quarta-feira, 2 de setembro de 2020

PIB e pandemia

Se alguém ainda tinha dúvidas de que a economia brasileira sofreria um estado de depressão econômica em decorrência da pandemia e das respostas econômicas inadequadas do governo, se alguém ainda achava que saúde e economia eram temas separáveis, está aí a evidência em contrário. Não só a queda do PIB no primeiro trimestre – quando apenas duas semanas no fim de março foram responsáveis pelo resultado – foi maior do que havia sido divulgada, mas a retração de 9,7% no segundo trimestre foi a maior desde 1996, o início da série histórica. Tais resultados dramáticos levantam várias questões sobre o quadro à frente.

Praticamente todos os componentes do PIB, seja pelo lado da oferta ou da demanda, sofreram quedas históricas, jamais registradas. A indústria e os serviços colapsaram. O consumo das famílias sofreu queda de 12,5% comparada ao trimestre anterior, que já havia sido ruim. A retração do consumo das famílias foi especialmente alarmante pois durante o segundo trimestre estava em vigor o auxílio emergencial que, apesar de suas falhas de execução – e relatos de fraudes –, deu algum sustento à economia. Imaginem o que não teria ocorrido caso o Congresso não tivesse aprovado o auxílio em abril, quando o governo ainda se mostrava refratário à medida. Esses resultados deixam à mostra que economia e saúde estão intimamente interligadas e, não, não adianta dizer que o problema foram as medidas de saúde pública.


O Brasil jamais teve uma quarentena séria, jamais passou por um estado de lockdown como ocorreu em alguns Estados e localidades nos EUA e como fizeram vários países europeus e asiáticos. O descontrole da epidemia é responsável por esse resultado, assim como é o atraso do governo em enfrentar a crise, lembrando que no dia 16 de março o ministro Paulo Guedes ainda dizia que a economia brasileira iria crescer em 2020.

Como a epidemia continua descontrolada no Brasil, não há muito alento pela frente. É possível que o terceiro trimestre apresente alguma “melhora”, mas boa parte disso será puramente efeito estatístico dado o tamanho do tombo no início do ano. E, sempre há a possibilidade de recrudescimento da epidemia em localidades que hoje apresentam algum alívio. Segundas, terceiras, quartas ondas até são prováveis, já que o vírus é o que é: novo, imprevisível, uma fitinha de RNA com alto grau de mutabilidade. Arrisco dizer que, no momento, várias cidades e alguns Estados brasileiros estejam passando por alívio temporário. Sem medidas rígidas de controle, a epidemia voltará. É o que vemos mundo afora, afinal.

O que fazer diante disso? Apesar de toda a má gestão do governo Bolsonaro nessa crise, a prorrogação do auxílio emergencial é um alento. O benefício será agora pago até dezembro, como alguns de nós sempre defendemos, mantendo a coerência com a declaração de estado de calamidade, que vence no último dia do ano. O valor do benefício foi reduzido à metade, o que certamente removerá uma parte da sustentação econômica que diversos estudos já mostraram. Fica a dúvida sobre como as pessoas que mais necessitam do auxílio irão dar conta de suas necessidades com menos dinheiro. Contudo, é melhor ter algo do que não ter nada, possibilidade que há poucos meses era dada como a mais provável. Vi muitos argumentando que mantido o valor do auxílio emergencial, o Brasil poderia passar por tremendas dificuldades fiscais. Os mais extremados falaram em “quebra” do País.

O auxílio emergencial sempre foi uma medida cara para os cofres públicos – não à toa o caráter emergencial. No entanto, falar em crise fiscal a ele atrelada parece imenso exagero, sobretudo quando o ambiente internacional se revela cada dia menos hostil. O Fed, o banco central dos EUA, recentemente mudou o regime monetário de maneira que permitirá taxas de juros internacionais extremamente baixas por tempo ainda maior do que se supunha. Tal situação permite que o Brasil tenha mais tempo para atender às necessidades da pandemia sem deixar de lado a importância do ajuste fiscal futuro. A diferença é que há mais tempo para esse ajuste no ambiente de juros extraordinariamente baixos. PIB e pandemia são desafios que continuarão conosco por muito tempo.

A atuação mais importante do Estado continua a ser a preservação das vidas e da capacidade de sobrevivência econômica das pessoas mais vulneráveis. Críticas deveriam estar direcionadas não às propostas de renda básica e de auxílio emergencial, mas sim ao desperdício com os quais o governo flerta abertamente. Ponhamos o debate no lugar certo.

Bolsonaro, Flordelis, Witzel, Pastor Everaldo, Cabral, Garotinho ...

Muita urucubaca para um Estado só. Parece coisa feita, quimbanda (*) talvez. Inveja das belezas incomparáveis da cidade maravilhosa. Porta de entrada do turismo desse deslumbrante País, nosso cartão postal não merece essa gentalha.

Lembro a velha píada da criação do mundo: "Meu Deus, por que tanta beleza, tanta fartura, e nenhum cataclisma, num único país?". E Deus respondeu: "É porque você não sabe os políticos de merda que vou por lá ..". Uma pequena correção: na piada, Deus fala em "povinho".

Somando tudo, o Rio de Janeiro deu a esses tipos da nossa história recente, quase 30 milhões de votos. Desperdício de esperança e democracia. Apostas no futuro de governos caducos, corruptos, representantes desonrados do cenário politico brasileiro.


Nos últimos quatro anos, seis governadores ou ex-governadores foram presos ou afastados. Antes de Witzel, o último foi Luiz Fernando Pezão, preso durante o mandato. Vale ressaltar que nos últimos 20 anos, apenas dois governadores sairam pela porta da frente do Palácio das Laranjeiras, de cabeça erguida: Benedita da Silva e Francisco Dornelles. Sergio Cabral, o maior ladrão de todos os tempos (até agora, melhor dizer) foi condenado a penas que somam 280 anos.

Histórias que se repetem, embaralhadas pelos mesmas figuras. Pastor Everaldo, preso na semana passada, padrinho político de Witzel, foi secretário da Casa Civil na gestão de Garotinho, e é amigo de longa data de Bolsonaro."Batizou" o então deputado nas águas do rio Jordão.

Heresia que também acompanha a vida de Flordelis. De nome que simboliza pureza, virgindade e renovação espiritual, emblema da realeza francesa, a Flordelis do suburbio do Rio deixaria corado Nelson Rodrigues.

Cantora, pastora e deputada federal eleita por 200 mil votos, Flordelis é mais uma vergonha para o calejado eleitor carioca. Bastidores de sua vida estão sendo revelados com requintes de despudor e ganância. Mandou matar o marido, que havia sido seu filho adotivo, e noivo de sua filha biológica.

Os filhos de Bolsonaro também surfaram nas urnas. Ganharam popularidade, e denúncias de corrupção e degeneração moral que, tomara, emporcalhem seus 3 milhões de votos.

O Capitão riu quando soube do afastamento de Witzel. Fez pouco de seus eleitores. Fizeram campanha juntos em 2018. Eleitores de um foram eleitores do outro. Bolsonaro pode ter rido de nervoso. Afinal, Witzel terá que explicar porque seu amigo Mario Peixoto (preso na semana passada) fez depósitos na conta de sua mulher, Helena.

Isso lembra alguma coisa, valentão?

De Bolsonaro, já se sabe muita coisa. Desconfia-se de outras tantas. Só não se sabe porque o Capitão se recusa a explicar o depósito de R$ 89 mil que Queiroz fez na conta de Michele. Por que mesmo, Capitão?
(*) A Quimbanda trabalha mais diretamente com os exus e pomba giras, também chamados de povos de rua. Estas entidades, de acordo com a cosmologia umbandista, manipulam forças negativas. Geralmente estão presentes em lugares onde há obsessores conhecidos como espíritos atrasados. (Wikipedia)

Religião, crime e voto

O capitão Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República derrotando todos os caciques da política tradicional brasileira, apoiado em quatro pilares: antipetismo, combate à corrupção, liberalismo econômico e conservadorismo nos costumes. Na campanha, prometeu que, se fosse para adotar o pragmatismo da chamada governabilidade barganhando apoio por verbas públicas, preferia não assumir o cargo ao qual concorria. Sob a condição de ser promovida uma reforma política, que ele estava cansado de saber que não tinha a menor chance de ocorrer.

No governo tornou inviável a permanência do ex-juiz da Lava Jato, símbolo da bem-sucedida faxina nos costumes políticos, Sergio Moro, no Ministério da Justiça e Segurança Pública, substituindo-o por um fâmulo a quem prometeu uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF). Tem feito o possível e o improvável para ter como adversário na eleição de 2022, à qual dá prioridade absoluta na gestão, o ex-presidente petista Lula ou qualquer poste ou aliado de esquerda que este apontar. Prepara uma cama de faquir para seu “posto Ipiranga”, que para evitar destino idêntico ao do magistrado paranaense não se incomoda em ser reduzido a “imposto Ipiranga”, negando, assim como fez com a pandemia de covid-19, os preceitos da estabilidade da moeda e da responsabilidade fiscal.

A pretexto da governabilidade por pelo menos oito anos, Bolsonaro correu para o abrigo do baixíssimo clero de seus dois anos de vereador no Rio e 28 como deputado federal, que passou a se denominar Centrão sob a liderança de Eduardo Cunha, que, na presidência da Câmara, defenestrou Dilma Rousseff da Presidência da República. Sem se perturbar com a circulação nas redes sociais de um vídeo de seu guarda-costas, general Augusto Heleno, que se lançou na vida artística da política entoando a paródia do samba de Ary do Cavaco, tornado sucesso por Bezerra da Silva, “se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão”.



E adota qualquer atitude para escapar do inquérito do Ministério Público fluminense sobre a suspeita bem fundamentada de prática de peculato, corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa no gabinete de seu primogênito, Flávio, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). E ainda mais com a extensão do crime ao próprio gabinete na Câmara dos Deputados, onde empregou Nathália, filha do investigado Fabrício Queiroz, seu colega na brigada de paraquedistas do Exército e amigo da vida inteira, com óbvias conexões com chefões da milícia e do crime organizado, como o capitão PM Adriano da Nóbrega. Para tanto se expõe a constrangimento impróprio para qualquer cidadão de bem, como as perguntas de repórteres sobre os motivos de depósitos de Queiroz e da mulher, Márcia Aguiar, de R$ 89 mil na conta da primeira-dama, Michelle. Perguntas a que tem respondido com a costumeira elegância, ameaçando esmurrar quem as faz ou chamando-o de otário e bundão.

A pauta dos costumes conservadores está exibindo nesta pandemia a terrível, mas nada evangélica, associação entre confissões pentecostais, o crime individual ou organizado e a corrupção, que não é inédita na política e na gestão pública brasileiras, mas nunca foi de tão explícito descaramento. A pastora e cantora gospel Flordelis Souza, acusada na semana passada pela polícia fluminense de ter usado sete filhos e uma neta para executar com 17 balaços o ex-filho, ex-genro e último marido, o também pastor Anderson do Carmo, mereceu a misericordiosa solidariedade de Michelle Bolsonaro nas redes sociais. O presidente achou por bem levar sua cabo eleitoral mais valorizada, mais uma pastora, Damares Alves, à própria live semanal para evitar a contaminação pelo sangue derramado da vítima do projeto reeleitoral, que une todos os personagens desse episódio sórdido. Parceira da assassina num plano de adoção de menores abandonados, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos disse que a homicida “enganou todo o Brasil”. Não dá para rir dessa piada tétrica. Para anular o desgaste dos flagrantes de sua relação com a criminosa, Bolsonaro envolveu os “300” que fizeram selfies com ele em Foz do Iguaçu.

O que dizer, então, de o quarto pastor deste texto, Everaldo Dias Pereira, frequentador das delações premiadas do propinoduto das empreiteiras corrupteiras, tê-lo batizado e aos três filhos parlamentares nas águas profanadas do Rio Jordão, na Terra Santa? Presidente nacional do Partido Social Cristão (PSC), pelo qual Wilson Witzel foi eleito e no qual o próprio capitão cloroquina militou, o espírito santo de orelha do governador afastado do Rio de Janeiro está preso. Exerce o papel de água no chope da comemoração de mais uma baixa entre eventuais oponentes do clã Bolsonaro em sua marcha rumo a novo triunfo.

Resta-nos rezar para o Messias salvar seu povo das garras dos sócios dessa conjura que torna o Estado que nos governa uma associação de gângsteres de púlpitos, traficantes de armas e drogas, assassinos de ofício e gatunos da gestão pública.

Como anda a coisa, só Jesus na causa nos salvará.

Pensamento do Dia

 


Imunização de rebanho

Parece piada pronta: o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, nomeou para comandar o Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis, responsável por todo o programa nacional de vacinas do governo federal, o médico veterinário Maurício Monteiro Cruz, formado no Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro-Oeste, em Goiás, com mestrado em prevenção e controle de doenças em animais pela Faculdade de Agronomia e Veterinária da Universidade de Brasília. Cruz estava lotado na Diretoria de Vigilância Ambiental em Saúde do Governo do Distrito Federal e é especializado no controle da leishmaniose.

Como não lembrar da magistral interpretação de Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, por Jair Rodrigues, um clássico da nossa música popular: “Mas o mundo foi rodando/ Nas patas do meu cavalo/ E nos sonhos que fui sonhando/ As visões se clareando/ As visões se clareando/ Até que um dia acordei/ Então não pude seguir/ Valente lugar-tenente/ De dono de gado e gente/ Porque gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente”. Sem nenhum preconceito, não se pode acusar o general Pazuello de incoerente. Afinal, o ministro interino está operando uma estratégia de “imunização de rebanho” para gerenciar a pandemia da covid-19 no Brasil. Veterinários são especialistas nisso e profissionais de grande importância para a saúde pública. Alguns são grandes sanitaristas.



O Ministério da Saúde não está combatendo a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo Tribunal Federal (STF) assim decidira, o que é uma interpretação falsa, pois a decisão da Corte foi apenas de que caberia aos governadores e prefeitos gerenciar a política de isolamento social. Tecnicamente, a imunização de rebanho não é uma estratégia, é o efeito de proteção que surge em uma população quando uma percentagem alta de pessoas contraiu ou se vacinou contra uma doença. Mesmo quem não foi vacinado nem foi infectado, acaba protegido da doença porque um grande número de pessoas já foi imunizada, constituindo uma barreira humana contra a propagação do vírus.

Estima-se que o índice de 95% de vacinação seja o ideal para que isso ocorra, preservando as pessoas que não podem tomar a vacina, como acontece com o sarampo. Com isso, o vírus acaba desaparecendo. Veterinários, por exemplo, têm grande experiência em vacinação contra a febre aftosa, que ataca os rebanhos. O selo de imunização contra essa doença é fundamental para a exportação de carne bovina. No caso da covid-19, como não se tem vacina ainda, especialistas discutem qual seria a percentagem de contaminados para quem não teve a doença deixe de correr risco de se infectar. Não há respostas ainda, mas alguns pesquisadores estimam o número entre 60% e 80% da população total.

O departamento comandado por Cruz é responsável pela organização do calendário de vacinas do país, as campanhas nacionais e a distribuição dos medicamentos aos estados, assim como por acompanhar a cobertura vacinal. Sua tarefa é, sobretudo, de planejamento e logística, porém, depende da chegada da vacina contra a covid-19. Apesar de o Programa Nacional de Imunizações ser considerado uma referência mundial, desde 2016 a cobertura vacinal no país não tem atingido as metas, nem mesmo nas vacinas infantis obrigatórias. Nenhuma das 10 vacinas obrigatórias para menores de 2 anos atingiu as metas de cobertura em 2019. Entre elas, a poliomielite, que teve cobertura de apenas 82,1% das crianças. Considerada, oficialmente, erradicada no Brasil desde 1994, a doença ainda exige vacinação porque o vírus circula pelo mundo.

Mesmo com as subnotificações, com 120,9 mil mortes — das quais 30 mil em São Paulo — e 3,8 milhões de casos confirmados, o Brasil ainda está muito longe de alcançar a imunização de rebanho. A média móvel de casos dá sinais de que está começando a cair, mas ainda está num patamar muito elevado, que registra uma média móvel, nas últimas duas semanas, de 875 mortes e 36 mil casos por dia. O grande destaque no combate ao novo coronavírus foi a resiliência dos heróis anônimos na linha de frente do enfrentamento à pandemia, muitos dos quais contraíram a doença e morreram, sobretudo profissionais da saúde. O desempenho do Sistema Único de Saúde, com todos os problemas, está sendo fundamental para evitar uma mortalidade muito maior. A ideia de que a pandemia está acabando é muito perigosa; os fatores decisivos para controlá-la ainda são a política de isolamento social e a autoproteção individual.

Governo tem poder de tornar vacinação obrigatória e dever de incentivá-la

Na terça-feira , o presidente Jair Bolsonaro afirmou que "ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina", em referência a uma possível futura campanha de vacinação contra a covid-19.

A declaração foi criticada por médicos, infectologistas e constitucionalistas: segundo eles, desestimular a vacinação é inconstitucional e pode trazer graves prejuízos ao combate à pandemia e outras doenças.

A fala de Bolsonaro foi publicada nas redes sociais pela Secretaria de Comunicação do governo. "O Governo do Brasil investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos. Estabeleceu parceria e investirá na produção de vacina. Recursos para estados e municípios, saúde, economia, TUDO será feito, mas impor obrigações definitivamente não está nos planos", escreveu o órgão, no Twitter, acompanhado por um banner com a frase do presidente e os dizeres de que o governo "preza pela liberdade dos brasileiros".

O Brasil já registrou mais de 122 mil mortes por covid-19, além de quase 4 milhões de infecções.

Se por um lado a fala de Bolsonaro pode incentivar ainda mais o crescimento do movimento antivacina, dizem médicos, por outro ela está equivocada e seria inconstitucional, segundo constitucionalistas ouvidos pela BBC News Brasil.

A Constituição brasileira permite, sim, que o governo crie mecanismos para obrigar que as pessoas se vacinem — não só pode, como tem o dever de fazê-lo, explica Roberto Dias, professor de direito constitucional da FGV (Fundação Getulio Vargas).


Isso porque, em casos como esse, a Justiça coloca na balança dois direitos: de um lado, a liberdade individual e, de outro, a saúde pública — e, no caso de epidemias de doenças que são uma clara ameaça à saúde pública, como a covid-19, o direito à saúde pública é prevalente, afirma Dias.

"Nenhum direito fundamental é absoluto, ou seja, o direito à liberdade não é absoluto a ponto de estar acima do direito à saúde das outras pessoas", afirma a professora de direito constitucional Estefânia Barbosa da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Há diversos dispositivos na legislação brasileira que permitem a vacinação obrigatória — da Constituição a uma lei assinada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro em fevereiro, a Lei 13.979, que autoriza autoridades a tomar medidas como tornar compulsória a vacinação.
Direito de todos, dever do Estado

Caso a ciência encontre uma vacina efetiva e segura contra a covid-19, o governo tem não só a possibilidade como o dever de incentivar a aplicação e torná-la disponível aos brasileiros, explica Dias. Isso porque o Artigo 196 da Constituição Federal determina que saúde é um direito de todos e um dever do Estado.
O Estado tem obrigação constitucional de implementar políticas sociais que visem à redução do risco de doenças, afirma Dias.

"Num momento como esse, em que vacinas, desde que tenham passado por todos os testes e sejam recomendadas pelas autoridades de saúde, serão possivelmente a melhor resposta para a pandemia, o governo tem a obrigação de divulgar, incentivar e garantir uma política pública ampla de vacinação" afirma Roberto Dias.

Por isso, defende o constitucionalista, falas do presidente que desestimulem a vacinação ferem esse dever e são inconstitucionais.

"A dimensão objetiva do direito à saúde significa que o poder público tem o dever de garantir esse direito a todos, independentemente de pleitos individuais ou coletivos", explica Estefânia Barbosa, professora de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

E deixar de se vacinar não é apenas uma questão de escolha individual, é uma atitude que afeta toda a coletividade, explica o cientista Fernando Rosado Spilki, presidente da Associação Brasileira de Virologia.

"Se uma parcela importante da população não se vacina, o vírus continua circulando em níveis que permitem sua manutenção prolongada na população, trazendo evidentes danos à saúde e por conseguinte à economia, além de todos os outros aspectos afetados por eventuais quarentenas", explica.

Segundo Spilki, escolher não se vacinar contra a covid-19 por ideologia ou qualquer outro motivo poderia prejudicar pessoas que não podem receber a imunização por problemas médicos. "É preciso considerar que o vírus acaba chegando em pessoas que, mesmo querendo, não tiveram acesso à vacina ou não puderam se vacinar por causa de outras doenças, como pacientes imunossuprimidos, em tratamento de câncer etc", afirma.

"Não aderir à vacinação será acima de tudo uma falta de civilidade, de compromisso público e de respeito ao próximo, de solidariedade", diz Spilki.

Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBMi), também ressalta o caráter cidadão de tomar uma vacina. "A gente tem nas vacinas as melhores ferramentas de proteção individual e pública. Quando você se vacina, não está protegendo apenas você mesmo, mas a comunidade", diz.

Para Isabella Ballalai, vice-presidente da SBMi, afirma que a fala do presidente pode "confundir ainda mais (as pessoas) em um momento em que tudo já está bastante confuso."

"Um exemplo do que pode ocorrer com diminuição de cobertura de vacina é o sarampo. O Brasil ficou vários anos sem sarampo, e agora tem milhares de casos porque uma pequena parte da população deixou de se vacinar", explica.

Segundo Ballalai, a fala de Bolsonaro contraria inclusive ações do próprio Ministério da Saúde. "A equipe nacional de imunizações do ministério tem feito um trabalho duro para colocar em dia a cobertura de vacinação, que caiu por causa da pandemia. Então, essa declaração é contraditória com ações do próprio governo, além de ser irresponsável", diz.

De acordo com Rômulo Leão Silva Neris, doutorando em inflamação e imunidade pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, a chamada imunidade coletiva (quando a maior parte da população fica imunizada contra uma doença) foi alcançada na era moderna por causa das vacinas.

"Uma série de doenças foram erradicadas ou estão sob controle porque tivemos programas de vacinação eficientes. As vacinas conseguem impedir a circulação do seu agente causador (da doença) na sociedade. Por isso é fundamental que qualquer campanha de vacinação atinja o maior número de pessoas possível", explica.

Os especialistas afirmam ainda que, caso o governo faça uma boa campanha de divulgação da vacinação e a torna disponível e de fácil acesso em todo o território, a sua obrigatoriedade pode nem ser necessária — diversas campanhas de vacinação muito bem sucedidas já foram feitas no Brasil sem que tomar a vacina fosse obrigatório.

A questão jurídica sobre o direito à liberdade individual versus o direito coletivo à saúde no caso das vacinas recomendadas por autoridades de saúde já está bastante resolvida no Brasil, explicam os constitucionalistas.

O governo não pode criar uma vacinação em que as pessoas sejam fisicamente forçadas a se vacinar, afirma Dias. O esforço de uma vacinação obrigatória é feito "através de mecanismos (para que elas se vacinem), como o condicionamento do exercício de certos direitos à vacinação".

Ou seja, é possível criar normas que restrinjam o acesso a direitos — como viagens, benefícios do governo etc. — caso a pessoa se recuse a se vacinar. É algo que funciona mais ou menos nos mesmos moldes da votação obrigatória, em que, se a pessoa não vota nem justificar, perde direitos como se inscrever em concurso público, obter passaporte, etc.

Isso, na verdade, já é previsto na legislação brasileira em diversos casos. As normas que regulam a distribuição do Bolsa Família, por exemplo, determinam que para entrega do benefício é preciso algumas condições, entre elas manter a vacinação das crianças em dia.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Artigo 14, também estabelece que os pais têm o dever de vacinar as crianças, e podem ser multados caso não o façam.

"Já temos várias leis que restringem a liberdade individual em função do bem coletivo e que não implica em descumprimento da Constituição", explica Barbosa.

"A nossa leitura do direito individual não está desligada da vida coletividade", afirma o professor de direito Wallace Corbo, da FGV-Rio.

Acreditar em teorias da conspiração (como a de que vacinas causam autismo, algo falso, de acordo com a ciência) não é um motivo legítimo para colocar a saúde das outras pessoas em risco, explica Corbo.

O constitucionalista afirma que, caso as autoridades de saúde brasileira aprovem a vacina, recomendem seu uso e garantam sua segurança, não há nenhum motivo para um indivíduo argumentar que a vacina fere seus direitos individuais.

"Hoje o risco máximo que existe em você tomar algumas vacinas é ter alguns sintomas, ou podemos falar no transtorno de ter que sair de casa para tomar", diz ele.

"A gente pesa o benefício coletivo contra o risco individual da vacina, e como os riscos de vacinas aprovadas pelas autoridades em geral são muito pequenos, a gente considera que a vacinação obrigatória não infringe nenhum direito fundamental. Na verdade, a saúde coletiva é uma condição para o exercício dos direitos."

Corbo afirma que o indivíduo pode ter uma razão verdadeiramente legítima para não se vacinar — como ser imunodeprimido, por exemplo — e nesses casos fica dispensado em caso de uma obrigatoriedade. Mas é justamente para proteger essas pessoas que não podem se vacinar que a vacinação coletiva é importante, explicam os médicos.

Teologia da Prosperidade: uma aberração capitalista

Uma das figuras americanas mais conhecidas, Benny Hinn, declarou que o Evangelho “não está à venda”, depois de passar vinte anos a pregar esta teologia, que considera agora constituir uma ofensa a Deus ao “colocar um preço no Evangelho”. Defende mesmo que tal teologia não se encaixa na Bíblia nem na realidade.



Mas será necessário que os pregadores da prosperidade venham a público reconhecer o erro e pedir perdão às pessoas por pregarem um evangelho distorcido, para que os cristãos abram os olhos? Que dificuldade haverá em discernir que esta teologia é geograficamente localizada tratando-se de mais um produto religioso “Made in USA”, tal como algumas vertentes religiosas bem conhecidas?

A teologia da prosperidade é uma aberração capitalista. A ideia de que Deus tem casas com piscina, aviões particulares e outras mordomias para distribuir a granel é um insulto ao evangelho, que é centrado no Ser e não no Ter, essa tara dos nossos dias. É sobretudo um insulto aos pobres, os quais Jesus declarou que sempre existirão: “Porque os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes” (João 12:8).

Aliás, este episódio ilustra exactamente o contrário. Maria de Betânia decidiu ir buscar um frasco de perfume caro, que representava uma espécie de reserva financeira para o caso de alguma eventualidade inesperada, e derramou o líquido sobre os pés de Jesus, ungindo-os em atitude de adoração. Judas Iscariotes, o tesoureiro do colégio apostólico, apressou-se a censurar o acto, dizendo que seria preferível tê-lo vendido e dar o dinheiro aos pobres. Mas o evangelho é muito claro: “Ora, ele disse isto, não pelo cuidado que tivesse dos pobres, mas porque era ladrão e tinha a bolsa, e tirava o que ali se lançava” (João 12:6). A versão moderna do chico-esperto.

De facto sempre existiram e existirão grandes contrastes sociais e pobreza nas sociedades, uma vez que as ideologias políticas nunca conseguiram criar relações sociais justas, equitativas e com igualdade de oportunidades em ambiente de liberdade. O ideal comunista falhou rotundamente em toda a parte do mundo onde foi tentado. É por isso que se torna tão irresponsável criar a ilusão de que qualquer um pode ser abastado apenas em resultado dum acto de fé, como que por magia.

Mas o sistema capitalista também está ferido de imensas injustiças e não passa de outra forma de vender ilusões. Uma teologia que vende a ideia de que se tivermos muita fé podemos ser ricos não passa duma tradução do liberalismo levado ao extremo e de uma aberração capitalista. De facto, o princípio bíblico “No suor do teu rosto comerás o teu pão” (Génesis 3:19) parece omitir toda a sorte de especulação, em especial a dos lucros derivados dos mercados financeiros.

Paul Collier dizia, em entrevista ao Expresso: “O capitalismo está eticamente nu e será destruído se não mudar”. Este economista e professor da Universidade de Oxford, pensa que a pandemia de covid-19 pode agravar ainda mais a crise capitalista, já que se torna necessário “enfrentar a ascensão do individualismo e a destruição do sentido de comunidade, bem como o desvio das empresas de cumprirem objectivos sociais para apenas buscarem o lucro”.

Ora, é aqui que bate o ponto. O sistema capitalista, que por influência calvinista inicialmente apresentava um rosto humano, tornou-se um sistema sem rosto e sem coração, completamente cego e surdo ao clamor dos pobres. Do princípio protestante do esforço, do trabalho sério e do investimento derivava uma vida frugal, em que os lucros obtidos eram canalizados para o apoio social aos mais pobres e para reinvestir, criando assim mais riqueza e oportunidades de trabalho.

A ética protestante não reservava aos investidores vidas de nababo, improdutivas, totalmente à custa da força do trabalho alheio. Mas tudo isso se perdeu. Pelo contrário, pensava-se que Deus não só abençoava como recompensava o esforço individual, o que constituía um signo de salvação.

Assim, a malfadada teologia da prosperidade não passa dum subproduto deste capitalismo selvagem que temos hoje, e que passou a “adorar” um Deus que substituiu o lema “No suor do teu rosto comerás o teu pão” pela tentação do deus Mamom: “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mateus 4:9).
José Brissos-Lino

Perplexidades

Se eu fosse um moralista metido a herói, confortavelmente protegido pela liberdade da democracia na sua versão brasileira, meu título seria um compreensível e curto expletivo, o que, para quem não aprecia o que escrevo, provaria meu conservadorismo. Como se preservar fosse algo condenável justamente para quem continua reacionariamente usando velhas polarizações, cuja função social explícita é justamente culpar o outro. O fato é que enxergamos um alarmante viés autoritário, típico de sistemas monárquicos, escravocráticos e imoralmente desiguais, nos quais a liberdade democrática é imediatamente traduzida em polarizações condenatórias e listas negras.

Vale notar, nesse contexto, a surpreendente “brasilianização” dos Estados Unidos governados por um Donald Trump autoritário, ambicioso, nacionalista, descomprometido com a verdade e rico. Esses ingredientes dos muros. Fechar as rotinas, sobretudo as jornalísticas, fundamentais para o funcionamento da liberdade política, não é só uma mania brasileira. Ela ocorre em toda coletividade na qual a boa-fé, ao lado da honradez devida aos cargos públicos, é ofendida por mentiras e perversões pessoais. 

A política tomou o lugar da transcendência religiosa e tem sido uma decepção em todo lugar. Seja porque a responsabilidade de quem chega ao poder pelo voto aumenta de modo diretamente proporcional ao desmoronamento das aristocracias; seja porque, num mundo devassado e transparente, compreendemos que a vida coletiva depende de modo absoluto de nosso comportamento. 

Nas monarquias, os personagens governavam por direito divino; hoje os eleitos se empoderam usando todos os meios disponíveis. Estaria eu advogando a volta reacionária da uma nobreza de sangue azul? 

Negativo. Estou revelando minha perplexidade diante do banimento mundial de dimensões como educação, sabedoria, discernimento, sinceridade, honra e vergonha no campo da política. Se, no passado, ela era um negócio conjugal e familístico, realizado pelas “casas reais”, hoje ela é um pantanal em que interesses nacionais são englobados pelos egoísmos do mercado em família. Em outras palavras, decapitamos reis somente para substituí-los por tiranos e, no caso brasileiro e sul-americano, por caudilhos no melhor feitio sultanesco. O campo da política transformou-se numa disputa de gângsteres, como prova o Estado do Rio de Janeiro. 

Na opinião do velho brasilianista Dick Moneygrand, um manifesto “Centrão” esconde brasileiramente um “direitão” e um “esquerdão”. Mas o problema de vocês, complementa o professor, é que tudo é governado familisticamente. Não é fácil transitar da dominação tradicional e carismática para a burocrático-legal; ou combiná-las de modo harmonioso.


Alguma novidade? Nenhuma, pois até a impecável América de Madison, Lincoln e Roosevelt tem, graças a Donald Trump, decepcionado. Sua brasileira polarização desnuda um suposto equilíbrio quando, tal como fazemos habitualmente, põe na lista negra manifestações contra seu estruturado e estruturante racismo segregacionista. 

Causa perplexidade ver em risco um sistema político baseado na liberdade e na igualdade. Lá como cá, falta valorizar uma esquecida fraternidade. Sobretudo pelo agravamento mundial de uma brutal desigualdade negadora dos valores que gente de minha geração tanto perseguia. A solidariedade é a ponte entre o potencial de conflito da liberdade com a igualdade. 

Os promotores estão novamente em cena. Mas o filme que desvendam é uma reprise. Todos assistimos muitas vezes a esse filme e, no Rio de Janeiro — berço da nossa realeza quando a corte portuguesa fugiu para esse outro lado de Niterói em 1808 —, continuamos a manter essas abusivas ilhas monárquicas em plena República.

Devido, porém, a um surto de direitas, a roubalheira da província que foi corte torna-se um claro caso de incesto. De autorroubo rotineiro, capaz de formar uma dinastia de governadores indiciados e presos. A chamada corrupção é equivalente a engravidar inocentes. No caso, o povo que — obviamente — ainda não foi ensinado a discernir. 

E nem há como fazê-lo num sistema educacional fundado no ditado e na cópia, em que os professores, “tios”, provando nossa incapacidade de distinguir a casa da rua.

Pior do que essas vergonhas, porém, é ter a obscena certeza de que os políticos traidores de seus cargos, credos e juramentos solenes serão, tempos depois, inocentados por meio de autênticos golpes legais. Por manobras em nome da Justiça que se vê não apenas cega, mas nua diante de um país sem compromisso com o certo e o errado.