segunda-feira, 7 de outubro de 2019

O fogo devorador

Quando povos e culturas são destruídos sem amor e sem respeito, não é o fogo de Deus que os devora mas sim o fogo do mundo
Papa Francisco

Bolsonaro fraqueja com tropeços nas reformas e acordão na política

A primavera está com cara de outono para Sérgio Moro (Justiça) e Paulo Guedes (Economia), superministros que já estão com a folhas amareladas, nem terminou o primeiro ano do governo.

O tempo também parece de muda para a tentativa do presidente de governar sem fazer acordos mais gordos com o Congresso. O arranjo de governo de Jair Bolsonaro ainda não tomou forma, se é que algum dia deixará de ser disforme.


Os principais enroscos políticos recentes, fora e dentro do governo, são significativos.

Primeiro. Ministros e assessores do Planalto, a “equipe política” e mais próxima de Bolsonaro, difundem entre jornalistas a ideia de que o poder e a influência de Guedes têm limites, como ficou claro na derrota da CPMF, mas não apenas.

Não é fritura, mas não é banho-maria. Contam por aí aquela velha conversa de que Guedes precisa ter mais “sensibilidade política”, além de resultados e feitos para apresentar também no curto prazo.

Segundo, o Congresso começou a apresentar contas mais pesadas para Bolsonaro, boletos político-financeiros que em parte caem no colo de Guedes. A última rodada da tramitação da reforma da Previdência não vai apenas custar caro em termos de liberação de verbas e de cargos.

Os parlamentares começam a apresentar o orçamento das suas expectativas de relação com o governo. A campanha da eleição municipal ainda deve complicar esse jogo.

Decerto o governo já sofrera dúzias de derrotas: derrubada de decretos, de vetos, medidas provisórias que caducam, projetos de lei largados na poeira.

Mas o Congresso não bulia até agora com artigos de extrema necessidade, como reformas econômicas fundamentais, a começar pela da Previdência (o talho no funcionalismo e a reforma tributária serão ossos duros de roer).

Previsível, os parlamentares acabam de dizer que não vão aprovar reformas duras e controversas de graça para o sucesso do governo Bolsonaro.

Terceiro: tal pressão do Congresso não provocou uma reviravolta, mas vazam de modo cada vez mais frequente notícias sobre uma reforma ministerial. De costume, mudanças em ministério não saem como o presidente e seus líderes planejavam. Quando se abre a porteira, passa boi, passa boiada e passa girafa também, pois muita gente vai querer pasto.

Quem vaza as notícias diz que o governo negociaria cargos por apoio partidário, mas sem ousar dizer o nome da barganha.

Quarto, um dos tripés do governo Bolsonaro, a história de combate à corrupção, está sendo corroído. Óbvio, um dos cupins é a reação em várias frentes às lambanças da Lava Jato, associada a Moro (derrotas no Supremo, no Congresso, críticas na opinião pública).

Além do mais, a irritação do Congresso com a política de Bolsonaro se junta ao desgosto corporativista e às críticas de fundo a respeito da atuação de Moro, na sua vida pregressa e no ministério, em especial no pacote anticrime. Embora popular, o ministro é uma figura acuada e desprestigiada nos três Poderes.

As reformas dão tropeções no Congresso; parte da elite econômica se impacienta com a falta de clareza de rumos.

O programa anticorrupção de Bolsonaro parece se afogar no acordão de que participa o próprio presidente, entre outros problemas. De firme, do tripé, resta a propaganda reacionária e autoritária.

Gente mais razoável do Planalto parece ter notado que o governo precisa de um rearranjo e que não se assentou. O que Bolsonaro fará disso é uma assombração.

'Empreendedorismo' das capitanias hereditárias não é exemplo para país nenhum

O presidente sofre de dendrofobia crônica, mas só há dias conhecemos a extensão do mal. Em público e diante das câmeras de TV, ele soltou um “porra de árvore” que nem em seus mais intempestivos arroubos de rude franqueza o general João Figueiredo, o ditador distensionista, soltaria.

Ignoro os motivos mais recônditos desse ódio às árvores do atual presidente militar e seu desprezo pelos órgãos e pessoas que tentam protegê-las, mas creio que seus assessores deveriam aconselhá-lo a conter o ódio e maneirar no desprezo, ao menos em respeito ao pau-brasil, origem de nossa identidade definitiva e nosso primeiro produto de exportação.

Enquanto o presidente vociferava contra a preservação da floresta amazônica, o cacique Raoni, e em prol de mineradoras e madeireiras, seu vice pontificava, na internet, sobre o Brasil dos tempos coloniais.


Millôr dizia, com razão, que “a ociosidade é a mãe de todos os vices”. O atual general Mourão (o anterior, prenome Olímpio, vulgo “Vaca Fardada”, morreu no auge do regime militar) não gosta de ficar desocupado, conversando com os botões de seu pijama. Quando não tem o que fazer, nem sequer esquentar a cadeira presidencial e sofrer bullying de Moe, Curly e Larry Bolsonaro, ele arruma um jeito de mostrar que tem mais preparo que o seu superior hierárquico.

Mourão 2.0 estava em seu Estado natal, Rio Grande do Sul, quando, em agosto do ano passado, semanas antes de ser solenemente mimoseado com um simbólico relho pelo prefeito de Bagé, Divaldo Lara, posteriormente afastado do cargo por corrupção, apresentou seu intelecto à nação, divagando sobre o nosso “cadinho cultural”. Não causou boa impressão.

O general repetiu as mesmas bolorentas ideias a respeito da “indolência” dos índios e a “malandragem” dos negros, recicladas das teses preconceituosas, algumas até racistas, de Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e outros intérpretes do caráter nacional brasileiro, já devidamente repertoriadas e depreciadas por Dante Moreira Leite, Carlos Guilherme Motta e outros estudiosos do assunto.

No último fim de semana, enquanto o presidente dava asas à sua dendrofobia, o vice postava em rede social uma ode aos 487 anos das capitanias hereditárias, criadas em 1532 pelo rei de Portugal D. João 3º. Se o general não nos lembra da efeméride, ela passaria em branco até pelo Peninha (a.k.a. Eduardo Bueno).

Por que não esperou mais 13 anos para celebrar, como é de praxe, uma data redonda, os 500 anos das capitanias? Talvez porque o governo se sinta assaz necessitado de pintar como tradicionais certas iniquidades do presente.

Em meus tempos de estudante, o Tratado de Tordesilhas e as subsequentes Capitanias Hereditárias compunham um dos pontos mais enfadonhos, se não o mais desinteressante, da História do Brasil. Talvez porque mal ensinado ou só abordado em tom ufanista, como a aurora de algo formidável para a formação e a riqueza do país. Ou seja, à maneira como o general tratou as Capitanias em sua postagem, puro oba-oba do expansionismo português, com uma visão acrítica do feudalismo tropical implantado, ao longo de três anos, em 15 big sesmarias da costa brasileira.

Gente rica e de confiança da Corte lusa presenteada com um latifúndio, para dele tomar conta, consolidando o domínio lusitano em terras brasileiras, e desenvolvê-lo economicamente, comercializando pau-brasil e açúcar –era esse o esquema das capitanias. Seus donatários recebiam também amplos poderes de jurisdição, cobrança de impostos e outros privilégios administrativos e fiscais. O sistema, mais arcaico que moderno, já funcionava desde meados do século 14 nas ilhas atlânticas.

Na visão do general Mourão, com a criação das capitanias, “o País nascia pelo empreendedorismo, que o faria um dos maiores do mundo”. Que eu saiba, o que concretamente nasceu com as capitanias, estabelecidas e mantidas com violência e práticas escravocratas e etnocidas, foram as nossas oligarquias rurais.

Historiadores contestaram Mourão nas redes sociais. Particularmente incomodado com a justificativa final do general (“É hora de resgatar o melhor de nossas origens”), Thiago Krause, professor de História Colonial do Brasil na Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), comentou, em sua página no Twitter, que as capitanias, à exceção de São Vicente e Pernambuco, foram um fracasso em termos econômicos, em parte por descaso e incompetência dos donatários, mas sobretudo pela resistência indígena às tentativas iniciais de escravidão.

Não pegou bem o general exaltar escravocratas, chamar bandeirantes assassinos de “nossos colaboradores”, fazer “rebranding” de senhores de engenho, alçados à categoria de “mestres do açúcar” e não dar uma palavra sobre negros e silvícolas explorados na lavoura e outros afazeres. Empreendedorismo em lombo alheio –e de graça – não deveria servir de exemplo a nenhum país.

“Não deixa de ser coerente que esse governo ache isso bom, né?”, ironizou o professor Krause. O mais irônico comentário sobre a aula de história do general saiu na coluna de segunda-feira de Gregório Duvivier, na Folha de S.Paulo: “Platão escreveu sobre militares que, escondidos num grotão, só têm acesso ao mundo através de uma fresta de luz –o mito da caserna.”

Duvido que o presidente entenda a boutade sem uma explicação do vice – que, aliás, também deveria estar lá para isso.