclagem de erros

Com a reforma tributária na reta final, os carros elétricos entraram, ao lado do tabaco e das bebidas alcoólicas, na lista dos produtos que pagarão o “imposto do pecado”. Em tese, esse imposto recairá sobre mercadorias que fazem mal à saúde ou agridem o meio ambiente. Ganha um fim de semana num incêndio do Pantanal quem souber o que um carro elétrico tem a ver com isso.

As montadoras nacionais fazem o que podem contra os carros elétricos, valendo-se do trânsito de que dispõem pelo corredores de Brasília, mas desta vez exageraram.

Uma reforma tributária que pretende ser racional acabou acordando o velho monstro do atraso.

A sabedoria convencional ensina que tendo sido um dos últimos países a abolir a escravidão (em 1888), Pindorama tem um pé no atraso. A coisa é pior. Até 1850 o andar de cima nacional estava amarrado ao contrabando de africanos escravizados, uma atividade supostamente ilegal desde 1831.

Admita-se que isso é coisa de um passado remoto, mas o atraso está sempre por aí.


Em 1978, a Associação dos Supermercados excluiu de seu quadro social a rede Carrefour porque ela aceitava pagamentos com cartões de crédito. Nessa época, burocratas e espertalhões criaram um regime pelo qual era mais fácil entrar no Brasil com um pacote de cocaína do que com um computador.

Encrenca-se com os carros elétricos em nome de uma proteção ao parque industrial das montadoras. Trata-se de uma jovem indústria, septuagenária e anacrônica. Enquanto fábricas reinventam-se pelo mundo afora, no Brasil fala-se em importar linhas de montagem de veículos a gasolina desativadas pelo progresso. Seria o ProSucata.

Em 2003, os maganos das montadoras viviam muito bem quando um jovem chamado Elon Musk se meteu no mercado de carros elétricos e criou a Testla. A China foi na bola e hoje suas montadoras têm a maior fatia do mercado mundial.

Quando Juscelino Kubitschek dirigiu o primeiro carro saído de uma montadora de São Paulo, os chineses andavam de bicicleta. Em matéria de fazer besteiras, a China batia o Brasil de longe. Pindorama tinha JK, quando a China teve o Grande Salto de Mao Zedong (Mao Tsé-Tung), com dezenas de milhões de mortos de fome. Os dois países diferem em muitas coisas, mas a China consegue abandonar as ideias erradas. Enquanto o Brasil recicla-as.

Uma PEC sem-vergonha

Se fizermos uma pesquisa entre cientistas políticos perguntando qual é o princípio mais fundamental das sociedades civilizadas, são grandes as chances de que a resposta majoritária seja "o império da lei" ("rule of law"), a noção de que todos, incluindo governantes e legisladores, estão sujeitos às mesmas leis.

É o que assegura um mínimo de igualdade entre os cidadãos e previne o exercício arbitrário do poder. De forma mais pragmática, é o que possibilita um mercado razoavelmente competitivo de ideias, que tem favorecido os avanços tecnológicos e o aumento da produtividade econômica.

É contra esse império da lei que nossos congressistas conspiram ao aprovar a chamada PEC da Anistia. A proposta já passou pela Câmara, mas ainda pode ser barrada no Senado. A PEC é uma maldisfarçada licença para que os partidos políticos violem regras eleitorais.

A proposta perdoa irregularidades variadas cometidas pelas legendas, notadamente o descumprimento de cotas de financiamento para candidaturas minoritárias. O detalhe perverso é que a maior parte das normas violadas são leis aprovadas por representantes desses mesmos partidos (a outra parte são determinações da Justiça Eleitoral, que obviamente também precisam ser obedecidas).

O apoio à PEC foi bem ecumênico. Irmanou legendas antípodas como o PT de Lula e o PL de Bolsonaro. Apenas o Novo e o bloco PSOL-Rede se posicionaram contra a proposta, que passou na Câmara pelo elástico placar de 344 contra 89.

Como eu já disse aqui, a aprovação dessa anistia representará uma tripla canelada na democracia. De um só golpe, os parlamentares conseguem desmoralizar a ideia de que leis devem ser cumpridas, esvaziar a autoridade da Justiça Eleitoral e trazer ainda mais descrédito para a imagem do Congresso.

Até crianças da 5ª série sabem que o jogo de futebol só funciona se todos concordarem em seguir as regras sem recorrer a artimanhas.

Tempo de profecia

Nasceu um bisão branco no Parque Yellowstone, Montana, EUA. Raríssimo, o acontecimento corresponde a profecias de mudanças profundas segundo a teologia dos Sioux, Cherokee, Comanche, Dakota e Navajo. Zoólogos atêm-se, claro, a explicações científicas orientadas para fenômenos de metamorfose. Mas seria precipitado julgar que os mitos já eram: brasas do passado continuam acesas em situações não devidamente explicadas, em todo o mundo.

Uma delas é a mutação na consciência cívica e social. À primeira vista, uma saturação baixa dos discursos e valores liberais, portanto, má circulação do oxigênio democrático. Perspectiva talvez razoável para a sociologia das formas de vida, mas não explica a contaminação do fenômeno pelo espírito regressivo da ultradireita.


No entanto, esse é o espírito de ressentimento e ódio, acionado pelo "fogo das paixões perversas, ou seja, aqueles extremos carregados de afeto, dos quais a natureza humana é capaz, mas que, no cotidiano, são repudiados, reprimidos, escondidos ou, acima de tudo, inconscientes" (C.G. Jung em "Um mito moderno sobre coisas vistas no céu"). Nesta linha explicativa, o pensador combina mito e arte interpretativa.

Uma antiga afirmação alquímica, "o que a natureza deixa incompleto, é completado pela arte", foi bem acolhida por pensadores influentes do século passado. Arte, em sentido amplíssimo, como abordagem de situações inapreensíveis pela linguagem racional. Donde a produção de imagens e narrativas que sempre couberam nas mitologias.

Assim, o bisão branco, evento sagrado para povos originários, revelaria que algo de bom ou de mau acontecerá numa mudança significativa, para a qual os seres humanos deveriam se preparar. Do imaginário à história, há um salto metafórico possível. No aspecto negativo, a mudança é portal para aqueles que se alimentam da ignorância dos outros, por meio da mentira e do aceno a um passado tóxico.

Imaginariamente, seriam metamorfos: nos contos nórdicos, seres mitológicos capazes de se transformar em outras pessoas, devoradores de formas vitais de existência. Dele há variações tenebrosas, como a do "devorador do luto", que se alimenta do sofrimento dos indivíduos. Na história, gente como Hitler, Stálin, Putin.

Mito é o fundo duplo da história. Estaria nesse viés de mutação mental a raiz do fundamentalismo religioso e político, que captura comunidades carentes e sujeitos de miséria afetiva. Isso que advém como negação da realidade e indiferença às verdades. Ante a debilidade do discurso progressista, a consciência permeável à mutação abre-se a extremos perversos como Trump, Putin e réplicas. Na coligação do capital necrofílico com a tecnologia, as profecias suscitam a indagação sobre se os humanos não estariam de novo a bordo de um Titanic.