sexta-feira, 28 de junho de 2024

Viva a Idade Média!

Pesquisando na internet, é possível encontrar notícias como as reproduzidas abaixo:

"Brasil registra 1.463 feminicídios em 2023. Ou seja, cerca de um caso a cada seis horas, representando uma alta de 1,6% em relação a 2022. Em 18 estados, a taxa de feminicídios ficou acima da média nacional, de 1,4 morte para cada 100 mil mulheres. Entre 2015 e 2023, quase 10,7 mil mulheres foram vítimas. Esse é o maior número registrado desde que a lei contra feminicídio foi criada, em 2015, segundo o relatório publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)."

"Atlas da Violência indica que uma mulher sofre violência sexual no país a cada 46 minutos, sendo vítimas mais frequentes as que têm de 10 a 14 anos de idade. Mostra também que mais de 144 mil mulheres foram vítimas de algum tipo de agressão em 2022, sendo os homens os principais agressores."

"Segundo dados da sétima edição do Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), em 2023, houve 155 mortes de pessoas trans no Brasil, sendo 145 casos de assassinatos e 10 que cometeram suicídio após sofrer violências ou devido à invisibilidade trans. O número de assassinatos aumentou 10,7%, em relação a 2022, quando houve 131 casos."


Essas manchetes revelam crimes bárbaros, mas o impressionante é ver que diversos setores da sociedade brasileira acham isso aceitável. Aliás, é comum vermos manifestações públicas nas redes sociais de pessoas colocando a culpa na vítima, proferindo afirmações do tipo: "Também, quem mandou ela estar vestida assim?", ou "Deus criou o homem e a mulher. O resto é aberração", ou ainda aquela célebre frase "Menina veste rosa e menino veste azul", dita por uma ex-ministra do governo passado.

É um comportamento típico de quem não aceita a diversidade e a liberdade de cada pessoa escolher o que quer ser para viver feliz. Por elas, regras e costumes considerados normais em períodos como, por exemplo, a Idade Média deveriam voltar a prevalecer. Nesse sentido, vale o registro da notícia abaixo:

"O líder supremo do Talibã, Hibatullah Akhundzada, anunciou que o grupo começará a aplicar a sua interpretação da lei sharia no Afeganistão, incluindo a reintrodução da flagelação pública e do apedrejamento de mulheres por adultério. 'Vamos açoitar as mulheres, apedrejá-las até a morte. Vocês podem chamar isso de violação dos direitos das mulheres porque eles entram em conflito com seus princípios democráticos, mas eu represento Alá, e você representa satanás.'"

Os talibãs têm como premissa que mulher é um ser inferior, que deve obediência ao homem. Infelizmente, há muita gente em nosso país que concorda. Não custa nada lembrar que, até 1962, as mulheres casadas só podiam trabalhar fora, abrir conta no banco, ter estabelecimento comercial ou mesmo viajar se o marido permitisse. E a autorização poderia ser revogada a qualquer momento, de acordo com o que previa o Código Civil de 1916. E que, somente em março do ano passado, entrou em vigor a Lei n° 14.443/2022 que dispensa o consentimento do cônjuge para autorizar a laqueadura em mulheres.

Inconformados com esses avanços, aqueles que podemos chamar de os talibãs brasileiros conseguiram aprovar a urgência para a votação do PL 1.904/2024 que equipara aborto após 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio, estabelecendo uma pena muito maior para a mulher vítima do estupro do que para o estuprador. Não custa lembrar que, caso aprovado, revogaria legislação vigente desde 1940.

Porém, para surpresa dos apoiadores, a revolta da sociedade e da opinião pública obrigou o presidente da Câmara dos Deputados a adiar a votação e decidir que será criada uma comissão para debater melhor o projeto. E tudo indica que será engavetado.

Entretanto, esses segmentos que tiveram muito apoio governamental no período de 2019 a 2022, não vão simplesmente desistir de suas pautas. A permanente ofensiva contra as mulheres e a população LGBTQIAP precisa ser respondida por quem acredita em uma sociedade apoiada nos princípios do respeito à diversidade e à liberdade de culto, bem como do combate ao racismo e a todas as formas de preconceito.

Hoje, comemoramos o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP . Infelizmente, neste ano, não temos mais a companhia de dois ativistas dessa causa que fizeram a diferença: Jobson Camargo e Eliseu Neto. A eles dedico minha coluna.

Democracia

Para que uma organização democrática exista é preciso que haja equilíbrio de poder entre os seus membros. Uma organização democrática entre lobos e cordeiros jamais poderia existir, ainda que os cordeiros fossem em número maior que os lobos, sempre ganhassem as votações e estivessem sempre com a razão. É hora de recontar a fábula do lobo e do cordeiro, porque ela nos ajuda a compreender o momento. “Estavam o lobo e o cordeiro a beber num riachinho, quando o lobo assim falou ao cordeiro: ‘Por que sujas a água que estou bebendo?’. Retrucou o cordeiro: ‘Como posso eu sujar a água que o senhor está bebendo se sou eu que estou abaixo na correnteza? A água passa primeiro pelo senhor e só depois chega a mim...’. O lobo não se alterou com as evidências. ‘Sim, de fato. Mas você sujou a minha água no ano passado’, disse o lobo. Respondeu o cordeiro: ‘Isso não pode ser, senhor lobo, pois tenho apenas seis meses. Não havia ainda nascido no ano passado’. O lobo arreganhou os dentes e gritou: ‘Se não foi você foi o seu pai’. E devorou o cordeiro...” Uma sociedade democrática entre os lobos é possível porque existe equilíbrio de poder entre os lobos. Uma sociedade democrática entre cordeiros é possível porque existe equilíbrio de poder entre os cordeiros. Mas não é possível uma sociedade democrática onde haja lobos e cordeiros. Os lobos sempre devorarão os cordeiros…

Rubem Alves, "Ostra feliz não faz pérola"

Mudança climática: o apocalipse mais caro da história

Ninguém esperava que o fim do mundo fosse custar tão caro. A Bloomberg publicou que será necessário investir US$ 226 trilhões até 2050 para desaquecer o clima sem esfriar os negócios no novo normal do planeta. Sem esse investimento o prejuízo total dos mercados será de US$2,3 quatrilhões ainda neste século.

Já a revista The Economist prevê que as mudanças climáticas custarão apenas ao setor de habitação cerca de US$25 trilhões até 2050. A grana vai sair do bolso dos proprietários: reformas, seguros mais caros, deflação dos preços em áreas vulneráveis ou mesmo com a destruição do imóvel.

Pelo ângulo social, a mudança climática poderá incluir mais 3 bilhões de pessoas na linha de pobreza, segundo o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Ilan Goldfagn.

O novo apocalipse conta com o auxílio luxuoso da economia global e seus consumidores. Quem não emite diretamente os gases efeito estufa em grande escala acaba consumindo os produtos dos emissores. Esse casamento entre a ânsia de lucrar e a obsessão de consumir tem caráter insaciável e inadiável.

O que dificulta qualquer questionamento das consequências ambientais ou sociais desse modelo são as sacrossantas Leis de Mercado, Liberdades Individuais e Livre Iniciativa (“direitos” tão sagrados que superam até os instintos básicos de sobrevivência e de comunidade).


Todo esse lucro e esse consumo são financiados pela degradação ambiental que não é contabilizada nos custos, nos juros nem nos preços, causando uma ilusão negligente de que a depredação dos recursos naturais e o desequilíbrio dos sistemas climáticos vai sair de graça para a humanidade.

É justamente aqui que está a impossibilidade de se responder a pergunta crucial da história humana: quem vai pagar a conta do estrago climático? Não haverá resposta enquanto a legitimidade intocável daquelas Leis da economia moderna estiver tão naturalizada nas mentes dos indivíduos, empresas e governos que, na falta de culpados, ninguém assuma responsabilidades.

Sem responsáveis, os prejuízos serão de todos. Tampouco se sabe quem pode coordenar esse debate. A ONU já não consegue se afirmar como governança superior capaz de influenciar decisões, mediar interesses e apontar estratégias. Resta ao seu Secretário-Geral António Guterres alertar que “mesmo se o mundo parar hoje totalmente de emitir gases efeito estufa, levaria décadas para dissipar a disrupção climática já produzida”.

Como nada está tão ruim que não possa piorar, a insegurança geopolítica causada pela guerra da Ucrânia e as tensões crescentes na Ásia e Oriente Médio esfriaram o ânimo das nações desenvolvidas para as tratativas sobre a transição energética e descarbonização. Na contramão, os investimentos em energia não renovável e em armamentos voltaram a níveis preocupantes. A renomada Deloitte também faz suas estimativas: “Até 2070 as perdas globais com a mudança climática totalizarão US$178 trilhões”.

Nesse cenário, despencou o valor financeiro destinado à cooperação internacional dos países ricos para os países pobres (pactuado na COP26), destinado à contenção e à adaptação às mudanças climáticas.

Por outro lado, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) chama a atenção para a oportunidade ainda rentável de se investir US$6,3 trilhões por ano até 2030 em infraestruturas adaptadas à mudança climaática que podem aumentar a resiliência da economia, especialmente nos países em desenvolvimento.

Seja qual for o cálculo, a mudança climática é o melhor exemplo de um “barato que custou caro”.