sábado, 9 de março de 2019

Pensamento do Dia


Pesquisa inédita mostra quais partidos usaram mais mulheres para burlar cotas em 2018

Você sabe qual o tamanho do "laranjal" que a eleição de 2018 produziu no Brasil? Uma pesquisa inédita de professoras de universidades nos Estados Unidos e no Reino Unido, divulgada com exclusividade pela BBC News Brasil, revela quantas candidatas laranjas cada partido lançou para a Câmara dos Deputados.

Nas últimas semanas, denúncias envolvendo uso de candidaturas de fachada pelo PSL na eleição do ano passado levaram à queda de Gustavo Bebianno, da Secretaria-Geral do Governo da Presidência, e à abertura de investigações para apurar o envolvimento do atual ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, no esquema.

Agora, pesquisa das professoras Malu Gatto, da University College London, e Kristin Wyllie, da James Madison University, revela a dimensão do uso de laranjas para burlar a lei de cotas femininas e a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de exigir que os partidos destinem 30% dos recursos do fundo de campanha para candidaturas femininas.



A palavra "laranja" costuma ser empregada para retratar alguém que assume uma função no papel, mas não na prática. Na definição usada pelas duas pesquisadoras, um candidato laranja seria um candidato de fachada - que entra nas eleições sem a verdadeira intenção de concorrer, mas para servir a outros interesses.

As pesquisadoras dizem acreditar que as candidaturas laranjas, além de burlar a lei de cotas, servem para que recursos do fundo de campanha sejam repassados a candidatos homens.

Segundo o levantamento de Gatto e Wyllie, 35% de todas as candidaturas de mulheres para a Câmara dos Deputados na eleição de 2018 não chegaram a alcançar 320 votos. Ou seja, foram candidatas que, ao que tudo indica, sequer fizeram campanha, o que sugere que foram usadas apenas para cumprir formalmente a lei de cotas.

O estudo também mostra que, 20 anos após a introdução da lei de cotas, em 1998, pouco se avançou na representatividade de mulheres na Câmara. De 1998 a 2018, o percentual de deputadas passou de 5,6% para 15%. "Ainda é um percentual muito baixo, o menor da América Latina, empatado com o Paraguai", destacou Gatto, em entrevista à BBC News Brasil.

Em vez de "cumprir o espírito da lei", que é aumentar o número de mulheres no Legislativo, os partidos passaram a usar cada vez mais laranjas para burlar a regra.

Das candidatas do PSL para a Câmara dos Deputados, 16% podem ter sido "laranjas" - na definição usada pelas duas professoras. Partidos da oposição também apresentaram número significativo de candidatas sem expressão. No caso do PT, o percentual foi de 11%.

E algumas legendas chegaram a ter mais de 30% de possíveis laranjas dentre as candidatas a deputada federal (confira a tabela mais abaixo na reportagem).

Entre os critérios adotados pelas pesquisadoras para uma candidatura ser classificada como laranja está receber menos de 1% dos votos obtidos pelo candidato eleito menos votado no Estado.

No caso das eleições de 2018, o deputado federal eleito menos votado de todo o Brasil foi o Pastor Manuel Marcos (PRB), do Acre, que recebeu 7.489 votos. Em São Paulo, o menos votado foi Guiga Peixoto (PSL), com 31.718.

Portanto, no Acre, para ser considerada laranja, uma candidatura precisa ter obtido menos de 75 votos. Em São Paulo, o critério é receber menos de 317 votos.

Mas o estudo não levou em conta apenas o número de votos para identificar o uso de "laranjas".

Para verificar se as candidatas femininas eram apenas pouco competitivas ou se estavam sendo usadas como laranjas, as duas pesquisadoras fizeram uma comparação entre a competitividade de candidatos homens e mulheres em cada partido, ao longo dos últimos 24 anos.

Gatto e Wyllie descobriram que, enquanto a proporção de candidatos homens não competitivos permanece estável, a de candidatas mulheres aumenta significativamente à medida que a lei de cotas femininas é reforçada, por exemplo, com punições mais severas pelo TSE aos partidos que não alcançam a cota de 30%.

Ou seja, os partidos passaram a indicar mais mulheres como candidatas, mas apenas para "constar" e evitar que fossem punidos por não cumprirem o percentual mínimo.

"O que os números mostram é que não é uma questão de competitividade, porque, de 1998 a 2018, as candidaturas laranjas de mulheres aumentam muito como resposta às mudanças na lei de cotas. E a quantidade de candidaturas não competitivas de mulheres é muito desproporcional na comparação com as dos homens", explicou Gatto, em entrevista à BBC News Brasil.

A professora da University College London afirma que, em grande parte dos casos, as "laranjas" são mulheres filiadas aos partidos que concordam em ter o nome registrado na eleição e sabem que a candidatura não é "real".

Ou seja, estão cientes de que não haverá qualquer empenho da legenda ou recursos para que seja eleita. Muitas aceitam com a promessa de serem candidatas efetivas na eleição seguinte.

"Há casos de mulheres que nem sabiam que eram candidatas, mas são mais raros. Geralmente elas sabem que integram a lista, concordam em ter os dados utilizados para o partido cumprir com as cotas e têm ciência de que não estão competindo", afirma Gatto, que é doutora em política pela Universidade de Oxford e pós-doutora pela Universidade de Zurique, na Suíça.

Nem todas as candidaturas laranjas apontadas pela pesquisa foram, necessariamente, usadas para desviar recursos do fundo partidário para candidatos homens, como teria ocorrido no suposto esquema de candidaturas de mulheres do PSL em Minas Gerais.

Segundo reportagem do dia 4 de fevereiro da Folha de S.Paulo, quatro candidatas a deputada federal pelo PSL-MG receberam R$ 279 mil de verba pública de campanha, sendo que pelo menos R$ 85 mil foram destinados a empresas de assessores, parentes ou sócios de assessores do atual ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, que era presidente do PSL em MG e foi o deputado federal mais votado no Estado.

Conforme a reportagem, as quatro mulheres do PSL receberam, juntas, apenas 2 mil votos. Álvaro Antônio nega irregularidades.

"Você pode ter candidaturas laranjas para burlar a lei de cotas e ter candidaturas laranjas que servem, também, para receber recursos do fundo de campanha e repassá-los a candidatos homens", explica Gatto.

Ela concentrou sua pesquisa no primeiro caso, mas defende que as candidaturas de mulheres que receberam poucos votos e muitos recursos do fundo partidário sejam alvo de fiscalização pelo TSE.

"A discrepância é um indicativo de que algo não está certo." 

Trova da 'santidade'

Os honestos são tão poucos
e os desonestos são tantos,
que aqueles parecem loucos
e os ladrões se julgam santos.

Othon Costa

Quando a violência vira rotina, tendemos a ignorá-la

Sábado passado acordei em Nantes, na França, para participar de um festival literário. Passei a manhã fechado no meu quarto, no hotel, a trabalhar num novo romance. Saí por volta do meio-dia, para almoçar com uma das voluntárias da organização, Cristiane, uma simpática catarinense radicada em França. Após o almoço, já no regresso ao hotel, fomos surpreendidos por policiais, todos vestidos de negro, com escudos e bastões, que corriam na nossa direção. “Não se preocupe”, disse Cristiane, enquanto me arrastava ao longo de ruelas cada vez mais estreitas: “Todo o sábado tem manifestações dos coletes amarelos. Esta é a 16ª”.

Acabamos emergindo numa avenida larga, exatamente diante dos manifestantes e dos policiais. Escutei explosões e vi, a poucos metros, erguerem-se as nuvens de gás lacrimogêneo. Cristiane não prestou a menor atenção. À nossa volta havia casais se beijando e doces velhinhas passeando os cachorros. Nenhum deles se voltou para observar os confrontos. Nessa tarde participei de uma sessão de autógrafos. Ao regressar ao hotel, sozinho, voltei a deparar-me com os manifestantes, os policiais, as explosões e o gás lacrimogêneo. Entrei numa "boulangerie", comprei um croissant recém-saído do forno, e voltei a sair, esquivando-me dos policiais e dos manifestantes, com a mesma distraída elegância dos franceses legítimos.

As primeiras manifestações dos coletes amarelos na França agitaram a sociedade e mereceram cobertura internacional. Agora já só inquietam os turistas desavisados.

Habituamo-nos a tudo. Quando a violência se transforma numa rotina, tendemos a ignorá-la. Se acordar a meio da noite, em Luanda ou no Rio de Janeiro, com o pipocar de uma arma automática, viro na cama e volto a dormir. Se isso acontecer em Lisboa, contudo, já não durmo mais. Telefono aos amigos. Ligo a televisão para saber se está em curso um golpe de Estado.

É porque nos habituamos à violência — em todas as suas múltiplas formas, da pobreza à destruição do patrimônio natural, passando pelo machismo, o racismo, a estupidez de alguns políticos ou a deselegância arquitetônica — que esta se torna tão difícil de vencer.

Pensemos em Donald Trump, por exemplo. Os americanos habituaram-se aos disparates do seu presidente, tolerando nele afirmações e comportamentos que teriam ferido de morte política, e atirado para o mais remoto dos degredos, qualquer um dos seus antecessores. Conseguem imaginar George H. W. Bush ou Barack Obama a proferir uma daquelas frases inacreditáveis sobre a relação entre homens e mulheres com as quais Trump se imortalizou? Pois é, eu também não consigo.

E é este o perigo: terminarmos aceitando o inaceitável, pela força do hábito. Porque a princípio Donald Trump até era engraçado. Porque um palhaço é inofensivo. E depois, porque é o estilo dele, um tanto rude, mas direto; porque fala a linguagem do povo; porque uma vez no poder irá moderar a linguagem e rodear-se de conselheiros sábios etc...

Só há uma alternativa: a revolta. Isso, contudo, implica repensar utopias, criar redes de pensamento e de debate, ocupar as ruas. Bem sei, defender a democracia dá uma trabalheira danada. Mas, se não for agora, amanhã pode ser demasiado tarde. 

Governo quer digital da esquerda na faca

Sem essa de que Adélio Bispo, o pedreiro desempregado que esfaqueou Jair Bolsonaro em Juiz de Fora, agiu sozinho, por vontade própria e que sofra de doença mental como atestaram 7 peritos indicados pela Justiça Federal.

Busque-se para o caso uma solução plausível que não seja essa, recomendou o general Otávio Rêgo Barros, porta-voz da Presidência. O segundo inquérito feito pela Polícia Federal está perto do fim e o governo se recusa a aceitar seus resultados.


Para o governo, só existe um resultado plausível: ex-filiado ao PSOL, Adélio tentou matar Bolsonaro a mando da esquerda, e ponto final. Do contrário, como justificar a narrativa sustentada até hoje por Bolsonaro e seus devotos de que por pouco a esquerda não o matou?

A narrativa serviu para que o candidato se elegesse, e serve agora para que o presidente governe em oposição à esquerda. Sem a facada, Bolsonaro teria dificuldades para se eleger. Sem a impressão digital da esquerda na faca, terá dificuldades para governar.

Falou-se muito do PT como dependente de Lula, e isso está certo. Os devotos de Bolsonaro resistem a ideia de que ele seja dependente do PT. É o que ele é. Boa parte dos 58 milhões de votos que obteve foi de eleitores que queriam derrotar o PT e não necessariamente elegê-lo.

É de se ver como desatará esse nó o ministro Sérgio Moro, ao qual se subordina a Polícia Federal. Até aqui, ele tem se comportado como um fiel vassalo do presidente.

Brasil, um novo jeito de governar


A chave da democracia americana

A chave para o entendimento do sistema institucional americano é a distinção que eles fazem entre “direito negativo” e “direito positivo”.

“Direito negativo” é o de não ser submetido à ação coercitiva de outra pessoa ou do governo. Eles o têm por um direito natural, também dito de 1a geração. Nasce com e pertence a todas as pessoas, e está garantido enquanto ninguém agir para violá-lo. A common law, o direito baseado na tradição que foi comum a toda a Europa mas só sobreviveu na Inglaterra depois do advento do absolutismo monárquico que o nosso “direito romano” foi inventado para sustentar, fixa os círculos do espaço individual que as pessoas naturalmente sabem que não devem invadir: o do corpo, o do lar, o dos pertences, o da propriedade. Essa é a base do “direito negativo”. E desses círculos decorrem os seus desdobramentos civis e políticos, ditos de 2a geração, os direitos à vida, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à legítima defesa, ao habeas corpus, a um julgamento justo, etc.

Já os “direitos positivos”, ditos de 3a geração, são os que requerem a ação de uma terceira pessoa para serem exercidos por quem vai desfrutá-los. Enquanto um “direito negativo” proíbe alguém ou o governo de agir contra o seu beneficiário, um “direito positivo” obriga outras pessoas ou o governo a agirem em benefício do seu detentor. Incluem-se nesse departamento os direitos sociais e culturais tais como à comida, à habitação, à educação, a um emprego, à saude, à seguridade social, ao acesso à internet ou o que mais se quiser incluir na lista que, no Brasil, por exemplo, é infindável.Lá a constituição da União, elaborado pelos “pais fundadores” iluministas, contempla exclusivamente os “direitos negativos” o que, na medida em que ela subordina todas as outras leis, estabelece a prevalência destes sobre os “direitos positivos”. Diz, no preâmbulo, que todo poder emana do povo que o delega aos seus representantes eleitos por sufrágio universal e define nos seus sete artigos, pela ordem, o congresso dos representantes do povo, a presidência, o judiciário, as relações entre os estados e deles com a União e as regras para emendar a constituição. As emendas da 1a à 8a garantem os já citados direitos de 2a geração que decorrem dos círculos de inviolabilidade do indivíduo. E a 9a e a 10a (para encerrar a disputa de egos entre os convencionais de 1787 que queriam cada um enfiar um direito a mais) declaram que tudo que não está formalmente proibido até ali “são direitos que pertencem ao povo ou aos estados”. Todos os temas da alçada do “direito positivo” que recheiam de ponta a ponta a nossa constituição federal lá ficam, portanto, restritos às constituições estaduais e municipais.

E aí vem o pulo do gato.


Como todo “direito positivo” (artificialmente criado) implica uma violação do “direito negativo” (inato, natural) de não ser coagido a nada nem ter o que é seu apropriado pelos outros, eles só podem ser criados, nos países de common law, por contrato, isto é, se todas as partes envolvidas concordarem com isso numa votação. E como cada “direito positivo” tem um custo o projeto que o propõe tem de incluir obrigatoriamente o seu esquema de financiamento: qual será a despesa, quem arcará com ela, como e quando ela será paga.Ou seja, não existe a hipótese de se fazer caridade com dinheiro alheio. Quem se dispuser a tanto deve usar o seu próprio.

Correndo em paralelo com a diferenciação entre “direito negativo” e “direito positivo” está o princípio do federalismo, a mais forte garantia em países de dimensão continental e ampla diversidade de situações de que o sistema estará sempre voltado para servir o indivíduo e jamais poderá acumular poder suficiente para voltar-se contra ele. Cada instância de governo – a municipal, a estadual e a federal – é definida em função do seu grau de proximidade do indivíduo e deve ser absolutamente soberana até o limite do alcance dele. Tudo que diz respeito a uma única comunidade – a escolha do seu modelo de governo, policiamento local, saneamento, vias publicas, educação, saúde, proteção contra incêndios, normas de comércio, etc. – deve ser decidido e custeado por ela própria e mais ninguém, respeitadas as linhas básicas da constituição. Só aquilo que envolver mais de uma comunidade – estradas, transporte intermunicipal, circulação de bens, repressão ao crime, sistema penal, etc. – deve ficar a cargo dos governos estaduais. E somente o que não pode ser resolvido por um único governo estadual fica a cargo da União.Acrescenta-se finalmente à fórmula um sistema preciso de representação dos eleitores em cada uma dessas instâncias de governo, o que se consegue com eleições distritais puras em que cada distrito elege apenas um representante. Tudo começa pela eleição do conselho que vai dirigir cada escola publica entre os moradores de cada bairro do país. E daí vai subindo para os municípios, para os estados, para a União. Sempre com cada representante, com base no endereço, sabendo exatamente quem é cada um dos seus eleitores. Sempre com cada representado guardando o poder de manter ou não o seu representante até o fim do mandato (recall ou retomada de mandatos), de obriga-lo a tratar dos assuntos que ele indicar (leis de iniciativa popular), de impedi-lo de impor-lhe o que quer que seja (referendo das leis vindas de cima), de afastar juízes lenientes ou enviesados (com eleições periódicas de retenção ou substituição de juízes).

Com essas liberdade e flexibilidade, aos poucos o sistema foi evoluindo segundo a necessidade e a preferência de cada comunidade. O bairro vota – sim ou não – um melhoramento da escola a ser pago com um aumento temporário só do seu IPTU, a cidade, a contratação de mais policiais ou a construção de um novo hospital mediante um aumento temporário da taxa local de comércio, o estado uma nova estrada a ser paga pelos seus usuários mediante pedágio…

E fez-se a luz … sempre na medida e no preço exatamente desejados.

Venezuela inspira cuidados

Fui quatro vezes à fronteira com a Venezuela. A última jornada, entrega de caminhões com comida e remédio, acompanhei de longe. A sensação que tenho é de que algumas pessoas superestimaram a possibilidade da queda imediata de Maduro. Esperam um nocaute numa luta que só poderia ser ganha por pontos. E de certa forma a luta foi ganha. A violência contra os manifestantes e o incêndio dos caminhões contribuíram para isolar um pouco mais o ditador bolivariano.

Numa luta ganha por pontos, o vencedor também sofre alguns golpes. O grupo de países que apoiou Juan Guaidó utilizou um grande símbolo, que é a ajuda humanitária, mas parece ter-se esquecido de que outras crises surgem constantemente no mundo. E um dos princípios da ajuda humanitária é exatamente não usá-la para proselitismo político.

Se entendi bem os informes acerca da reunião sobre a Venezuela na Colômbia, havia uma divergência latente entre a posição brasileira e a norte-americana. Creio que essa divergência pode ser encontrada numa frase que os americanos usam com frequência: todas as opções para derrubar Maduro estão sobre a mesa. A julgar pelo general Hamilton Mourão, que representou o Brasil, há pelo menos uma opção que não nos interessa: a intervenção militar.

Há muitas razões para o Brasil descartar essa hipótese. Uma delas é o fato de termos uma fronteira comum e uma série de questões que precisam ser resolvidas bilateralmente. Um clima de guerra poderia atrair milhares de novos refugiados. Apesar do indiscutível poderio militar dos EUA e das forças bem equipadas da Colômbia, a vitória rápida na Venezuela não é tão previsível.

O centro de todas as táticas, no momento, é tentar descolar as Forças Armadas venezuelanas da ditadura de Maduro. Daí a insistência nas promessas de anistia e o apelo aos oficiais para que pensem no futuro. No entanto, a resistência a uma intervenção militar não surgiria apenas nas Forças Armadas. Há os paramilitares organizados por Maduro e possivelmente orientados pelos cubanos. E há uma polícia política que só teria a perder com a queda do regime.

Mesmo entre os militares há os que parecem imunes a qualquer proposta de anistia. São os generais que ocupam postos no governo e obtêm neles grandes vantagens financeiras. Podem até achar interessante a ideia de uma velhice tranquila. Mas dificilmente se disporão a perder os ganhos materiais que recebem de Maduro em troca de apoio.

É um caminho complicado. Guaidó definiu-o bem, afirmando que a ditadura não cairá por si própria. Não só Maduro pode refugiar-se no seu bunker em Miraflores, como existem centenas de pessoas dispostas a se imolar pelo socialismo do século 21.

O general Mourão também disse algo que me parece correto: a Venezuela não consegue sozinha se livrar desse esquema de dominação. Se Maduro não renuncia, a intervenção militar é inviável e a Venezuela não pode resolver a parada sozinha, o que nos resta como alternativa?

Guaidó marcou nova manifestação para amanhã. Ele, que parece ter capturado a simpatia de grande parte do povo, seguirá nesse caminho. Mas sabemos que nem sempre as manifestações se mantêm quando não conseguem resultados práticos. Elas tendem a refluir com o tempo, para reaparecer adiante, às vezes com mais força.

Articular a pressão interna e externa parece-me no momento a melhor saída, ainda que tome mais tempo. O sofrimento do povo venezuelano é um dado que leva muitos ao desejo de rapidez e nocaute.

Nem sempre soluções fulminantes são as menos dolorosas. Há outras ditaduras no mundo. Algumas são tratadas pela comunidade internacional com certa tolerância. Não só a Arábia Saudita, como a Coreia do Norte são objeto de táticas diferentes dos EUA. Há nisso tudo outra questão delicada: combinar com os russos. E os chineses. Ambos financiam a Venezuela e possivelmente têm sua dívida paga com petróleo. Assim como é necessário tranquilizar os militares com anistia, seria preciso convencer os russos e chineses de que não terão perdas econômicas com a mudança.

Não sei qual é a posição de Guaidó sobre isso. Mas como seu objetivo é conduzir a transição para a democracia, realizar eleições, não só ele, como outros atores da oposição vão precisar se manifestar sobre isso. Naturalmente, Maduro e a cúpula do governo podem também ser alcançados por uma política de anistia e retirada segura da Venezuela.

Imagino como algumas pessoas podem torcer o nariz para essas hipóteses. Combinar com os russos? Deixar Maduro escapar do país? São as contingências de uma vitória por pontos, diferente de simples nocaute.

Supor um caminho mais radical e de curta duração pode trazer sérias consequências, e não só as sangrentas de uma guerra no continente. São também as constantes decepções das pessoas que acreditam que um regime comunista, apoiado pelos cubanos, vai deixar a cena, refugiando-se numa embaixada ou pura e simplesmente partindo num avião de carreira.

Não creio que o Brasil deva temer uma posição moderada. Afinal, embora exista um esforço muito amplo para derrubar Maduro, as consequências do processo violento vão ser mais sentidas nos países vizinhos. Outro dia, em Pacaraima, segui uma ambulância militar venezuelana. Quando chegou a Boa Vista foi direto para o Hospital Geral e desembarcou um jovem soldado que precisava de ajuda.

Isso me fez pensar. Se até os militares cruzam a fronteira em busca de ajuda médica, qual o papel de Roraima num cenário de guerra? Volta e meia há apagões em Boa Vista. A energia vem da Venezuela. Estamos prontos para substituí-la?

O próprio Maduro, ao condenar a ajuda humanitária, de certa forma poupou o Brasil. Disse que tinha dinheiro para comprar nossa carne, nosso arroz e nosso leite em pó. Não é verdade, mas é uma nuance. E, em política, nuance conta. Ele não ignora que o Brasil quer derrubá-lo. Mas distingue o método dos adversários.

Damares inventa a ideologia do espancamento

Damares Alves, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, suprimiu do seus hábitos o espanto. Vivendo sem horror, ela enxerga a assombração da ideologia em toda parte. E pronuncia barbaridades sem fazer a concessão de um ponto de exclamação. Nesta sexta-feira, Dia Internacional da Mulher, Damares associou os crimes tipificados na Lei Maria da Penha à ideologia de igualdade gênero.

Eis o que declarou Damares numa solenidade de lançamento de campanha contra a violência doméstica: "Os meninos vão ter que entender que as meninas são iguais em direitos e oportunidades, mas são diferentes por serem mulheres. E precisam ser amadas e respeitadas como mulheres. Enquanto nossos meninos acharem que menino é igual a menina, como se pregou no passado, algumas ideologias ... já que a menina é igual, ela aguenta apanhar."

O que fazer? Para Damares, a saída está em reforçar estereótipos que as mulheres modernas tentam exorcizar. "Nós vamos ensinar nossos meninos nas escolas a levar flores para as meninas. Por que não? A abrir porta do carro para mulher, por que não? A se reverenciar para uma mulher, por que não? Não vamos estar colocando a mulher em condição de fragilidade. Mas vamos elevar a mulher para o patamar de um ser especial, pleno e extraordinário. E é isso que a gente quer fazer lá na escola."

Quer dizer: depois de suas lições sobre moda ("menino veste azul e menina veste rosa"), Damares aventura-se no campo da ciência comportamental para inventar uma nova corrente de pensamento. Numa solenidade em que o ministro Sergio Moro (Justiça) defendeu a massificação do uso de tecnologias como tornozeleira eletrônica e botão do pânico contra agressores de mulheres, a pastora Damares lançou as bases da sua ideologia do espancamento.

Quando uma ministra que supostamente representa os interesses das mulheres confunde as gentilezas da cultura machista com política pública e avalia que flor é o melhor remédio contra a estupidez masculina, fica mais fácil entender porque a pancadaria doméstica desabrochou no Brasil.