terça-feira, 14 de agosto de 2018

Direita, esquerda e a política aos frangalhos

O início de 1994 foi turbulento na Itália. Em 26 de janeiro, dois anos depois do início da Operação Mãos Limpas, o empresário Silvio Berlusconi anunciou num vídeo de nove minutos sua intenção de entrar na política. Para ele, alvo das investigações, era isso ou a cadeia. A eleição de 27 de março se deu num país polarizado entre a coalizão de Berlusconi, à direita, e uma aliança em torno de Achille Occhetto, à esquerda. Embora Berlusconi e o premiê socialista Bettino Craxi tivessem sido sócios informais em vários esquemas corruptos, a reforma política que tentou recompor o sistema partidário aos frangalhos favoreceu a polarização e deu vitória a Berlusconi. Seu primeiro governo marcou o início da reação à Mãos Limpas. Limitou a ação dos procuradores, fez prescrever crimes e garantiu sobrevida aos “onorevoli” que se protegiam sob o manto do foro privilegiado no Parlamento italiano. Vinte anos depois, a Itália se tornaria um país ainda mais corrupto.


Naqueles primeiros meses de 1994, um livro improvável, escrito no começo do ano e lançado antes da eleição, tornou-se best-seller durante a campanha: Direita e esquerda, do filósofo Norberto Bobbio. Mesmo depois da queda do Muro de Berlim, ainda que muitos proclamassem o “fim da história” com a difusão do capitalismo e da democracia liberal pelo planeta, Bobbio insistia que o embate ideológico não estava esgotado. As palavras “direita” e “esquerda” continuavam a expressar ideias e sentimentos políticos claros. As eleições italianas daquele ano demonstraram que Bobbio tocara num nervo exposto. Hoje ninguém tem muita dúvida da persistência de campos antagônicos na política, comumente associados às duas palavras. Mas qual a essência dessa distinção? Até que ponto as ideias de Bobbio se aplicam ao Brasil que vive o crepúsculo da Operação Lava Jato e o maior clima de polarização política desde as vésperas do Golpe de 1964?

Na essência, Bobbio distingue a esquerda da direita por meio de sua atitude diante da igualdade.

“Há, de um lado, gente que acredita que os seres humanos são mais iguais que desiguais; de outro, gente que acredita que somos mais desiguais que iguais”, escreve. Ele associa o primeiro tipo à esquerda, que busca direitos sociais como trabalho, saúde ou educação. À direita, associa o reconhecimento da “individualidade irredutível de cada pessoa”. Desmente quem associa a direita à preservação da tradição ou à liberdade. Bobbio põe a oposição entre liberdade e autoridade num eixo distinto. Diz haver liberais de esquerda e de direita; assim como extremistas autoritários nos dois polos, a extrema-direita e a extrema-esquerda. “A diferença entre extremismo e moderação diz respeito aos métodos, enquanto a antítese entre esquerda e direita concerne aos valores. A diferença de valores é mais forte que a de métodos”, afirma.

Objeções de três tipos foram levantadas à definição de Bobbio. Primeiro, que os termos “direita” e “esquerda” perderam sentido preciso e são aplicados a gosto, segundo as dezenas de eixos de oposição disponíveis no mundo contemporâneo (de drogas e aborto a livre-comércio e privatizações). Segundo, críticos identificados com a direita reconhecem que a distinção existe, mas dizem que o critério de Bobbio não é preciso e, elaborado por um filósofo confessadamente de esquerda, atribui ao campo oposto uma característica negativa (“desigualdade”) em vez de uma positiva (“liberdade” ou “individualidade”). Terceiro, críticos identificados com a esquerda afirmam que o critério não é suficiente e deveria incluir na esquerda características como não violência ou liberdade. O debate prossegue até hoje. O mais difícil talvez seja reconhecer que ambos os termos não precisam ter um sentido preciso para despertar paixões. Bobbio deixa em aberto a questão principal: por que eles se tornam tão presentes em momentos de crise aguda, como na Itália de 1994 e no Brasil de 2018, a ponto de definir a identidade política de cada um e cindir a sociedade ao meio?

Do nada para o nada

Os políticos são pessoas que verdadeiramente fazem algo a partir do nada. Pouco de concreto têm a oferecer. Não são engenheiros nem artistas, nada constroem. São manipuladores; oferecem seus serviços de manipulação. Como nada têm a oferecer, raramente sabem o que querem. Por vezes afirmam querer o poder
V. S. Naipaul, Prêmio Nobel morto no fim de semana (1932-2018)

Loteria do bem

Na democracia ateniense a maioria dos cargos de governo era preenchida por sorteio. Escreveu Aristóteles: “O sufrágio por sorteio pertence à natureza da democracia; por eleição, à aristocracia”. Cidades-­Estado italianas do tempo do Renascimento, como Florença e Veneza, também adotavam o sorteio. A superioridade desse método sobre o eleitoral, na construção da democracia, seria reiterada, mais de vinte séculos depois de Aristóteles, por outro luminar de todos os tempos da ciência política, o francês Montesquieu. “O sorteio é um modo de eleger que não prejudica ninguém e que permite a qualquer cidadão ter a esperança de um dia servir à pátria”, escreveu o autor de O Espírito das Leis.Este texto está começando com alta erudição, mas ao pôr os pés no chão o leitor será contemplado com um mimo de inestimável valor: um modo de livrar o Brasil do senador Romero Jucá.

Contra as Eleições é um livro do belga David van Reybrouck publicado no Brasil no ano passado (editora Âyiné). O autor percorre o panorama mundial de desalento com a política e apresenta a volta ao sorteio como sugestão de solução. Para nós, brasileiros, não se trata de método estranho à experiência histórica: no período colonial era assim que se preenchiam os postos nas câmaras municipais. E não se diga que funcionou mal; característica frequentemente esquecida da história nacional é que as câmaras propiciaram às vilas e cidades, não obstante o domínio português, um ininterrupto período de autogoverno. Em Atenas, tirante as mulheres, os escravos e os estrangeiros, todos estavam aptos a participar da política. Entre eles, sorteavam-se os membros da Assembleia dos Quinhentos, o órgão central do aparelho governamental, para mandato de apenas um ano, e direito a apenas uma reeleição, não consecutiva.

À sensibilidade contemporânea parece estranho enaltecer o sorteio em detrimento da eleição e, mais ainda, colocar em polos opostos eleição e democracia. O sorteio é no entanto aceito em diversos países para compor as bancadas de jurados nos tribunais e pelos institutos de pesquisa para auscultar a opinião pública. Junto com a rotatividade, que era outra característica do sistema ateniense, permite a participação na política de número muito maior de cidadãos do que o sistema eleitoral. “A função do ‘político profissional’, que parece completamente normal nos dias de hoje, para um ateniense seria uma coisa estranha, absurda”, escreve Reybrouck. E novamente recorre a Aristóteles: “O princípio fundamental de um regime democrático é a liberdade” (e) “uma marca primordial da liberdade é a de, ao mesmo tempo, governar e ser governado”.

Como transportar um sistema praticado em pequenas comunidades, como as cidades gregas ou as italianas do Renascimento, para os Estados maiores dos dias de hoje? Reybrouck cita autores que vêm se debruçando sobre a questão (ele não é o único) e, principalmente, casos que vêm ocorrendo mundo afora. Um deles foi a “convenção constitucional” instituída na Irlanda em 2013 por um instituto de pesquisa. Um grupo de 66 pessoas, sorteadas por critério de idade, gênero e local de domicílio, foi incumbido de discutir certos temas polêmicos, entre os quais o casamento de pessoas do mesmo sexo. Durante meses o grupo ouviu especialistas e recebeu mensagens de milhares de cidadãos. Era a “democracia deliberativa”, como a chama Reybrouck, em ação. Suas deliberações foram levadas ao Parlamento e, em seguida, a um referendo popular, com o resultado de, num país de forte influência católica, o casamento gay ter sido aprovado. Um órgão similar, trabalhando com independência, e sem as preocupações de eleição e reeleição dos políticos profissionais, quem sabe ajudasse a desatar no Brasil nós como a reforma política.

Reybrouck cita ainda casos no Canadá, na Islândia e no Texas, mas todos, como o da Irlanda, voltados para questões pontuais. Sua aposta maior é numa casa legislativa, pelo menos uma, em nossos modernos Estados nacionais, preenchida por sorteio. Em países como o Brasil, com duas câmaras — uma de deputados, a outra de senadores —, uma seria composta de membros sorteados, e a outra de eleitos. Acrescente-se que, como em Atenas, o mandato dos sorteados seria curto, e obrigatória a alta rotação entre eles, e com isso chegamos à realização do sonho anunciado no primeiro parágrafo. Já imaginaram, leitor e leitora, o alívio cívico de contar com casa legislativa sem um Romero Jucá?

Paisagem brasileira

Casebre (Petrópolis), Oswaldo Teixeira

Mamata suprema

O pedido de reajuste salarial de 16,38% dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), em meio à penúria das contas públicas, é um absurdo sem tamanho. Tão grande é o disparate que a condenação é unânime entre todas as correntes de pensamento. Os ministros dizem que o salário de R$ 33.763 não é suficiente para atender a suas necessidades financeiras e, por isso, os R$ 39,3 mil são essenciais para pôr fim às “perdas salariais dos últimos cinco anos”.

Se aprovada pelo Congresso Nacional, a medida abrirá a porteira para que as diversas categorias de servidores iniciem uma romaria pelos corredores da Câmara dos Deputados e do Senado para que os parlamentares garantam, por meio de leis, mais reajustes salariais. Além disso, outros milhares de trabalhadores da administração pública serão imediatamente beneficiados se o Legislativo elevar a remuneração dos ministros do Supremo.



Dados do Ministério do Planejamento apontam que o reajuste dos salários dos ministros do STF terá um efeito cascata nos vencimentos de 5.773 servidores do Executivo Federal. Nesse número, não são levados em conta funcionários do Legislativo e do Judiciário. A medida deve beneficiar servidores com mais tempo de carreira no Senado e na Câmara, entre eles os consultores legislativos, muitos com o salário equivalente ao de magistrados do STF.

O gasto adicional com o pagamento dos servidores do Executivo será de R$ 18,7 milhões por mês e de R$ 243,1 milhões por ano, caso a proposta receba o aval do Legislativo. O reajuste do teto também atinge os cargos de presidente, vice-presidente e ministros de Estado, que têm a sua remuneração fixada pelo Legislativo. A elevação do gasto na folha de pagamento seria de mais R$ 7 milhões por ano.

Nos casos em que o servidor tem remuneração superior ao teto de R$ 33.763, é realizado um desconto no contracheque, conforme o artigo 42 da Lei nº 8.112/90 (abate-teto). Vale lembrar que o aumento do teto dos ministros do Supremo também teria efeito sobre o vencimento do procurador-geral da República, procuradores, ministros das diversas cortes do país e juízes de primeiro e segundo graus. Sempre que um reajuste é aprovado, há um efeito cascata em todas as esferas do poder público.

A revisão nos contracheques dos ministros do STF também costuma ser acompanha de um aumento nas remunerações de deputados e senadores. Os parlamentares estão envolvidos nas campanhas, mas é possível que, durante os dias de esforço concentrado, o tema seja debatido por eles. Com isso, o impacto final nas contas públicas tende a ser maior do que o esperado.

Se a remuneração dos parlamentares também for revisada, custará R$ 3,3 milhões por mês aos cofres públicos. O impacto anual chegará R$ 42,7 milhões. No fim das contas, o que fica para sociedade é o mau exemplo dos marajás, pouco interessados nos problemas do país e de olho apenas em engordar os contracheques. Vale lembrar que os mesmos ministros que querem um salário de R$ 39,3 mil já recebem auxílio-moradia de R$ 4,3 mil, mesmo tendo residência própria na capital federal.

A tendência é de que os reajustes em cascata aprofundem ainda mais as desigualdades sociais e salariais entre servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada. Os servidores públicos ganham, em média, salário 80,9% maior do que os trabalhadores da iniciativa privada. No Distrito Federal, porém, a desigualdade é ainda maior. Os estatutários têm renda média de R$ 7.335 e os celetistas, de R$ 3.023,03 — diferença de 142,6%.

A participação dos rendimentos dos servidores na massa salarial no Brasil chegou a 31,8% em 2016. No Distrito Federal, no entanto, essa relação é mais do que o dobro: 66,4%. Isso quer dizer que, de cada R$ 100 em salários pagos na capital da República, R$ 66,40 vêm das administrações federal e distrital. Não por acaso, os servidores têm forte influência e são considerados estratégicos para qualquer político que deseje chegar ao poder.

O governo tem encontrado forte resistência dos servidores e do STF para adiar reajustes salariais em busca de alternativas para cumprir a meta fiscal do ano, que prevê um rombo de R$ 159 bilhões. Será o quinto ano consecutivo em que o Brasil gastará mais do que arrecada e a a perspectiva é de que o buraco só seja tapado a partir de 2021 ou 2022.

Com o caixa estrangulado, o Tesouro Nacional tem sido obrigado a se endividar para captar recursos no mercado e não dar calote. O resultado disso é que o nível de endividamento do governo federal terminará o ano próximo de 80% do Produto Interno Bruto (PIB), quase o dobro da média dos países emergentes. Não há mais espaço para essas aberrações. Ou o país equilibra as finanças, ou estará fadado ao pior dos cenários, com inflação galopante, juros exorbitantes e desemprego em massa.

Milhares de empresas fecharam as portas desde 2014 e mais de 13 milhões de brasileiros estão desempregados. Nada mais justo do que os marajás deem sua cota de contribuição para que a economia volte a crescer e para que milhões de pessoas voltem a sonhar com um futuro melhor.

Já está claro que o país precisa passar por mudanças estruturais. E parte desse processo pode ser resolvido em outubro, nas eleições. É fundamental que os eleitores escolham bem quem será o próximo presidente da República. Mais importante, entretanto, será a escolha de deputados e senadores, os representantes do povo que, até aqui, pouco têm se interessado pelos temas essenciais para que o país volte aos trilhos do crescimento. Serão eles que decidirão, de fato, se o Brasil afundará de volta na recessão ou se tornará um lugar melhor para viver.
Antonio Temóteo

Titanic

Faz tempo que o Brasil afunda.
Num ano a corrupção sobeja,
No outro a bandalheira abunda.

Raul Drewnick

Eleger ou derrubar

Em plena campanha, não sei se estamos realmente escolhendo um presidente ou cavando uma crise para que ele se afunde, como afundaram seus antecessores. O Congresso votou uma bomba fiscal e o STF, um aumento que vai repercutir nas contas públicas. No calor da luta política, os candidatos falam em investir. Mas como, se as despesas da máquina do governo vão aumentar?

Tive de explicar a alguns amigos por que tenho uma relação cordial com Bolsonaro. Não sabiam que o conheço há duas décadas, e convivemos no Congresso durante 16 anos e inúmeras viagens Rio-Brasília. Foram 16 anos de divergência no campo dos costumes sem que se tenha perdido o diálogo.

Da mesma forma, conheço quase todos os outros candidatos. Admiro sua coragem. Nunca estive com o Cabo Daciolo, por exemplo, mas o considero uma versão light do russo Iorudivi, um louco de Deus.

Ele não usa correntes amarradas no corpo, mas tem as mesmas visões de cura. Daciolo afirmou que soube por Deus que a deputada Mara Gabrilli iria andar em breve.


São homens e mulheres que se dedicam a uma tarefa muito difícil. É possível que alguns não saibam o quanto. E que alguns tenham até má intenções.

Considero fundamental que todos possam apresentar suas ideias. Na última eleição entrevistei os que estavam fora do debate, porque não pontuaram o suficiente nas pesquisas.

Certamente o farei de novo, com a tática de sempre: nem cúmplice nem algoz. Tudo o que posso fazer é estender uma corda para que escalem a montanha ou se enforquem.

Quanto mais transparência, pelo menos teoricamente, chega-se mais facilmente a uma boa escolha. É possível dizer que nem sempre foi assim, e nem sempre será. Mas não há outra lógica melhor.

Nunca fui tao moderado, reconheço. Mas uma leitura cautelosa destas eleições mostra esquerda fragmentada, direita em ascensão, crise econômica. Para quem conheceu outros momentos históricos, essa combinação é perigosa.

O sistema político-partidário, do qual participei ao longo de alguns anos, está em frangalhos e só se sustenta movido a muito dinheiro público. Terminou um período de redemocratização que deixa grande número de descrentes na importância da própria democracia.

A primeira preocupação é não jogar fora o bebê com a água de banho. O processo democrático precisa se aprofundar, mas em novas bases.

De um modo geral, somos muito atentos aos golpes de Estado, mas subestimamos as outras formas que ameaçam a democracia através de sua erosão cotidiana. A melhor maneira que me ocorre é buscar algum consenso na análise de conjuntura. A esquerda comprometeu sua influência cultural em vários momentos. O mais grave deles foi a corrupção que atingiu sua credibilidade.

Mas, no meu entender, teve peso também aplicar políticas estatais que mexem com o cotidiano, sem um consenso majoritário, apenas por ter vencido as eleições. Essa suposição de que a minoria iluminada precisa conduzir o país em alguns temas da vida produz muitos ressentimentos.

O próprio Supremo, ao discutir a questão do aborto, corre o risco de decidir pelo Congresso, algo que não acontece em muitos países em que o Parlamento funciona. O argumento contrario é de que as coisas demoram a acontecer sem uma intervenção da vanguarda. No entanto, escolhas feitas por uma elite acumulam resistências que contribuem para movimentos contrários com resultados imprevisíveis.

Não tenho a pretensão de ter o segredo para repactuar o diálogo político no país. A única formula que conheço é tentar suprimir ofensas e se concentrar na troca de ideias.

As ofensas acabam reforçando emocionalmente soluções simples para problemas complexos. Ideias geram dúvidas, suscitam revisões — enfim, são o melhor veículo para sair dessa maré.

Os debates entre candidatos começaram. Ainda há pouco de linguagem egocêntrica, cada um repisando suas teses, sem levar em conta a pergunta. A tarefa agora é levá-los à maior clareza possível não só sobre o que vão fazer, mas como vão fazer e com que dinheiro, nesse pântano fiscal em que nos metemos.

Precisamos escolher alguém para eleger, e não para derrubar no ano seguinte.

Dinheiro oculto em paraísos fiscais patrocina o desmatamento na Amazônia

Boa parte do dinheiro escondido nos paraísos fiscais acaba financiando a pesca ilegal e o desmatamento amazônico. É o que mostra um estudo que analisou os escassos dados públicos existentes sobre os movimentos desse capital opaco e seu impacto ambiental. Os resultados mostram que a maioria dos pesqueiros investigados por exaurir os mares tinha bandeira de conveniência. Enquanto isso, boa parte do investimento estrangeiro na pecuária e no cultivo de soja que estão desmatando a Amazônia procedem de paraísos como o Panamá, ilhas Cayman e Bahamas.

Embora não sejam ilegais, os paraísos fiscais atraem capitais privados ou a transferência de lucros entre empresas matrizes e subsidiárias que escapam ao controle dos Estados, prejudicando as sociedades onde esse dinheiro foi gerado, por causa da evasão de impostos. Essa falta de solidariedade causa as ondas de demissões e denúncias políticas sempre que eclode um escândalo relacionado a esses paraísos, como o dos Panama Papers. Agora, uma investigação do Centro da Resiliência de Estocolmo (SRC, na sigla em inglês) mostra que essas jurisdições também danificam o meio ambiente.

Combinando dados da Interpol, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a base de dados de gestão pesqueira, os autores do estudo identificaram 200 navios envolvidos na pesca ilegal ou irregular. Não são muitos em comparação com os 250.000 barcos pesqueiros registrados pela FAO. O chamativo é que 70% desses navios tenham uma bandeira de conveniência de um desses paraísos fiscais, encabeçados por Panamá e Belize. A percentagem é ainda mais significativa levando-se em conta que só 4% da frota registrada na base da FAO tem bandeira de um desses países.

“Embora o número real de navios seja insignificante em comparação com o registro da FAO, o percentual não é. E isto é o que importa em nossa análise, os 4% versus os 70%”, diz Jean-Baptiste Jouffray, pesquisador do SRC e coautor do estudo. Essa concentração não diria muito se se repetisse em outros tipos de navios, como os cargueiros e petroleiros, que também costumam usar bandeiras de conveniência, algo que não acontece. “Por exemplo, a Mongólia tem um dos maiores cadastros de navios do mundo, embora não tenham nem um só quilômetro de litoral. Então procuramos na base de dados da FAO para pôr em perspectiva esses 70% e destacamos que era bastante estranho que os navios pesqueiros se concentrassem em jurisdições de paraísos fiscais”, acrescenta Jouffray.

O estudo, publicado na revista Nature Ecology & Evolution, quantifica também o capital estrangeiro que chega a dois dos setores que mais contribuem para o desmatamento amazônico: a pecuária e a soja, responsáveis por 80% do desmatamento da selva. Usando dados do Banco do Brasil, o trabalho mostra que o equivalente a 104,4 milhões de reais de capital externo chegaram às principais empresas desses setores entre outubro de 2000 e agosto de 2011, o período coberto pelos dados. Desse dinheiro, algo em torno de 71 milhões procedia de paraísos fiscais, com as ilhas Cayman à frente.

“No Brasil, no conjunto da economia e com relação a 2011, 17% do capital estrangeiro procedia desses paraísos fiscais, mas para o setor pecuarista e sojicultor foi de 68%”, comenta Víctor Galaz, autor principal do estudo e diretor-adjunto do SRC. As vantagens dos paraísos fiscais são bem conhecidas: seu know-how jurídico e fiscal, impostos mínimos e opacidade. Mas a razão para setores tão agressivos ambientalmente aparecerem mais conectados que outros com os paraísos fiscais é uma questão para a qual, como diz Galaz, “não temos respostas”.

O estudo tampouco responde à seguinte pergunta: o que há por trás dos paraísos fiscais? De onde vem o dinheiro ricocheteado a partir de lá? Para Javier Gódar, especialista da organização SEI e estudioso dos agentes por trás do desmatamento amazônico, não se deve demonizar os paraísos fiscais. “O impacto ambiental provavelmente não seria muito atenuado se não fossem usados. Afinal, os paraísos fiscais são um veículo para economizar um dinheiro, mas as pessoas não podem simplesmente colocar o foco ali e esquecerem do que fazem seus Governos, bancos, fundos de pensões, a economia privada etc.. “E, no final da cadeia, estão os consumidores desse peixe, dessa carne e dessa soja.”