quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Cinzas sem carnaval

É possível ter cinzas sem ter feito fogo? Como penitenciar-se, se não houve pecado porque a carne não foi levada (<em>carne-vale</em>)? Não temos cinzas numa Quarta-feira de Cinzas.

Mas como podíamos nos esbaldar num tempo de pandemia — um tempo em que a morte não era fantasia, mas realidade?

A pandemia tem sido um carnaval de lágrimas e mortes, e a vacinação, que seria sua Quaresma, foi mal planejada e sabotada. As cinzas desta singular Quarta-Feira de Cinzas repetem sombras, e não a sensualidade luminosa e perdoável da folia carnavalesca.

Estes dias cinzentos levam a outros tempos igualmente ansiosos. É impossível não sussurrar, com Carlinhos Lyra e Vinícius de Morais, a “Marcha da Quarta-feira de Cinzas: “Acabou o nosso carnaval/ Ninguém ouve cantar canções/ Ninguém passa mais brincando feliz/ E nos corações/ Saudades e cinzas foi o que restou.../ Pelas ruas, o que se vê/ É uma gente que nem se vê/ Que nem se sorri, se beija e se abraça/ E sai caminhando/Dançando e cantando cantigas de amor...”



Seria possível tornar o carnaval, cuja origem e legitimidade é religiosa e cujo desenho remete a oposições cósmicas, um feriado normal, objetivamente histórico ou cívico, em que se comemora algo concreto?

Tenho dúvidas, porque jamais pensei em testemunhar um adiamento do carnaval, inesperadamente misturado a uma pestilência. Se é impossível transferir o 7 de setembro, o 15 de novembro, o fim do ano — ou o aniversário de casamento que você sempre esquece —, como fazer o mesmo com uma festa cósmica. Uma festa que, no credo católico, inventa o próprio tempo, pois demarca o nascimento, o sacrifício e a ressurreição de Deus na sua figura humana.

Tudo pode ser mudado, doutor, ouço um leitor. Sem dúvida, mas dá trabalho...

Um Brasil sem carnaval seria tão impensável quanto um purgatório sem almas. Ou um mundo pós-moderno sem turismo e sem as tais “aglomerações” (sem o “movimento”) que nos tornam humanos da espécie cosmopolita. Sapiens  turísticos em constante movimento. Seres insaciáveis e alertas para a última novidade. Consumistas radicais que sabem do seu lugar de fala bem como dos seus desejos, mas não compreendem bem seus limites — essas disciplinas das quaresmas que também fazem parte da vida.

O carnaval não acabou. Ele foi adiado ou controlado — tal como a parte mais prazerosa de nossas vidas, devido a uma imprevista pandemia.

Quem jamais viu a morte não acredita que pessoas possam morrer contaminadas por um vírus invisível, silencioso e, tal como Deus, onipresente. Quem jamais suspeitou de sua onipotência, como quem nos governa e desgoverna, nada entendeu e ainda pensa que se trata de uma reles gripezinha.

Mas tem sido esse vírus que põe à prova nossa humanidade mostrando o que temos de pior e de melhor; e como essas dimensões — exatamente como o excesso e a disciplina (gozo e penitência) — estão interligadas.

Sem Rei Momo, fomos direto do mundo das agonias e da morte a essas cinzas do calendário católico. Esse outro lado da moeda carnavalesca, a que se junta, como num velho sermão ou milagre, um vírus revelador de uma inesperada fragilidade e, com ela, de uma esperançosa generosidade. Num mundo que nos destina ao individualismo, a pandemia nos mostra que, além de pertencermos a nós mesmos, pertencemos também a outras pessoas.

O “corona” nos esfrega na cara nossa humanidade. É tão simples quanto o riso carnavalesco que passou sem ser. Somos humanos e iguais, porque somos mortais e humanos.

A face nua e crua da morte que é o próprio real ou limite nos obriga a enxergar o todo e como esse todo é tão mal administrado por seus donos e proprietários.

Penso que o próprio adiamento (sem brasileiramente abrir mão do feriado) é um sintoma de mudança, porque o carnaval — conforme acentuei na minha obra pouco lida em Jumentolândia — é um rito de passagem de calendário tal como, em 1909, classificou o antropólogo Arnold Van Gennep no seu clássico “Os ritos de passagem”. Nesse sentido, o deslocamento do carnaval como uma defesa contra a pandemia tem um claro e sensato motivo sanitário, mas deixa em aberto a observância, reitero, de um tempo transcendente ou axial.

Minhas crônicas das Quartas-feiras de Cinzas reiteram uma velha pergunta. Afinal de contas, o que festejamos no carnaval? Essa festa sem sujeito e do riso? Nesse encontro que, no Brasil, é marcado pela igualdade do anonimato?

A pandemia, além de vidas, roubou também o carnaval e as máscaras que nele usávamos como sinal de que ninguém precisava saber com quem estava falando...

Se há angústia nas quarentenas da doença, enorme feriado carnavalesco (talvez único no mundo) nos leva a essa Quaresma especial. A 40 dias sem as honrosas dívidas dos “trabalhos” ou coerções de Dom Carnal. Eis um feriado singular. Uma pausa para nada fazer depois de uma festa em que tudo era possível, mas que não aconteceu.

Brasil vai de maca

 


A macabra e psiquiátrica paixão de Bolsonaro pela pólvora

Se algo caracteriza a idiossincrasia de Bolsonaro é sua paixão pelas armas, por tudo o que cheira à pólvora. Além do tiro ao alvo ser um dos seus esportes preferidos, sua ânsia por armar até os dentes os brasileiros revela seguramente um distúrbio psiquiátrico que não sei se tem nome científico. Dizer que “o povo está vibrando” de felicidade por poder possuir tantas armas revela mais, talvez, sua obsessão macabra pela violência. 

Nos comentários à reportagem de Carla Jiménez e Regiane Oliveira sobre os novos decretos do Presidente que amplia de 4 a 6 o número de armas que uma pessoa pode possuir legalmente e os caçadores, até 40, foram muito significativos. “Menos armas e mais emprego”, “menos armas e mais educação”, “menos armas e mais vacinas”. Outros chegaram a fazer hipóteses que nessa pressa de Bolsonaro em armar a população pode significar que o que deseja é criar sua própria milícia para que o defenda no caso de tentarem retirá-lo do poder ou perca as próximas eleições, criando um clima violento no país de guerra civil. 

É uma hipótese bem possível, mas acho que essa paixão desmedida por tudo o que cheira à pólvora e a tudo relacionado às armas de fogo pode fazer parte de sua personalidade de morte e destruição, de negacionismo e de mania de perseguição. E até de medo. Ele confessou que dorme com uma arma ao lado de sua cama, como se em sua residência presidencial não existisse segurança suficiente para defendê-lo. 




Esse amor pelas armas e pela violência pode explicar sua frieza às mortes da pandemia. Não sabemos como são os sonhos de Bolsonaro além de que dorme muito pouco porque sofre de insônia, mas certamente são povoados de armas e mortes. Essa sua paixão desmedida por disparar armas de fogo fez com que em sua viagem oficial a Israel pedisse para realizar uma exibição de tiro ao alvo. E essa paixão pelas armas é evidente vendo suas fotografias imitando com as mãos o gesto de disparar. 

Três fotos são particularmente eloquentes e aterradoras a esse respeito: a dele e seus três filhos políticos juntos imitando disparar um fuzil e com os quatro sorrindo de orelha a orelha. A do hospital após a operação depois do atentado durante a campanha eleitoral ainda envolto em mistério. A foto o apresenta ainda se recuperando imitando com suas mãos o disparo de um fuzil. E a mais aterrorizante talvez seja a que o mostra com uma menina de cinco anos em seus braços enquanto a ensina a fazer o gesto de disparar um revólver com suas mãozinhas inocentes. 

Bolsonaro querer agora que os brasileiros possam se tornar o país mais armado do mundo com até 600 armas para cada cem habitantes é uma aberração em um Brasil já martirizado com mais de 40.000 homicídios por ano. Não porque seja um país mais violento do que os outros e sim porque sofre uma carência crônica de segurança do Estado incapaz de defendê-lo. 

Em um país em que as pessoas podem, se desejarem, ter até seis armas em sua casa é se esquecer que isso só é possível para os que podem se permitir esse luxo. Enquanto os de sempre ficarão mais expostos à violência, que costumam ser os negros, os jovens e as mulheres pobres assim como os habitantes das periferias que já são alvo a cada dia de cenas de morte e terror dos policiais e dos traficantes de drogas. 

E talvez o mais grave dessa loucura do Presidente por sua paixão pelas armas e a violência seja o silêncio até agora das instituições do Estado frente aos novos decretos para aumentar o número de armas particulares. 

O STF, o Congresso e o Senado ficarão de mãos cruzadas? Não vão parar esses instintos de morte e violência de um Presidente que pode contribuir para aumentar ainda mais o rio de sangue inocente que corre pelas ruas do país? Há silêncios que podem acabar sendo mortais. E o silêncio, quando não a cumplicidade das instituições do Estado com os instintos de morte do Presidente, podem acabar em uma tragédia nacional.

Orgulho bandido

Ministro, eu quero que você saiba que você está entrando numa queda de braço que você não pode vencer. Não adianta você tentar me calar. Eu já fui preso mais de 90 vezes na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
Ser ‘preso’ sob estas circunstâncias, é motivo de orgulho
Daniel Silveira (PSL-RJ)

Entubados, mas armados

Se depender de Jair Bolsonaro, o número de mortes pela Covid-19 passará em breve dos 300 mil brasileiros, sem que haja uma palavra de compaixão, reconhecimento da tragédia ou das múltiplas ações e omissões propositais que nos levaram a isso. O presidente não está nem aí, já se cansou de dizer.

Para este homem, este presidente incidental e lamentável, pouco importa que as UTIs colapsem com gente entubada em uma, duas, três ondas sucessivas e contínuas da pandemia, desde que ele passe com sua boiada de desmonte das políticas civilizatórias. Para isso, quanto menos gente estiver olhando, melhor.

Se for na calada da noite de um não carnaval ermo, sombrio, melancólico, em que as pessoas lamentam a alegria suprimida com as vidas das pessoas amadas, perfeito.

Para o presidente da República do Brasil, o “povo tá vibrando”. Bolsonaro conhece tanto de povo quanto de cloroquina: absolutamente nada. Sua noção de povo se limita a olhar gráficos de popularidade em pesquisas e, quando eles caem, se preocupar com o próprio pescoço.


É quando isso acontece, que ele se lembra de chamar algum auxiliar e ordenar uma medida que arrefeça a indisposição com seu governo, coalhado de ministros tão ineptos quanto o chefe, que só por isso estão onde estão.

Quem seria Gilson Machado em qualquer outra época que não fosse o governo Bolsonaro? Nem para tocar sanfona como calouro num daqueles programas dos anos 1980 serviria. Seria gongado por Aracy de Almeida. Sem o escrutínio daquele baluarte do bom gosto musical, somos obrigados a ouvi-lo não apenas tocar desajeitadamente o instrumento, como fazer perorações absurdas acerca de um suposto “castigo divino” que teria se abatido sobre nós pelos pecados do carnaval e teria resultado nas mortes por Covid-19.

Tal pessoa, saída de algum desvão da História onde deveria ter permanecido, é ministro do Turismo! Motivo de um indisfarçado orgulho de um presidente que se jacta de ser cercado de fracassados e ressentidos — com cada vez mais raras exceções que, se não se tocarem de onde estão enfiadas, vão virar a regra.

Depois de boicotar de todas as formas que conseguiu a vacinação dos brasileiros e comprar, fabricar e enfiar goela abaixo de doentes incautos um medicamento sabidamente ineficaz, Bolsonaro parece encantado com a possibilidade de a Covid-19 sumir com um spray nasal.

A droga, em fase inicial de testes, é desenvolvida por Israel, o que faz com que o presidente a considere “ideologicamente correta”. Surtiu efeito em, vejam só, 29 pessoas! Uau!

Mas onde estão as vacinas, presidente? Por que seu ministro-general da Saúde, que o senhor disse ser especialista em logística quando demitiu dois médicos, não consegue estruturar um plano de chegada de doses mínimas de imunizantes a estados e municípios que terão de paralisar a vacinação?

Por que, no lugar de editar de uma vez, na calada da noite, quatro decretos inconstitucionais e imorais, que liberam geral não apenas a posse de armas, mas de miras telescópicas e a fabricação de munição, e permitem transformar os amigos caçadores, atiradores e colecionadores em Rambos armados até os dentes, o senhor não estava cobrando de Pazuello que implemente um plano de vacinação capaz de tirar o Brasil da UTI, onde permanece entubado graças à incompetência do senhor e do seu estafe?

É inadmissível que assistamos anestesiados à completa inversão de prioridades numa crise sanitária. A vacina mingua no momento em que estamos no pico de casos e mortes, com a nova cepa do vírus se espalhando pelo país. O auxílio emergencial ainda está sendo estruturado, mas os decretos de armas estão aí, a desafiar o bom senso, o Supremo Tribunal Federal e um Congresso que é cúmplice da incitação à barbárie e à morte.

Será possível mandar militares de volta para os quartéis?

O livro “General Villas Bôas – conversa com o comandante”, do professor da FGV Celso Castro, joga luz sobre a atuação dos militares no período mais turbulento da história recente do país, que vai do impeachment de Dilma Roussef à eleição de Jair Bolsonaro.

A revelação mais importante é sobre o famoso tuíte do comandante do Exército, em abril de 2018, com ameaças ao STF na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula. Villas Bôas informa que o tuíte teve um “rascunho” e que foi “discutido minuciosamente” por generais do Alto Comando. Nas palavras do entrevistado: “Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente, até por volta das 20h, momento em que liberei o CComSEx [centro de comunicação do Exército] para expedição.”


Sim, foi isso mesmo que você leu. Villas Bôas confessa que a tradição golpista segue firme e forte entre os fardados e que o topo da hierarquia do Exército tramou para afrontar a mais alta corte do Judiciário brasileiro. Qual o comando constitucional que autoriza militares a exercer tutela sobre o poder civil? Em nome de quem? Como se sabe, o Supremo rejeitou o HC de Lula, preso dias depois. E agora, STF?

Em meio a tortuosos raciocínios sobre geopolítica e um ego que transborda das páginas, Villas Bôas deixa claro que as Forças Armadas não engoliram a Comissão Nacional da Verdade (“foi uma facada nas costas”), dá versões duvidosas sobre alguns acontecimentos e faz comparações despropositadas. Uma delas: que a desintrusão de não indígenas da reserva Raposa Serra do Sol (RR) equivale aos “pogroms de Stalin” na extinta União Soviética.

De volta à política 30 anos depois do fim da ditadura, os militares ocupam milhares de cargos, acumulam salários, privilégios e benesses. De mãos dadas com Bolsonaro, também são responsáveis pela catástrofe que já custou a vida de 240 mil brasileiros, até agora. A grande dúvida é quando —e se— será possível mandá-los de volta para os quartéis.

Micromegalomania das armas cheira a Venezuela

A cada medida esdrúxula de Jair Bolsonaro, o pedaço da plateia que deseja sossego pergunta aos seus botões: "Onde vamos parar?" No instante em que o governo distribui vacinas em ritmo de conta-gotas e o presidente assina decretos para facilitar o acesso dos brasileiros a armas de fogo, muita gente fica tentada a atualizar a indagação: "Onde vão detê-lo?".

Bolsonaro levou à vitrine quatro decretos. Elevou de quatro para seis o limite de armas que cada brasileiro com registro pode comprar. Subiu de mil para dois mil a quantidade de munição que atiradores e caçadores podem adquirir por ano. Permitiu que atiradores comprem até 60 armas. Caçadores, até 30. Eliminou a necessidade de obter autorização do comando do Exército.

Goebbles disse: "Falem-me em cultura que eu puxo logo minha Lugger!" Bolsonaro acrescenta: "Falem-me em isolamento social que eu puxo logo meus decretos armamentistas!" E o pedaço sóbrio da sociedade: "Fale-me de qualquer coisa que não seja vacina que eu puxo logo um ronco!"

O capitão tem o hábito de criar assombrações para depois se assustar com elas. Na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, aquela em que os palavrões prevaleceram sobre as ideias, ele enxergou o fantasma de um golpe escondido atrás da política de isolamento social. Falou em armar as pessoas para que elas desafiassem governadores e prefeitos.


"Como é fácil impor uma ditadura no Brasil! Como é fácil!", disse Bolsonaro aos ministros. "O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero [...] que o povo se arme! É a garantia de que não vai ter um filho da puta pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua."

Se tudo ficasse só no gogó o caso seria apenas de camisa de força. Quando a maluquice evolui para a fase dos decretos, é preciso acionar o sistema de freios e contrapesos. Sob pena de destrambelhar a democracia.

Diz-se que Bolsonaro inveja o estilo de vida dos Estados Unidos. Deseja conceder aos brasileiros a mesma facilidade que os americanos têm para a aquisição de armas. Em verdade, a micromegalomania armamentista do inquilino do Planalto exala um aroma venezuelano.

Hugo Chávez, o coronel autocrata da Venezuela morto em 2013, fundou em 2007 a Milícia Nacional Bolivariana. Virou a maior força armada do país. Reúne mais de 2 milhões de civis voluntários.

Os milicianos de conteúdo bolivariano juram defender a Venezuela. Na verdade, compõem uma força paramilitar que ajuda a prolongar o regime ditatorial de Nicolás Maduro, o sucessor de Chávez.

A pandemia exige dos governantes o talento de um maestro e o refinamento de um violinista. Bolsonaro só conhece a percussão. Na crise sanitária, é um estorvo para quem busca solução. O apreço pelas armas mostra que o presidente desenvolveu uma paixão pelo problema. Ele é plenamente correspondido.