quinta-feira, 2 de maio de 2024
Pobre com carro
Freud dizia que o dinheiro não traz felicidade porque não é um desejo de infância. Talvez seja por isto que a posse de um automóvel enche de lágrimas felizes os olhos de tantos brasileiros. Desde os primeiros cambaleios infantis esses pobres diabos são induzidos a puxar por um cordão uma traquitana qualquer com quatro rodas e a produzir onomatopéias tipo rom-rom-rom e pi-biiit. Para milhões desses desventurados, o carro torna-se o mais multifuncional dos símbolos. Ele é rito de passagem para o mundo adulto, é diploma de ascensão social, é triunfo tecnológico sobre o Espaçotempo, é alcova sobre rodas, é escafandro protetor contra os esbarrões da plebe, é talismã semiótico, é prótese locomotora em quatro dimensões… O verbo ser é um conceito abstrato, metafísico, mas ganha carne, osso e metal com este sinônimo reluzente: “ter um carro”.
Muitos amigos meus dizem que pagariam qualquer preço por um frasco de perfume com “cheiro de carro novo”, e só não mango porque eu, por exemplo, gosto de cheiro de livro velho (mas não, não compraria um frasco de perfume, compraria um livro velho, como se tivesse poucos). E assim não é difícil entender porque nossas cidades não funcionam, nosso transporte público é uma porcaria, nossos urbanistas fazem as pessoas se adaptarem ao trânsito e não o contrário. Diz-se mundo afora que “país rico não é aquele onde pobre tem carro, é aquele onde rico anda em transporte público”. Duvido que vejamos o Brasil ser assim um dia. O sonho dos governos brasileiros e da indústria brasileira é termos um dia 200 milhões de carros para 200 milhões de pessoas. E as cidades que se explodam.
O site “Livable Streets” faz um apanhado de pequenas mudanças que poderiam ser implementadas em nossas ruas para expandir o espao humano e controlar melhor o espaço dos automóveis. Isto de nada adianta, contudo, se o país continuar se suicidando com o aumento da produção e venda de automóveis, sob o pretexto de geração de divisas e criação de empregos.
A psicose automobilística endivida milhões de famílias hipnotizadas pela fantasia de ascensão social e inviabiliza as cidades. Cidades deformadas e desfiguradas pela ideologia individualista do cada-um-por-si, onde usar transporte público ou é uma tortura (onde ele é entregue às baratas) ou é humilhante mesmo onde ele tem boa qualidade. Refugiar-se no carro é a derradeira ilusão da classe média. Ela imagina estar melhorando de vida e está apenas trocando a pobreza por uma engorda para abate, uma espécie de empobrecimento financiado que a leva a trabalhar e produzir cada vez mais para ficar com cada vez menos.
Muitos amigos meus dizem que pagariam qualquer preço por um frasco de perfume com “cheiro de carro novo”, e só não mango porque eu, por exemplo, gosto de cheiro de livro velho (mas não, não compraria um frasco de perfume, compraria um livro velho, como se tivesse poucos). E assim não é difícil entender porque nossas cidades não funcionam, nosso transporte público é uma porcaria, nossos urbanistas fazem as pessoas se adaptarem ao trânsito e não o contrário. Diz-se mundo afora que “país rico não é aquele onde pobre tem carro, é aquele onde rico anda em transporte público”. Duvido que vejamos o Brasil ser assim um dia. O sonho dos governos brasileiros e da indústria brasileira é termos um dia 200 milhões de carros para 200 milhões de pessoas. E as cidades que se explodam.
O site “Livable Streets” faz um apanhado de pequenas mudanças que poderiam ser implementadas em nossas ruas para expandir o espao humano e controlar melhor o espaço dos automóveis. Isto de nada adianta, contudo, se o país continuar se suicidando com o aumento da produção e venda de automóveis, sob o pretexto de geração de divisas e criação de empregos.
A psicose automobilística endivida milhões de famílias hipnotizadas pela fantasia de ascensão social e inviabiliza as cidades. Cidades deformadas e desfiguradas pela ideologia individualista do cada-um-por-si, onde usar transporte público ou é uma tortura (onde ele é entregue às baratas) ou é humilhante mesmo onde ele tem boa qualidade. Refugiar-se no carro é a derradeira ilusão da classe média. Ela imagina estar melhorando de vida e está apenas trocando a pobreza por uma engorda para abate, uma espécie de empobrecimento financiado que a leva a trabalhar e produzir cada vez mais para ficar com cada vez menos.
As pessoas sensíveis
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra
“Ganharás o pão com o suor do teu rosto”
Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão.”
Ó vendilhões do templo
Ó constructores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.
Sophia de Mello Breyner Andresen, "Livro sexto"
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra
“Ganharás o pão com o suor do teu rosto”
Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão.”
Ó vendilhões do templo
Ó constructores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.
Sophia de Mello Breyner Andresen, "Livro sexto"
Indecência
O Hamas tem diante de si duma proposta extraordinariamente generosa e deve decidir rapidamenteAntony Blinken, secretário de Estado dos EUA
Emprego melhor não muda mau humor de boa parte do pais
Este é um país conflagrado, bidu. Dedica-se a guerras político-culturais por qualquer motivo, das últimas do Xandão do Supremo à música de cantores populares e casamentos de "famosos" e "influencers". Quando começar a campanha para a eleição municipal, deve haver picos de burrice, mentira e "polarização".
Dados econômicos causam o torpor do enfado na maioria das pessoas. São ainda mais desprezados nesse ambiente inflamável, quando não são desmentidos nas redes com fé cega, faca amolada e nenhum argumento.
No entanto, números recentes, como os do emprego indicam melhorias reais.
O número de pessoas ocupadas, com algum emprego, está crescendo a 2,3% ao ano: rápido. Havia desacelerado até outubro de 2023, mas se recupera desde então. O salário médio cresce ao ritmo anual de 4% acima da inflação.
A massa salarial, soma de todos os rendimentos do trabalho, cresce a 6,6% ao ano. Está em um nível cerca de 16% maior do que o dos picos de 2014 e 2015.
São contas feitas com dados do IBGE, divulgados nesta terça-feira (30), quando também saíram os números do emprego formal, dos registros do Ministério do Trabalho (vulgo Caged). No primeiro trimestre, foram criados cerca de 719 mil empregos, bem mais do que os 536 mil do início de 2023.
O mercado formal está movimentado, com muitas admissões e demissões, com alta forte do salário de admissão. Isso quer dizer também que mais pessoas têm oportunidade de mudar de emprego, por um trabalho melhor.
O índice de sofrimento ou de infelicidade ("misery index", em inglês) é uma medida elementar de bem-estar econômico e da conjuntura, da economia no curto prazo, uma ideia do economista americano Arthur Okun (1928-1980).
É a soma das taxas anuais de inflação e de desemprego. Para os meses de março, está no menor nível desde 2012, período para o qual há dados comparáveis. Desemprego e inflação estão em níveis historicamente baixos.
O mal-estar difuso permanece, porém, como se pode notar também pela ligeira baixa de popularidade de Lula da Silva ou pelo nível ainda baixo da confiança do consumidor.
Mesmo dando o desconto do clima político e o fato de que o país ainda não se recuperou de uma década de desastre socioeconômico, o tamanho do desânimo é um pouco intrigante, porém.
Quem quer que comente a queda recente da taxa de inflação será apedrejado nas redes e noutros fóruns virtuais, nos quais se vai ler também que o IBGE mente. Em parte, entende-se a reação.
A taxa de inflação, no caso a variação da média dos preços para o consumidor, é de fato menor. Mas o nível de preços fundamentais continua alto em relação ao salário médio.
Entre os preços mais conhecidos e acompanhados pelo consumidor estão os de comida, combustíveis, remédios, energia e transporte.
Desde pouco antes do início do impacto da epidemia (março de 2020) até março de 2024, a média do preço dos alimentos levados para casa aumentou 46,7%; o salário médio subiu 31,2%. Desde 2012, a disparidade havia sido tão ruim apenas no ano de 2016 da Grande Recessão.
A vida despiorou um tico até para quem está no fundo do poço do inferno social, quem não tem trabalho algum ou sobrevive dos bicos mais tristes. As taxas de pobreza e miséria diminuíram por causa do Bolsa Família ampliado.
A alta da dívida pública, a perspectiva crônica de juros altos, a guerra dos impostos travada pelas elites, a falta de investimento etc. não entram no radar popular. Comida cara ajuda a explicar o desânimo, assim como a impaciência justa depois de uma década de sofrimento ou frustração.
"Polarização" não explica o aumento do desânimo entre eleitores lulistas. Parece haver algo que ainda não entrou no radar das elites explicadoras.
Dados econômicos causam o torpor do enfado na maioria das pessoas. São ainda mais desprezados nesse ambiente inflamável, quando não são desmentidos nas redes com fé cega, faca amolada e nenhum argumento.
No entanto, números recentes, como os do emprego indicam melhorias reais.
O número de pessoas ocupadas, com algum emprego, está crescendo a 2,3% ao ano: rápido. Havia desacelerado até outubro de 2023, mas se recupera desde então. O salário médio cresce ao ritmo anual de 4% acima da inflação.
A massa salarial, soma de todos os rendimentos do trabalho, cresce a 6,6% ao ano. Está em um nível cerca de 16% maior do que o dos picos de 2014 e 2015.
São contas feitas com dados do IBGE, divulgados nesta terça-feira (30), quando também saíram os números do emprego formal, dos registros do Ministério do Trabalho (vulgo Caged). No primeiro trimestre, foram criados cerca de 719 mil empregos, bem mais do que os 536 mil do início de 2023.
O mercado formal está movimentado, com muitas admissões e demissões, com alta forte do salário de admissão. Isso quer dizer também que mais pessoas têm oportunidade de mudar de emprego, por um trabalho melhor.
O índice de sofrimento ou de infelicidade ("misery index", em inglês) é uma medida elementar de bem-estar econômico e da conjuntura, da economia no curto prazo, uma ideia do economista americano Arthur Okun (1928-1980).
É a soma das taxas anuais de inflação e de desemprego. Para os meses de março, está no menor nível desde 2012, período para o qual há dados comparáveis. Desemprego e inflação estão em níveis historicamente baixos.
O mal-estar difuso permanece, porém, como se pode notar também pela ligeira baixa de popularidade de Lula da Silva ou pelo nível ainda baixo da confiança do consumidor.
Mesmo dando o desconto do clima político e o fato de que o país ainda não se recuperou de uma década de desastre socioeconômico, o tamanho do desânimo é um pouco intrigante, porém.
Quem quer que comente a queda recente da taxa de inflação será apedrejado nas redes e noutros fóruns virtuais, nos quais se vai ler também que o IBGE mente. Em parte, entende-se a reação.
A taxa de inflação, no caso a variação da média dos preços para o consumidor, é de fato menor. Mas o nível de preços fundamentais continua alto em relação ao salário médio.
Entre os preços mais conhecidos e acompanhados pelo consumidor estão os de comida, combustíveis, remédios, energia e transporte.
Desde pouco antes do início do impacto da epidemia (março de 2020) até março de 2024, a média do preço dos alimentos levados para casa aumentou 46,7%; o salário médio subiu 31,2%. Desde 2012, a disparidade havia sido tão ruim apenas no ano de 2016 da Grande Recessão.
A vida despiorou um tico até para quem está no fundo do poço do inferno social, quem não tem trabalho algum ou sobrevive dos bicos mais tristes. As taxas de pobreza e miséria diminuíram por causa do Bolsa Família ampliado.
A alta da dívida pública, a perspectiva crônica de juros altos, a guerra dos impostos travada pelas elites, a falta de investimento etc. não entram no radar popular. Comida cara ajuda a explicar o desânimo, assim como a impaciência justa depois de uma década de sofrimento ou frustração.
"Polarização" não explica o aumento do desânimo entre eleitores lulistas. Parece haver algo que ainda não entrou no radar das elites explicadoras.
Como a guerra afeta o desenvolvimento das crianças
A violência ao redor do mundo chegou a patamares que não se viam há pelo menos 30 anos. Além das guerras na Ucrânia e entre Israel e o Hamas, no Oriente Médio, existem ao menos outros 110 conflitos armados acontecendo na África, na Ásia, na América Latina e na Europa.
Muitas dessas guerras estão sendo travadas em cidades e áreas civis densamente habitadas. Como consequência, ataques com mísseis e drones têm afetado civis, escolas, hospitais e abrigos.
Autoridades alertam que hoje, mais do que nunca na história moderna do planeta, as maiores vítimas dessas disputas geopolíticas são crianças. O secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, disse diversas vezes que elas estão carregando o peso dos conflitos modernos de forma "desproporcional".
Parte desse fardo é físico: muitas crianças vivendo em zonas de guerra são recrutadas para o combate; outras são abusadas sexualmente por agressores armados. Mas independente de terem ou não sua integridade física violada, crianças em áreas de conflito armado passam por um sofrimento psicológico profundo.
Crianças em cidades ucranianas na linha de frente da guerra, por exemplo, passaram entre 3 mil e 5 mil horas de suas vidas – o equivalente a entre quatro e sete meses – em abrigos subterrâneos desde o início da invasão russa, dois anos atrás.
"A mistura de medo, luto e separação de entes queridos está tendo um impacto tremendo em crianças à medida que a guerra se arrasta ", afirma Leah James, especialista em apoio à saúde mental do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Segundo ela, 40% dessas crianças não estão tendo aulas presenciais.
O resultado disso tudo é que milhões de pessoas devem sofrer futuramente com níveis desproporcionalmente altos de problemas de saúde mental e psiquiátrica, alertam especialistas.
Na Ucrânia, assistentes psicossociais temem que a longa duração da guerra possa estar provocando atrasos severos no desenvolvimento das crianças.
Segundo Christoph Anacker, neurocientista da Universidade de Columbia nos Estados Unidos, isso é algo confirmado pela ciência. "Estressores na primeira infância podem causar anomalias específicas no desenvolvimento e na função dos circuitos neurais na vida adulta, principalmente aqueles envolvidos na resposta ao estresse."
Anacker explica que o trauma nessa fase inicial da vida altera as respostas ao estresse e ao medo no cérebro, "ensinando-o" a ser mais suscetível ao estresse na vida adulta. Daí o motivo de os hormônios do estresse serem muitas vezes liberados mais frequentemente nas pessoas que passaram por adversidades na infância.
Além disso, o neurocientista diz que crianças com esse perfil têm um risco maior de sofrerem mais tarde com transtornos de ansiedade, depressão e doença de Alzheimer.
E embora tanto adultos quanto crianças que vivenciam uma guerra possam sofrer de transtorno do estresse pós-traumático, Anacker pondera que o cérebro adulto é muito mais resiliente porque é menos "plástico" – ou seja, não tende a sofrer grandes alterações.
Durante a infância, o cérebro passa pelo que especialistas chamam de "períodos sensíveis" do desenvolvimento. Se uma criança é hiperestimulada por causa de um luto ou da ansiedade de estar sob um bombardeio, ou se é privada de estímulos sociais e emocionais durante esses períodos, como acontece quando são separadas da família, por exemplo, Anacker diz que isso pode levar a uma reconfiguração do cérebro.
O dano que isso causa é irreparável, afirma Anacker. "Não há maneiras eficazes de reverter os efeitos do trauma infantil em adultos."
Daí a importância, segundo o neurocientista, de minimizar a exposição de crianças a fatores estressores durante os períodos sensíveis de desenvolvimento.
James, da Unicef, afirma que o órgão tem trabalhado para reduzir os efeitos de longo prazo dos estressores na primeira infância em crianças na Ucrânia.
"Algumas das intervenções que realizamos são simples: garantir que as crianças tenham um espaço seguro para brincar e se conectar com outros, ensinar habilidades básicas para lidar com o luto e a separação", lista James. "Mas grande parte consiste em apoiar os cuidadores para que possam ser modelos positivos para as crianças. Cuidar de alguém em tempos de guerra é incrivelmente difícil. Aliviar o estresse deles também impacta seus filhos."
Porta-voz da Unicef, Joe English ressalta, porém, que crianças em conflitos em outras regiões não têm tido o mesmo apoio.
"Diante da escala das necessidades em conflitos ao redor do mundo e do subfinanciamento crítico e crônico de questões humanitárias em geral e proteção infantil mais especificamente, muitas crianças não conseguem obter o apoio de que podem estar precisando", afirma English.
Enquanto há maior disponibilidade de dados sobre crianças e famílias ucranianas, a extensão do problema em outras zonas de guerra no mundo, inclusive em Gaza, Iêmen e Sudão, ainda é desconhecida devido à falta de dados confiáveis.
Muitas dessas guerras estão sendo travadas em cidades e áreas civis densamente habitadas. Como consequência, ataques com mísseis e drones têm afetado civis, escolas, hospitais e abrigos.
Autoridades alertam que hoje, mais do que nunca na história moderna do planeta, as maiores vítimas dessas disputas geopolíticas são crianças. O secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, disse diversas vezes que elas estão carregando o peso dos conflitos modernos de forma "desproporcional".
Parte desse fardo é físico: muitas crianças vivendo em zonas de guerra são recrutadas para o combate; outras são abusadas sexualmente por agressores armados. Mas independente de terem ou não sua integridade física violada, crianças em áreas de conflito armado passam por um sofrimento psicológico profundo.
Crianças em cidades ucranianas na linha de frente da guerra, por exemplo, passaram entre 3 mil e 5 mil horas de suas vidas – o equivalente a entre quatro e sete meses – em abrigos subterrâneos desde o início da invasão russa, dois anos atrás.
"A mistura de medo, luto e separação de entes queridos está tendo um impacto tremendo em crianças à medida que a guerra se arrasta ", afirma Leah James, especialista em apoio à saúde mental do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Segundo ela, 40% dessas crianças não estão tendo aulas presenciais.
O resultado disso tudo é que milhões de pessoas devem sofrer futuramente com níveis desproporcionalmente altos de problemas de saúde mental e psiquiátrica, alertam especialistas.
Na Ucrânia, assistentes psicossociais temem que a longa duração da guerra possa estar provocando atrasos severos no desenvolvimento das crianças.
Segundo Christoph Anacker, neurocientista da Universidade de Columbia nos Estados Unidos, isso é algo confirmado pela ciência. "Estressores na primeira infância podem causar anomalias específicas no desenvolvimento e na função dos circuitos neurais na vida adulta, principalmente aqueles envolvidos na resposta ao estresse."
Anacker explica que o trauma nessa fase inicial da vida altera as respostas ao estresse e ao medo no cérebro, "ensinando-o" a ser mais suscetível ao estresse na vida adulta. Daí o motivo de os hormônios do estresse serem muitas vezes liberados mais frequentemente nas pessoas que passaram por adversidades na infância.
Além disso, o neurocientista diz que crianças com esse perfil têm um risco maior de sofrerem mais tarde com transtornos de ansiedade, depressão e doença de Alzheimer.
E embora tanto adultos quanto crianças que vivenciam uma guerra possam sofrer de transtorno do estresse pós-traumático, Anacker pondera que o cérebro adulto é muito mais resiliente porque é menos "plástico" – ou seja, não tende a sofrer grandes alterações.
Durante a infância, o cérebro passa pelo que especialistas chamam de "períodos sensíveis" do desenvolvimento. Se uma criança é hiperestimulada por causa de um luto ou da ansiedade de estar sob um bombardeio, ou se é privada de estímulos sociais e emocionais durante esses períodos, como acontece quando são separadas da família, por exemplo, Anacker diz que isso pode levar a uma reconfiguração do cérebro.
O dano que isso causa é irreparável, afirma Anacker. "Não há maneiras eficazes de reverter os efeitos do trauma infantil em adultos."
Daí a importância, segundo o neurocientista, de minimizar a exposição de crianças a fatores estressores durante os períodos sensíveis de desenvolvimento.
James, da Unicef, afirma que o órgão tem trabalhado para reduzir os efeitos de longo prazo dos estressores na primeira infância em crianças na Ucrânia.
"Algumas das intervenções que realizamos são simples: garantir que as crianças tenham um espaço seguro para brincar e se conectar com outros, ensinar habilidades básicas para lidar com o luto e a separação", lista James. "Mas grande parte consiste em apoiar os cuidadores para que possam ser modelos positivos para as crianças. Cuidar de alguém em tempos de guerra é incrivelmente difícil. Aliviar o estresse deles também impacta seus filhos."
Porta-voz da Unicef, Joe English ressalta, porém, que crianças em conflitos em outras regiões não têm tido o mesmo apoio.
"Diante da escala das necessidades em conflitos ao redor do mundo e do subfinanciamento crítico e crônico de questões humanitárias em geral e proteção infantil mais especificamente, muitas crianças não conseguem obter o apoio de que podem estar precisando", afirma English.
Enquanto há maior disponibilidade de dados sobre crianças e famílias ucranianas, a extensão do problema em outras zonas de guerra no mundo, inclusive em Gaza, Iêmen e Sudão, ainda é desconhecida devido à falta de dados confiáveis.
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